segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

"... Dorme, inventado imprudente menino"

Este último dia do ano resolvi passar com a poesia de Hilda Hilst. Principalmente com "Poemas malditos, gozosos e devotos", livro que ela escreveu dialogando com Deus. Nota-se, em todos eles, uma emergência em chamar Deus à carne, às sensações, à vertigem de existir...
Transcrevi um poema que vai abaixo, a fim de que ele possa dizer a minha voz, a minha procura pela poesia, a minha busca pelo gostoso sono de Deus.

V

Para um Deus, que singular prazer.
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve Nada: o homem:
Equação sinistra
Tentando parecença contigo, Executor.

O Senhor do meu canto, dizem? Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça.

sábado, 29 de dezembro de 2007

Orações

Li, uma certa feita, Harold Bloom dizendo numa entrevista algo muito interessante, e que era mais ou menos assim: decore poemas como você decora orações, e sempre fale para você mesmo em todos os momentos, seja os difíceis e os maravilhosos. Quando li esse conselho, lembrei que eu já fazia isso há muito tempo, desde que me apaixonei pela poesia. Decorei principalmente "Consolo na praia", de Drummond e falo para mim, constantemente, bem baixinho, em qualquer lugar: no ônibus, na fila do banco, na rua, sob a chuva e sob o sol...
Me vem agora, de lá das bandas de Pernambuco, esses versos de Mauro Mota:

AUSÊNCIA

Vestias diante do espelho
o vestido de viagem,
e o espelho partiu-se ao meio
querendo prender-te a imagem.

Prendo esses versos na memória e vou soletrando palavra por palavra. Lá fora a chuva veio fora de hora. É sábado. Tudo fica em estado de alerta para ouvir o poema que minha memória recita.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

"Maria, valei-me!"

Há uma receita mesmo de Ano Novo? Pergunto a Drummond, que escreveu uma. E ele me diz que as receitas, em si, nunca funcionam, de fato. Mãe já me disse isso uma vez, ela que vive de colecionar receitas de bolos e outras guloseimas. A receita não é o suficiente, é preciso algo a mais que não está lá escrito (óbvio). Talvez por isso eu nunca tenha conseguido fazer um arroz que preste: me falta este algo. Então, como criar uma receita para se ter um ano feliz?, como?, se um lance de dados jamais abolirá o acaso...? Basta ter fé? "Maria, valei-me!", digo o que mãe não se cansa de dizer, é o bordão dela desde que nasci e a conheço... Digo: Maria, valei-me do tédio, valei-me. O tédio perfura a nossa alma, sorrindo. O tédio é cínico, nauseabundo. Principalmente quando todo mundo só fala em festejar e esperar, com fé, o ano que está chegando... Antigamente era hábito para mim, no primeiro dia do ano, datar. Estivesse onde estivesse eu tinha que arrumar uma folha de papel em branco e datar, escrever pela primeira vez o ano novo, deixar marcado que eu estava ali, naquela data suprema... Tudo deixou de ser novidade. Mas claro que tenho fé num ano bom, mesmo sabendo que o tarô não me deu a melhor carta para esse ano. Mas tudo bem, não vou ter fé em cartas. Vou ter fé em mãe, que reza por mim todas as noites e depois sempre reclama: "Rezei tanto pra você, por que aconteceu isso?"; ou: "Rezei tanto pra você conseguir, que bom!" Maria está sempre por perto, lhe ouvindo, eu sei...

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Contínua prosa do contra

A sensação é que o tempo parou, tudo parou para esperar 2008. E essa angústia que me consome? Esse mal-estar de final de ano? Onde ancorar tudo isso? Nas sobras de 2007? Na verdade, o que são 2007, 2008...? A vida é cíclica, só aumentamos de idade. Os dias da semana se repetem, os meses se repetem, as estações se repetem, o seu sorriso e o seu choro (vixe, cuidado com a auto-ajuda, Aeronauta). Tudo é uma repetição só. Não, não estou de mau humor hoje, estou até tranqüila. Só que não agüento mais as convenções. Quero dizer que a data de hoje é 27 de dezembro, e que já vi muitos 27 de dezembro. Sempre volta o 27 de dezembro. Sempre voltam os shows para festejarem o ano que chega: na passagem de 1917 para 1918 foi assim mesmo! Só as pessoas se vestiam diferente, ou dançavam diferente, sei lá. Mas a expectativa, as palavras de "feliz ano novo", os cumprimentos, são tudo coisas que se repetem. Chega uma hora em que a gente enjoa. É muito provável que guardo na parte mais superficial de minha alma todos os milênios de existências consumidos em ter a ilusão de ver mudar as coisas numa queimada de fogos, ouvindo trilhões de vezes "feliz ano novo". Ultimamente estou meio Bouvard e Pécuchet: todos, afinal, temos algo dessa flaubertiana dupla.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Prosa do contra

