sábado, 23 de fevereiro de 2008

Noite de sábado

PEDIDO

Ah, viver nas alturas, deixai-me!
Que minha cura está nas nuvens, sob teus olhos,
E a mistura do bem e do mal já não me apavora.

Ah, deixai-me ser uma mulher que voa!
Não é à toa que vim parar aqui, e as pessoas
São feitas de mármore antigo, e não vão embora.

Deixai-me sonhar sempre, e chorar sempre
Nas tardes de domingo, sem hora para parar
Até eu chegar a todas as lágrimas de outrora.

Ah, deixai-me falar de novo a palavra “outrora”!
Deixai-me ser antiga, e, como dizia meu pai, do "tempo zorra",
Longe dos calendários, a somar frases que saíram da moda.

Deixai-me viver a dor, a solidão, o amor!
Não quero nenhuma instrução, a noite já está lá fora...
Noite de sábado, com ares frios de professora.



Este poema vai em homenagem a Mônica Menezes - que criou para mim os epítetos "Mulher que voa" e "mulher das alturas".

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Sobre os convescotes literários

Por que escrevo?
Todos que escrevem sempre se fazem essa pergunta. E ela não tem uma resposta única e satisfatória. Uma das minhas é... "escrevo por pura necessidade de sobrevivência". E não há nessa resposta nada de romântico, ou falso. Já sonhei, aos vinte e poucos anos, em participar de convescotes literários, publicar mil e um livros, ser lida e aplaudida, viver no meio de escritores. Hoje quero apenas ficar no meu canto, que é melhor. Os convescotes, na maioria das vezes, são frescuras de literatos que sempre falam mal de alguém ausente... ou presente mesmo.
Marques Rebelo era considerado um maledicente. Mas há verdades no que ele diz, a respeito disso, na entrevista que concedeu a Clarice Lispector. À pergunta: A literatura lhe trouxe amigos, além de admiradores?, Rebelo responde: "A literatura nunca traz amigos, no máximo traz alguns simpáticos desafetos."
Hoje sei que, como em todas as instâncias, há na literatura uma política literária, e isso destrói um pouco os sonhos de quem não quer pertencer a nenhum grupo político. De quem apenas quer viver escrevendo, por que senão morre ou fica doido. Vontades de publicar? Claro, quem não tem? Mas quem não entra na política não publica. Até rimou. É como se fosse uma punição pela coragem do isolamento, do não-puxa-saquismo, da timidez. Não, isso aqui não é discurso de ressentida, muito pelo contrário. Já publiquei livros, já lancei, já botei a boca no mundo, já participei de recitais, saraus, o diabo a quatro. Conheci bem esse mundinho, até divertido, vale ressaltar. Mas cansei. Não agüento mais ver, em lançamentos, certas caras de literatos que se acham os maiores do mundo; que lhe olham de baixo para cima farejando em você uma resenha crítica que alguém do sul do país fez sobre sua poesia, e etc. O que também não mais agüento é a autopromoção: eu, eu, eu escrevi; eu, eu, eu publiquei; eu, eu, eu...
Drummond é quem estava certo: para que ir para a Academia? Para tomar chá das cinco e falar mal dos imortais ausentes?
Não me comparo à Drummond, claro, mas resolvi que é melhor mesmo eu ficar no meu canto, escrevendo sob a proteção da Aeronauta... Ela (a Aeronauta) me deu sorte: há sempre alguém passando por aqui para ler o que escrevo. Afinal a gente não escreve apenas para a gente: há o sonho da interlocução nessa coisa de escrever por questão de sobrevivência ou para não ficar doido.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

"Manoel, o filho de Pedro"


