sábado, 31 de julho de 2010

noturno (II)


A noite naquele quarto sempre me traz sonhos profundamente verticais. Naquele, eu lia em voz alta, para o antigo e grande amor, Um lance de dados jamais abolirá o acaso, e ele no início ouvia atento, no meio se perdia olhando a rua, no fim pedia que eu parasse. E me dizia que deixasse para outro dia, não gostava de poesia de jeito nenhum, que eu desistisse. E eu notava seu cabelo esvoaçando, longe, bem longe de mim, cada vez mais longe, quando o vento soprava na sala. E a mesma e estranha sensação que tive, aos dois anos, de um sol vermelho no horizonte queimado, quando eu vinha da roça e sonhava em comer pão à noite. A mesma e estranha sensação ao chupar um bombom sentada numa pedra do quintal e depois me mudar para a casa nova na rua da ilha, uma casa grande, cheia de corredores. Sinéstica, eu era o abandono em suas diversas cores e perfumes. Fazia bonecos de milho e pedia à vizinha que lhes costurasse roupas, e espiava o casal de namorados da casa em frente, sentados agarrados em banco duro, ao relento. E naquela parte da casa que ninguém ia, nós brincávamos de família, repetindo tudo tudo que víamos. A mesma e estranha sensação de estar, contínuo viver, com a peneira entre as pernas, naquela brincadeira intensamente gostosa de passear pelo terreiro. E o abandono em sangue, no prego que entrou no meio do pé, e me deixou insone, ensinando-me como enfrentar a dor e o medo.
Nesse quarto largo e fundo aprendo a repetir o abandono; e os sonhos vêm, insistentes, entrelaçados num sumo forte, cheirando a coberta de retalho envelhecida, com manchas de umidade nas pontas.



Imagem: www.google.com.br

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Salve Rainha


Salve, Rainha, mãe de misericórdia,
vida, doçura, esperança nossa, salve!
A vós bradamos os degredados filhos de Eva.
A vós suspiramos, gemendo e chorando
neste vale de lágrimas.

Eia, pois, advogada nossa,
esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei,
e depois deste desterro mostrai-nos Jesus,
bendito fruto do vosso ventre,
Ó clemente, ó piedosa,
ó doce sempre Virgem Maria

Rogai por nós santa Mãe de Deus
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo


Essa oração me dá arrepios. E uma imensa vontade de chorar. Agora entendo tudo. Aos seis, próxima ao berço mãe carinhosamente me ensinou o pai-nosso. Oração doce, oração feliz, oração para crianças. Porém, às escondidas, à noite ouvia um choro convulso acompanhado pela Salve-Rainha. Era mãe rezando. Um dia quis aprender essa oração. E fui interditada, e os olhos dela traziam um segredo imenso, e uma dor, e ela disse que aquela oração era perigosa, não era para crianças. A Salve Rainha desde então virou um segredo em chagas, pois que mãe só a pronunciava quando sofria. Que oração é essa, que dói tanto, e que só os adultos poderiam conhecê-la? Hoje entendo, e ao recitá-la, integralmente, mãe volta a chorá-la dentro de mim.


Imagem: www.google.com.br

domingo, 25 de julho de 2010

noturno


Mais seguro é encontrar à meia-noite
Um fantasma,
Que enfrentar, internamente,
Aquele hóspede mais pálido.


(Emily Dickinson)


