domingo, 26 de agosto de 2012

eu e mãe



Hoje eu e mãe, como duas meninas, fomos à praia do rio vermelho em busca de búzios. Cada búzio que uma achava mostrava para a outra. As ondas iam e vinham em nossos pés, e levávamos sustos, como pessoas que nasceram no rio, não no mar. Saímos de lá com as mãos cheias; os pés repletos de areia nos fizeram rir; ali, naquele momento, eu e mãe tínhamos a mesma idade.


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

descontinuidade


Eu e a realidade somos inimigas. Moramos juntas, mas não suportamos nos ver. Meu quarto fica no sótão, o dela no térreo. Quando topamos uma com a outra, é só zombaria: ela ridiculariza minhas asas quebradas, eu suas antenas parabólicas.





Herberto Sales

Meu abraço profundo em Herberto Sales, que hoje anda pelas lavras diamantinas do sonho, e que se foi em 13 de agosto de 1999... Hoje, registro tristemente no diário: 13 anos sem sua literatura, sem seu humor cáustico e genial, sem seu afeto.


domingo, 12 de agosto de 2012

fragmentos


Para meu pai, nas dimensões encantatórias que há muitos anos anda, esses fragmentos de lembranças...

O que mais o irritava era que mexessem no seu jornal. E eu sempre fazia isso, à procura do caderno 2. Retirava o caderno 2 para ler as notícias de arte que me interessavam, e quando ele via que o jornal estava "desmanchado", ele ficava nervoso, e dizia que eu deveria ter esperado ele pegar no jornal primeiro. Saudade dessas briguinhas maravilhosas.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

meus oito anos


Não, Casimiro, não tenho saudade
de meus oito anos.
A aurora de minha vida era o crepúsculo
avermelhado
que eu via sempre, assustada
pensando ser o fim do mundo.

A minha infância não tem som
de violino,
nem de piano.
Vez ou outra ouço sim um ranger de porta
abrindo, abrindo sempre
para que tudo volte.

A tramela insiste, aberta,
e o vento faz festa com ela.
A tranca e a janela
são convites à minha espera.

Mas para que querer a infância
se os anos a trazem sempre
à minha revelia?

Ela dorme, em letargia,
se levanta, não se cansa
não se cansa nunca
de morrer





quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Encontros e Desencontros

Bill Murray e Scarlett Johansson corporificam a solidão da incomunicabilidade e a sutileza do encontro num dos mais delicados filmes que assisti. "Lost in translation", no Brasil "Encontros e Desencontros", filme premiado de Sofia Coppola, 2004, nos permite, nos seus 102 minutos, um mergulho nas luzes solitárias de Tóquio, na estranheza de desencontros espirituais e culturais, no tédio imenso de se enfrentar a vida - quase sempre estirada, lenta e sem sentido. O filme traz a lentidão, o tédio e a falta de sentido nos olhares dos personagens principais, encarnados em Bob Harris (Bil Murray) e Charlotte (Scarlett Johanson), e a afinidade existente entre esse dois seres que mal se conhecem; afinidade presente em gestos, atitudes e principalmente no olhar. Esse é o filme do olhar. O olhar que une os seres afins diante do turbilhão de um mundo oco, bestial e comercializado. Filme de amor extremamente sutil, com dois beijos rápidos perto da boca (fora o beijo delicado no final), um carinho de Bob no pé de Charlotte depois de uma conversa fragmentada numa cama de casal, após assistirem àquela cena de Anita Ekbert e Marcelo Mastroianni na Fontana di Trevi em "A doce vida", de Fellini. Tudo aqui - sentimentos na pele - é sugerido, e adivinhado. O que Bob sussurra no ouvido de Charlotte na última cena do filme? Podemos pensar o que nossa alma disser: talvez tudo o que arrebata e que dá um sentido ao que a vida destitui de sentido.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

o passeio da mariposa



Sempre tive sorte com a poesia. Aos seis anos, uma mariposa entrou no meu ouvido. Imagino que ela achou lá um bom lugar pra morar, não queria sair por nada nesse mundo. Eu sentia suas asinhas batendo lá dentro: tac tac tac. Não me apavorei não; e mãe, também sempre dada à poesia (mesmo sem saber), foi buscar uma lanterna: botou bem na porta do meu ouvido, e vem ela de lá voando voando, a mariposa, feliz da vida com seu passeio...