Festas de final de ano sempre me deixam desconfortável. Nervosa. Irritada. Esse "ter de" passar o Natal ali, "ter de" passar o Reveillon acolá, "ter", "ter"... Muitas vezes renunciei a gente e resolvi passar as duas datas sozinha, muito bem sozinha, na minha casa. Que coisa boa! Nada de festas, nada de cumprimentos, nada de alegria, apenas paz. Uma paz enorme, ao constatar que aquelas datas estavam passando dentro de mim em silêncio, e não em algaravia com um monte de gente. Ah meu Deus, será que preciso mesmo aprender a não ser só? Quero ser só, que diacho. Que me deixem em paz na minha casa de joão de barro, oh. Estou mesmo nervosa hoje. E não só hoje, desde o início dessas festas que não acabam nunca - uma grudada na outra. E este chamado recesso é horroroso. Porque não há recesso em paz. Há recesso com um monte de obrigações. Fazer isso, fazer aquilo. Enquanto que o que desejo é dormir. Dormir um sono longo, longo, longo... E que não me acordem, façam o favor! Almoçar, para quê? Já almocei com algum anjo sem-que-fazer em algum lugar do espaço! Há algo demais em querer a preguiça? Em não querer fazer nada? Em não querer falar nada? Que me deixem com um disco de Bach, só isso, e estarei em paz.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Conversas natalinas

É tarde, quase noite de Natal. E meu sobrinho, de dez anos, telefona para mim dizendo que sabe que Papai Noel não existe mais. E que não saiu perdendo não, pois os presentes continuam garantidos. E que Natal é a festa que mais gosta, nem o aniversário dele é tão bom. E que quando eu for, à noite, para a ceia, não me esquecer de levar o cd que lhe tomei emprestado: "Um século musical: o melhor da música brasileira", que tem "conversa de botequim", lembra?,de Noel Rosa, música que ele ama pois acha muito engraçada. Ah, e que eu leve emprestado - "como se fosse presente de Natal", o meu disco de Beto Guedes. Outra coisa: que ele ficou ontem, até às onze horas da noite, ouvindo com o pai o cd de Elis Regina que eu lhe dei na quarta-feira. E que "o cd,titia, é fantástico: Elis cantando samba!"...

Ao desligar o telefone, tento buscar a menina de dez anos que fui, perdida do outro lado de uma linha que não existe mais. O que ela ainda sente? O que ela ainda gosta de ouvir? O que ela gostaria de ganhar neste Natal?
Ela não responde. Anda longe, e daqui só consigo ver uma árvore pequena que mãe armava todos os anos em cima da mesa, forrada com um pano bordado de sinos coloridos... Agora, nem um rastro de Papai Noel. Nem de um som natalino. Mas a menina está lá dentro, eu sei, insistente e pálida, aguardando.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Prece de Natal

Há mais ou menos seis meses não escrevo um verso, um poema. A poesia me abandonou por uns tempos. Escrever poesia requer arrebatamento, alma em eterna suspensão... É mesmo a poesia que se escreve no poeta, como disse Octavio Paz. E ela me deixou por uns tempos, volto a dizer. Uns tempos longos, que são os tempos de se crer numa realidade que se impõe, que diz assim: olhe, estou aqui, me veja, existo mesmo, não sou alucinação. Nunca acreditei na realidade, desde criança prefiro o outro mundo, não esse de compras e pagamentos, de nota de dez reais e do trovejo que é carregar moedas, de sair querendo uma bolsa nova e um sapato novo. Desde criança construo meus próprios sapatos, e meus vestidos são do organdi mais fino, mais tênue, mais imperceptível... Ah, e uso chapéus antigos, de muitos séculos passados, todos eles costurados com agulhas invisíveis e dedos vagos. Não, não sou e não quero ser desse mundo. Não quero essa realidade. Essa mesma agora de ir ao Shopping Piedade e ter que me enternecer, morrer de pena daquele monte de papai noel debilóide dançando, pedindo a caridade de serem vistos e apreciados. Tenho horror a qualquer festa que não seja a do espírito que dança do outro lado do mundo... Olhem, vejam!, a festa é linda, tem igrejas e anjos barrocos, preces e sonhos loucos... desses que a gente só tem quando estamos soltos, leves, completamente mortos.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Vasto mundo (À maneira de... Carlos Barbosa)