Durmo num quarto grande, quase sem fundo. E largo. Não tem janela, nem greta, nem nada. Nele não entra uma luz à noite. Quando vou dormir, sempre às dez, deixo a porta entreaberta, porque o escuro me apavora. O escuro completo o quarto tem pra dar, nas suas larguras desmedidas. E eu não consigo dormir no escuro absoluto. Meu sono para vir precisa de uma luzinha qualquer apontando no quarto, e essa chega pelas frestas da porta entreaberta, de onde também entra o vento, que amaina o pavor que a noite me dá.
Mas naquele dia, entrei no quarto e fechei a porta. O escuro me acolheu e eu não tive medo dele. Porque eu sentia uma dor grossa, uma dor parecida com sangue escapando para a lâmina, uma dor que ninguém ouvia. E quem abriu essa dor tinha mãos largas, uma palma branca, e uma fixidez mórbida de quem não se levanta. Para quê? Geralmente quem te quer matar jamais balança uma pálpebra: é vento forte, é vento que, por vontade própria, faz exatamente o que quer: deitado, executa. Por isso é que entrei no quarto, fechei a porta, e acolhi o escuro, menor, bem menor que tudo. Enfim, pálida, entrei no mundo.


Imagem: "Quarto escuro", Alexandre Greghi - carvão, papel e lápis.
(www.flickr.com)

quarta-feira, 21 de julho de 2010

lugares brancos


Nos consultórios médicos as atendentes trazem o cabelo sempre amarrado e um ar de quem sabe ver gente morrer: um semblante contumaz, cheio de pó de arroz, e um sorriso plácido. Irritantemente plácido. Andam de lá pra cá, chamando as pessoas, condenadas na sala de espera. Chamam tanto nome, menos o seu. E impressionante, seu médico nunca chega, seu médico sempre demora pra chegar, seu médico nunca é pontual. A sala é geladíssima, o ar condicionado no máximo. As letras nas paredes, sinalizando todas as salas de ultrassonagrafia, são vermelhas. Vermelhas no branco da placa. Há um não sei quê de pasmaceira naquilo tudo, e nem uma revista pra folhear. A televisão ligada tem uma imagem em preto e vermelho com grandes interrupções contínuas de chuvisco. E o médico não chega. Você vai ao balcão. A atendente de cabelo amarrado diz que ele está vindo, pegou um engarrafamento. Você volta pro seu lugar. Depois de horas e horas seu nome ecoa, límpido, gostoso de ouvir. Chegou sua vez! Uma atendente, plácida (devem ser assim as atendentes do céu), lhe leva corredor adentro. Você entra na sala. O médico lhe estende a mão. Manda você pra salinha do lado. Você tem que ficar nua. E lhe vestem uma roupa que precisa ser usada "com a abertura para a frente". Você deita e aguarda, enquanto o médico lá no outro compartimento lhe pergunta coisas. Você está nua, completamente, que coisa bizarra. O ar condionado no máximo. O médico finalmente chega e se senta ao seu lado, perto de um computador. Pergunta onde você nasceu, diz que a violência está em todo canto, no interior e na capital, que ter filhos é uma responsabilidade, que você tem displasia e cistos, mas não se preocupe, não há o que se preocupar; e que fique tranquila, seus ovários estão ótimos, pronto, não vai doer nada, é só relaxar. E lá vem um gel dos infernos, e um bip, bip soando perto do seu ouvido direito. Volta a dizer, compulsivo, que Salvador está violenta demais; aí você se preocupa, pois a noite já chegou e você tem que voltar pra casa, e se um ladrão Deus livre e guarde lhe esperar na esquina? Enquanto isso o médico vai lhe perscrutando, seu corpo agora é apenas anatomia naquela maca que dá nojo. E olhe que desde sua chegada você já sofreu o diabo, amassaram seus peitos naquela barra como se fossem cortá-los, e você deu um grito desesperado. Enfim, acabou, hora de se levantar e limpar a sujeirada do gel. Do lado da maca há rolos e rolos de um papel grosso, e você limpa com pressa, achando que está atrasando a próxima paciente. Você tem mania de pensar nos outros, e nem se limpa direito. E o médico, no outro compartimento, grita para você não se preocupar, pois o gel não mancha. Aí você veste a roupa com pressa, aquela nudez clínica lhe deprime. Então vai com gel mesmo, a roupa encharca, você continua com nojo de tudo. O ar condicionado é forte, e o médico já lhe espera com a mão no ar, lhe dá um sorriso profissional e diz de novo que não há motivos pra preocupação, e que aguarde, agora mesmo sairá o resultado. Você volta para a sala de espera, um monte de mulher sentada, mulher de todas as formas e idades, todas esperando sua vez. A porta de vidro é um fecha e abre, você olha as sandálias indo pra lá e pra cá, afinal o tempo precisa passar e, enquanto espera, você precisa distrair a falta de paciência. Depois de uma hora e meia lhe chamam no balcão, ai que alegria, lhe entregam seus exames, todos eles dentro de um saco plástico enorme, branco, com letras vermelhas, e você sai, feliz, rindo; e se questiona por que sempre sai feliz desses lugares, esquecendo-se imediatamente de todo o tempo e sofrimento que ali passou.