Ah, os doidos eternos de minha infância... Como me esquecer de Priquitinha, Pastinha, Lalu, Titia, Mané Besta, Saburi, Louro? Seres diferentes que rondavam a vida das pessoas, estampando, para todos, suas diferenças. Priquitinha sempre com uma blusa "volta ao mundo", azul, bem transparente, como todo tecido "volta ao mundo", andava pela rua o dia inteiro, com passos largos, dizendo e repetindo, dizendo e repetindo: "Maria veve, Maria Veve!" Tinha o cabelo preto e escorrido, partido ao meio. E Pastinha? Este andava com uma pastinha na mão, andando e andando sem parar. Uma vez seguiu eu e minha irmã pelos lados do rio. Lalu era uma doida engraçada, velha e com um sapato preto que ficou conhecido como "sapato de Lalu"; engraçada assim como Titia, que morava embaixo da ponte, vestia umas roupas de plástico e usava pulseiras e colares feitos de canudo. Saburi era vizinho de lá de casa. Gostava dos bilhetes de loteria. Saía com um bolo deles nas mãos, distribuindo para as pessoas. Já Mané Besta, que de besta não tinha nada, andava pelas ruas vendendo cestos que ele mesmo fazia para poder viajar pelo Brasil. Um amigo o encontrou uma vez no carnaval de Salvador e outro amigo o encontrou em São Paulo. Quando estava na cidade, a vida dele consistia em fazer contas nos muros. Fazia milhares de contas e tirava a prova. Números enormes, escritos a carvão. Gostava de desenhar também um coração flechado. E assinava embaixo: "Manoel, o filho de Pedro". Já Louro, filho da velha Rosa, foi contido e preso na Colônia de Feira. Mas fugia e voltava. Levavam novamente e ele fugia. Não sei hoje onde está, ou se está.
Morávamos praticamente numa cidade de doidos. Pai dizia que era a serra que fazia as pessoas enlouquecerem, e que ele um dia iria embora dali. Talvez tivesse medo de enlouquecer, assim como eu também comecei a ter medo disso na adolescência. O que é ficar doido? Inicia-se, será, com uma melancolia que vai crescendo, crescendo, crescendo? Meu Deus, se for assim... Será que a loucura é conquistar, inconscientemente, a terceira margem do rio?
Ah, se isso acontecer comigo, que me depositem numa "canoinha de nada" e me deixem à beira do Rio Gafanhoto - mesmo morto, cheio de mosquitos e crepúsculos perdidos.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

A Cidade


A cidade é cortada por várias águas, vários rios. Quantas vezes ficamos ilhados, sem podermos ir a nenhum lugar, com rios e rios enchendo, tomando pontes, entrando em casas, devastando tudo? A cidade poderia ter se acabado nessas grandes enchentes, mas não. Sabíamos, dentro de nós, que isso nunca aconteceria. Sabíamos que, em algum momento, a chuva iria abrandar, os rios iriam voltar a passar não mais sobre as pontes mas embaixo, como é regra universal. E íamos dormir tranqüilos. Eu e minha irmã particularmente felizes pois sabíamos que no outro dia inevitavelmente não haveria aula: a escola estaria tomada pela água... Sabíamos também que a mesma cena, de todos os anos, iria se repetir: Mel chorando na porta de sua casa pois que o rio estava lá dentro fazendo a festa; todos os vizinhos e curiosos olhando e consolando a coitada, e o rio com aquele barulho imenso, feroz, fazendo graça daquele infortúnio que se repetia mais uma vez. Todos os anos o rio fazia essa brincadeira de mau gosto com ela, mas a teimosa não arredava pé de sua casa. Era uma briga vã, dolorosa para ela e engraçada para os curiosos.
Dormíamos e acordávamos com aquele barulhão do rio. Eu, na minha ingênua ruindade de pré-adolescência, gostava muito dessas enchentes. Não ligava se a casa de fulano caiu, se a casa de sicrano tinha sido invadida... Gostava mesmo era daquele clima de livro, clima de cena de romance que a cidade ganhava. E eu e minha irmã acordávamos ouvindo pai conversando na janela com as pessoas que passavam, comentando a chuva e seus estragos. Tomávamos café, íamos para a porta e o que nos esperava era um monte de tanajuras e borboletas e outros bichinhos trazidos pela enchente. Pegávamos nossas sombrinhas e íamos olhar todos os rios, que já não mais trafegavam em cima das pontes mas na beiradinha delas. Quantas vezes passei pela ponte perto de lá de casa e molhei meus pés nas águas do rio que passava... A rua nesse dia ficava movimentada, todo mundo saía para olhar tudo, admirando aquele espetáculo de arrogância e grandiosidade da natureza.
Teve um ano em que a coisa foi mais perigosa. Dois dias inteiros chovendo, ninguém tinha mais passagem para lugar nenhum. O que fazer? Esperar a morte lírica do morrer afogado? Não, seu Netuno, dono do bar da esquina, não queria saber de morte lírica coisa nenhuma. Pegou vários mantimentos, inclusive bolacha creme craker, doces, margarinas, pães, etc, colocou tudo no seu fusquinha amarelo claro, e, junto com tais provisões, a família inteira se apertando dentro do carro... Ligou o motor sobre imensas poças d'água e foram pela praça. Na primeira ponte de saída para outra cidade, o que viram? ÁGUA. Na segunda saída da cidade, a última,o que voltaram a ver? ÁGUA. O rio tinha a altura de um monstro mítico e a voz tão forte que estremeceu toda a família. O que fazer? Seu Netuno, no volante, resolveu... e comunicou à família: "vamos todos voltar, gente, e morrer em casa, junto com as galinhas que já estão mortas no quintal".
Porém, as águas mais uma vez estavam de brincadeira... Logo que eles voltaram para casa, os rios foram se aquietando, se aquietando... a chuva passando... e as borboletas e tanajuras voaram festivas, naquele clima de cena de romance lido nas férias.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Um encontro com Emily Dickinson