Como escrever para alguém que entorpece a alma? É, eu escrevo para você. Há muito tempo. Nós dois sabemos disso, veladamente. Sua alma brinca de se esconder comigo, eu aceito o jogo. Me solto num túnel perigoso onde só amar é preciso, só amar, você está ouvindo isso?, amar, amar, palavra mais louca, imprecisa, precisa, como andar numa gangorra. Como estar aqui, antes que você, ou eu, um dia morra, e nunca mais poderemos nos alcançar. Como, pergunto ao mundo, talvez ao meu primo Raimundo, como lidar com rimas tão inseparáveis?, com rimas pobres mas terríveis? Como, "Mundo"?, sua avó, de oitenta e cinco anos, agora lhe pergunta através de minha voz.

domingo, 16 de dezembro de 2007

"Eis a noite!"

Postagem de número 71. Não sei se vai ao ar. Não sei se passará pelo crivo cruel de minha leitura. Sou cruel comigo: na adolescência eu mordia meu braço quando estava com raiva. Mordia até ver o formato de meus dentes na pele. Era como se eu mordesse o mundo, com todo o veneno possível que havia em mim. Não sou flor que se cheire, como dizia minha mãe. Não venha para cá com dó de mim, que lhe cravo os dentes. Já pensei muitas vezes em matar. É, com revólver. E bem no meio das costas do fulano. Aquelas costas brancas, nojentas, que abraçavam uma outra pessoa. Aquelas costas que não vão me dar agora a infeliz idéia de um trocadilho clichê. Aquelas costas que são a parede branca, insustentável. Não, essas costas não merecem metáfora nenhuma, nem as piores. São costas largas, frias, cheias de odores. E que nunca me quiseram.
É, não sou mesmo flor que se cheire. A cara e o tamanho enganam. As palavras também. Já me atirei diversas vezes num rio anônimo que passava no fundo de minha alma. E cada vez que fazia isso mais minha alma renascia. Ah, "Eis a noite!" como escreveu João Alphonsus! "Eis a noite!" - conto que me deixou boba de emoção como uma solteirona - uma mulher "entrada em anos", bem machadeana. Ah, "Eis a noite!", repito bem alto para alguém na rua me ouvir, e me ver da janela acenando.

"Uma coisa assim"

(Antigamente quando as pessoas nasciam os pais saíam porta afora soltando foguete. Alegria! Mais um veio ao mundo![Para quem não sabe do que estou falando, foguete é a mesma coisa que fogos de São João]).
Sempre tive pavor a foguete. Quando criança era a coisa que eu mais tinha medo, além de cachorro. Lembro de uma festa do Divino em que fui com minha avó para a última novena, num sábado à noite. Ao sairmos da igreja, a foguetada começou. Foi um horror danado. Eu chorava, grudava na minha avó, e entrei na primeira casa que vi pela frente. E eles, os fogueteiros, não acabavam jamais de festejar: era um foguete atrás do outro. E minha avó nunca foi de ter muita paciência, só com Raimundinho, um neto que ela criou para dar a São Paulo e não virar solução para ninguém, só rima para o mundo; "Mundo" - que era como ela lhe chamava com dengo. Pois bem, eu, ela e Raimundinho, presos naquela praça enorme da Matriz, dentro da casa de uma pessoa que não conhecíamos, só porque eu me pelava de medo de foguete... Eu gritava e chorava sem nenhum pudor (devia ter uns oito anos), para ver se os fogueteiros paravam. Que nada! Depois de mais de uma hora nisso, minha avó me puxou pelo braço e foi me levando pela praça incendiária. Com tanto foguete, a praça era um clarão medonho numa das cenas mais horríveis que tenho lembrança. E eu saí correndo e ela e Raimundinho correndo atrás de mim, algo risível. Quando finalmente conseguimos chegar em casa, minha avó falou para mãe, quase cochichando, que nunca viu "uma coisa assim": "Que menina medrosa é essa, Té?"
Outro desencontro que tive com minha avó aconteceu quando eu era bem pequena: devia ter uns cinco anos. Fomos todos para a sua casa e de lá mãe saiu escondida para um povoado perto. Saiu escondida de mim, claro. Quando procurei por ela e não encontrei dei início a um choro de fazer qualquer um ficar doido. E minha avó dizendo: "deixe ela chorar". E chorei mesmo: o dia inteiro. Só que teve uma hora em que ela já estava perdendo a paciência e falou em me bater. Não me esqueço da revolta que senti nesse momento ao pensar na maior verdade que acreditava existir: avó não tem direito de bater em neta...