Imagem: Faculdade de Medicina de São Paulo, por pedro kok.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 19 de julho de 2010

cheiros


Sim, já usei desodorante impulse, e esperei um cavalheiro correr à minha frente com um ramalhete de flores. O cheiro do perfume atravessava a televisão e inundava a sala, no comercial mais lindo que minha infância já viu. Talvez vem daí minha fixação por cheiros. Guardo o cheiro de muitas coisas, de pessoas, de momentos, de livros, de tardes mornas. Lembro bem do cheiro de seu rosto, quando o afaguei no escuro, naquela noite que nunca terminou. Do odor de sua roupa, pernoitando sabores escondidos, tão bem guardados que estalava em minha mão a vontade louca de comê-los; sua boca, natureza pura, com aroma de vento batendo nas folhas. Todo o seu ser exalava o cheiro de uma alma esmagada, como o perfume forte das flores mortas. Embriaguei-me, absoluta.
Sim, já usei desodorante impulse, e esperei, lânguida, um cavalheiro correr à minha frente com um ramalhete de flores...


Imagem: "Olfato... em sépia", por Jonycunha.
(www.flickr.com)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

De que constelação vem esse poeta?


Dose da Claridade

Pode o dia amanhecer
Em mim a insegura vontade
De sacudir os tapetes tão pisados
Com cheiro de passagem
Abrir portas, janelas
E sair
Olhando o céu cobrindo meu corpo?
Pode, nesse instante,
Pequeno que seja
Uma boca qualquer chamar meu nome?
É tão difícil saber.


Dose Constelar

O sol esvaziou sua luz
Dentro da boca de uma mulher.
Mulher solar
Nada que eu faça abrirá sua voz.
E ela é só distância
Na minha procura.

Quanta falta me faz o calor
Aquele afinado aproximar-se
Sua pele estalando estrelas
Tudo só imagem acariciada.


Ricardo Nonato
VISITEM: http://banhoveneno.blogspot.com/


Imagem: "Constelação de Órion"
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quinta-feira, 15 de julho de 2010

quarta-feira, 14 de julho de 2010

uma pergunta


Diz Lula: "Beliscão é uma coisa que dói". Eu bem sei. O que mãe mais sabia fazer em mim era beliscar. Beliscar pra comer, principalmente. Trazia a primeira unha da mão direita bem crescida pra poder beliscar com gosto. O meu braço era o alvo melhor, talvez onde tinha mais carne. Era o lugar mais gordo do corpo. A unha entrava com arte, deixando roxo o local, com a marca. A marca da mãe. Filha marcada a ferro, como se marcam os bois.
Claro, é indiscutível que havia amor em jogo. Como vou colocar agora o amor dela em discussão? Não é disso que estou falando, estou falando dos mecanismos de amar. E a palavra "mecanismo" vem na hora certa: mão beliscando e batendo é algo mecânico, é instinto material. Punição necessária para uma menina que odiava comer, que trancava os dentes e, só a troco de um grande beliscão no braço, abria a boca.
Beliscão dói, é verdade.
E se ela conversasse comigo, me doutrinasse, dissesse que a alimentação é necessária, e que se eu não comesse morreria, etc?
Eu não abriria os dentes, muito menos a boca, tenho certeza. Lá eu iria entender que se eu não engolisse aquela comida maldita eu morreria?
E aí? O que ela faria então?