Emily Dickinson está passando por aqui. Vestida de branco, que era a sua forma de viver. Isolada do mundo. E amando um homem. Amando para sempre um homem. Perdendo a cada dia esse homem, pois que nunca o teve:

O Perder Tudo - me livrou
De perder Ninharias


... Sabia ela das urdiduras das coisas impossíveis:

O Impossível, como o Vinho,
Enche de entusiasmo
Quem dele prova - o Possível
Não tem sabor - Juntai

Uma pitada só de Chance
E no primeiro Trago
O Encanto faz o ingrediente
Com certeza Fatal -


Sabia de tudo, Emily Dickinson, e cifrava poeticamente suas sapiências...
... E pedia, como boa amante, de joelhos (mesmo escrevendo: "Se um Amante é um Pedinte/ Indigno é seu joelho"), o fluido amor azul do seu amado:

Meu rio quer te encontrar,
Mar azul! Vais-me aceitar?
Meu rio quer que respondas,
Ó Mar - acalma essas ondas -
Trago-te os regatos
Que achei pelos matos
Vem - Mar - me levar!


Insistente, e otimista, como toda amante, sabia das Supremacias que o Destino guarda, em meio às suas tramas:

O Coração tem muitas Portas -
É só chamar -
Na expectativa de um amável
"Pode entrar" -
Sem me abater uma recusa,
Resta insistir -
Nalgum lugar Supremacia
Deve existir -


Ah, amar para continuar vivendo, escrevendo, revelando e escondendo nas letras Maiúsculas o mais completo significado poético de escrever, de amar, de viver, de passar...

Dentro de minha flor - me escondo -
Para ao murchar em teu Vaso
Tu - sem que saibas - por mim sintas
Quase que uma saudade -


... E, depois de toda a dor, escrever versos que carregam o que há de enigmático e grandioso no amor, e que a Palavra Poética guarda para as almas sensíveis decifrarem.

Eu nunca mais
faço uma carta
tão amável
como esta

Sílabas de veludo
frases de pelúcia
abismos de rubi não explorados
reservados
(ó lábio)
para ti

Faz de conta que foi
um beija-flor
que agora mesmo
me sugou


... E é com tais palavras que Emily Dickinson, vestida de branco, vai saindo daqui de casa... É Noite. Lá fora o seu Amado a espera. De Joelhos, talvez.

(Tradução dos poemas: José Lira. In: Emily Dickinson. Alguns Poemas. São Paulo: Iluminuras, 2006.)

"O amor paixão"

Num dos melhores livros de Clarice Lispector que já li, aquele de entrevistas (extremamente original) chamado "De corpo inteiro", ouvi uma das respostas mais lindas sobre o amor. E veio de Vinícius de Morais. Seguem, abaixo, perguntas e respostas:

" - Acredito Vinícius. Acredito mesmo. Embora eu também acredite que quando um homem e uma mulher se encontram num amor verdadeiro, a união é sempre renovada, pouco importam as brigas e os desentendimentos: duas pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar no mesmo par novos amores.