Imagem: "Maria-sem-vergonha", por Chrismferreira.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

iniciação


Tinha seis anos e cinco meses quando fiz esse desenho. É uma casa muito engraçada, mas tem teto. Colorido. Briguei com minha colega de carteira por causa disso. Ela dizia que telhado é marrom. Jamais quis saber da realidade, hoje vejo. E a ponta de meu lápis de desenhar nunca era fina, e eu impunha-o com força na página, em tempo de furar o papel. E o meu sol não era amarelo. E tinha uma flor enorme no quintal, solitária, com pétalas verdes. Porém o muro, vermelho, lhe deixava inteira para ser vista. Fálica, desenhei uma banana verde perdida no espaço, assim como o sol marrom, tristonho. Marrom, vermelho, verde e azul: cores do meu mundo. Bola vermelha, não esférica. Apagados, mas com marcas no papel, uma igreja e outra banana e outra bola. Casa com porta e janela, porta e janela, porta e janela, porta e janela. Para que tanta porta e tanta janela, pergunta meu coração. E as igrejas apagadas eram três. E, por fim, tirei dez. Nota que todo ser humano quer: dez. Apagada, mas desenhada com força, perto da igreja também apagada, uma flor: maior de que aquela enobrecendo o muro com as folhas marrons. Percebe-se minhas mãos não adestradas, minhas mãos nada sutis, duras, sobre o papel. Ali eu começava.

terça-feira, 6 de julho de 2010

anatomias


Orides Fontela era louca, depressiva e só. Sylvia Plath se matou. Clarice tinha os olhos do além. Fernando Pessoa só não fez o mesmo que Sá-Carneiro porque criou heterônimos. Cecília era uma santa: sabia sofrer com beleza. Quintana, anjo. Bandeira era um Manuel forte, como todos os dentuços. Mário, vário, vivia sozinho, à rua Lopes Chaves, 546. Carlos Drummond... oh, Carlos, guache como todos nós, calado, amava. Rimbaud foi o único que viveu. Oswald gargalhou, forte, sem medo. Rubem Braga pagou cremação bem antes. Hilda Hilst bela, profunda, gritando seu Túlio, seu Túlio, insensível e mudo. Ana Cristina César também se matou. Assim como Sandor Márai. Assim como Pedro Nava. Assim como Torquato... Ai, dê-me asas, poetas mortos, dê-me asas. Graciliano era belo homem, que sorte a de Heloísa. E Aracy, de Guimarães, imaginem o quão feliz essa não foi? Muito mais que Felice Bauer, muito mais que Milena Jesenská. E Maria Kodama? Neruda não a amaria, mas Borges sim, acredito que sim, a amou. Oh, Vinícius, pleno! Que tudo sabia da mulher amada, que enaltecia a mulher amada, que tinha vício pela vida. Vinícius, sim, homem vital, carne e precipício, alma doada aos peixes. Lindos, Carolina e Machado. Invencível pra mim só Gregório. Etéreo, Cláudio. Dos completamente esquecidos, Genolino Amado. Venham todos, venham todos! Até os vivos, que nem é tarde!



Imagem: Trakt-2, por gert voo in't holt.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

sobre todas as datas


Ontem o aeronauta fez três anos de idade. Que falta faz um filho. Na falta eterna que ele fará, escrevo. Escrevo para não ter que contar os dias. Para aguentar a dor, a rouquidão, a tosse. Para saber sofrer o tanto que você almeja, a quantidade exata, o tamanho ideal. E então depois deitar-me e descansar um pouco.
No dia de aniversário dessa casa, que passou ontem, aqui registro a falta. Registro no ar, na tentativa de abraçar o frio por inteiro, sem medo.



Imagem: "Parabéns...," por Ponto e vírgula.
(www.flickr.com)