- É claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente o mais doloroso. Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito.

- Você já amou desse modo?

- Eu só tenho amado desse modo."

sábado, 9 de fevereiro de 2008

O Livro de Preces

VISÃO

Olhar é comer teus olhos líquidos e
Beber tua boca salivosa, como se
Eu bebesse vinho a noite toda.
Comer-te inteiro, a alma no meio
Como tempero forte e sem retorno.

Olhar é ver um verdadeiro porto
E eu chegando, alegre, com meu corpo,
Com minhas pernas, com meu rosto,
Com meus cabelos soltos, e aquele vestido
Tão curto, tão curto, tão curto...

Ah, olhar é ver quase tudo:
o que há de nudez perversa no mundo,
o que há de mais dentro e mais fundo.


OFERTA

Se me quiseres, de verdade,
Te darei a minha carne, parte por parte.
Braços e antebraços, e, ainda mais, a face.
A face larga, o riso fácil, a boca aberta
À espera da guloseima certa.


*Dois poemas extraídos de O livro de Preces (inédito) da Aeronauta.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

De volta para casa


Hoje à tarde cheguei de lá. Uma viagem longa, sofrida. Os pés ficaram inchados. O vento que vinha da janela do ônibus era quente, abafado, e eu me sentia mais velha de que quando para lá fui, na quinta-feira. Fui passar o carnaval, vejam só, na casa que não mais existe. Não, não vou dizer como Bandeira que a menina ainda existe. A menina existe tanto quanto a casa, que é outra. Mas lá dentro ainda existem muitas coisas, inclusive o antigo rádio sobre o guarda-louça... O Rio Gafanhoto meio morto, meio vivo, e uma nostalgia terrível na umidade das paredes que o corredor ainda guarda. Mãe me esperava, com abraços e bolos. Os sobrados na praça, estáticos, lembravam de minha irmã colocando rabos de papel nos garis enquanto estes retiravam as gramas do calçamento, perto do sindicato onde pai trabalhava. Parece que eles, os sobrados, na hora em que passei pela praça, saíram um pouco de sua imobilidade para rirem dessa lembrança. Eu ri com eles.
Ah, voltemos à casa. Essa nova casa que construíram no lugar da outra tem quatro quartos. A outra tinha apenas dois. Só que um desses quatro quartos é um museu - com a porta sempre fechada. É um museu familiar. Lá estão duas televisões: uma preto e branco da década de setenta (aquela que ainda traz uma capa verde e o galo da tv aratu desenhado) e uma colorida da década de 80. Embaixo da televisão preto e branco está Drumondina, coitada (lembram-se dela?), triste, envergonhada... Perto, duas máquinas de costura, uma da década de 60 e outra da década de 80, murmuram ressentimentos de outrora. Próxima à janela uma radiola (isso mesmo: radiola), já se deteriorando por causa de um cupim zombeteiro, em silêncio rememora os velhos discos de Vicente Celestino. Sem contar que, na parede, um Cristo, que pertencia a pai, morre a cada dia no mais triste desterro. Ao lado os meus santos queridos: Cosme e Damião (dois pares) e o Santo Antônio de minha adolescência lhe fazem companhia. Entretanto, mesmo, o mais triste não é isso. O mais triste é o caso da geladeira...
... No dia em que cheguei, a geladeira larga, vermelha, de minha infância, anunciava já sua ida para o museu. E eu ajudei nisso. Eu, algoz de meu passado, comprei uma nova geladeira para mãe, e a geladeira vermelha foi parar lá, perto de seus antigos companheiros. Porém, para a digníssima dama entrar no quartinho foi difícil. Chamamos um batalhão de homens, mas a dita cuja é larga, gorda, substancial, negava-se a entrar. O jeito foi fazê-la encarar sua nova vida entrando pela janela. Senti de perto sua contrariedade. E na hora em que a outra, a nova geladeira, branquíssima, chegou, morri um pouco... Fechei a porta do quarto, ou melhor, do museu, sem olhar para nenhuma dessas coisas que lá sobrevivem a duras penas... Sei agora, apenas, que também estou lá, no meio delas.