São essas as duas grandes lembranças "chatas" - de infância - que trago de minha avó. Uma mulher danada, sem papas na língua, e que só tinha dengos mesmo era para Raimundinho... Raimundo, aquele primo que São Paulo carregou a fim de ser uma triste rima para o mundo. Esta história outro dia eu conto.

Escrever

O que faz a gente parar de escrever? Talvez este seja um bom mote para um domingo feio. Nunca me esqueci daquela pergunta de Rilke ao jovem poeta Kappus: "morreria, se lhe fosse vedado escrever?" Se sua resposta for "afirmativa", diz o poeta, "então construa a sua vida de acordo com esta necessidade".
Muitas pessoas acham somente romântica e idealizada tal pergunta rilkeana.
Eu não. Desde os doze anos sou impelida a escrever, obrigada a escrever. Algo de não-sei-onde me manda ir escrever, como se gritasse no meu ouvido: escolha: ou você escreve ou você mata alguém. Ou você escreve ou você se mata. Sei lá, coisas dramáticas assim.
Mas Raduan Nassar está aí para confirmar que é possível parar de escrever.
E muita gente que escreve e está feliz nesse momento pode afirmar: não quero escrever, sobrevivo se me fosse vedado escrever. E não escreve e pronto.
Borges estava certíssimo ao afirmar que a felicidade é estéril, e que a infelicidade quer ser transformada em alguma coisa. A felicidade é assim: a gente fica alegrinho, bobinho, dá muitas risadinhas, se arruma para esperar o namoradinho, e dão juntos muitos abracinhos, beijinhos, tudo no diminutivo, tudo no diminutivo...
Não estou aqui fazendo apologia ao sofrimento, de maneira nenhuma. Faço apenas apologia à possibilidade de poder transformar minha infelicidade em alguma coisa.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

"Ninguém sabe nem saberá"

Devo ter herdado mesmo de meu pai essa nostalgia, essa lágrima pendente, sempre pronta a cair, esse desespero de amar... Esses dias enormes que nunca acabam, nem por decreto de algum poeta invisível. Oh, Quintana, venha me visitar agora e me diga o seu "ora bolas!" Preciso rir, talvez relembrar que visitei o hotel de Falcão em Porto Alegre e na minha idiotice não sabia que você morava lá. Ah, se eu soubesse... Bateríamos longos papos, talvez. Talvez não, naquela época, aos vinte e poucos anos, eu era mais bicho do mato do que sou agora. Mas eu já tinha colado no meu guarda-roupa o seu poema "Canção do dia e de sempre". E achava que você estava certo. Eu sempre quis ser sábia e engraçada, como você, e nunca consegui. São esses dias, Quintana, esses dias que não acabam nunca...
É, devo ter herdado mesmo de meu pai essa melancolia absurda, essa emotividade sem freios, esse meio olhar para a vida. Todas as cartas de amor não respondidas, os sorrisos não trocados, a esperança lírica e íntima, sempre, açoitando... E a certeza de um destino escrito, ano a ano, num papel branco, como que se esboçando para o dia que nunca chega, que nunca chegará... Ah, Cecília, só tua vida poderá dizer da dor, a minha não. E eu fico aqui chorando diante da única tragédia que é apenas existir. Nem sou dentuça, não é, Bandeira? Nem tísica sou. Deveria estar agora numa roda de amigos bebendo vinho, sorrindo, ao invés de dedilhar, piegas, no computador.
Mas herdei mesmo de meu pai esse pendor para o choro, para pôr a mão na cabeça como minha tia,sua irmã, sempre fazia, a gritar: "O que esperar, Senhor?" Toda a sua família é assim, gente desesperada, gente como eu sou, que nunca soube negociar com o mundo, com a dor. "Oh, não se mate Aeronauta", me diz Drummond... Escuto sua voz daqui onde estou: ela de novo diz baixinho que o amor é mesmo "sempre triste, minha filha"... E ainda me pede devagar: "Mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá."

domingo, 9 de dezembro de 2007

Natal


O Natal está próximo, e eu sempre fico tão emotiva... Abri minha caixinha de guardados e de lá tirei as cartas que meu pai escreveu para minha mãe em época de namoro. São cartas muito simples e tocantes, e cada uma vem dentro de um envelope de papel azul e delicado, escrito atrás: "À jovem Terezinha Novaes Santos - Fazenda Campinho." Releio agora todas elas e sinto uma saudade esquisita, uma dor no peito, uma vontade de chorar...


Lagoinha, 22 de dezembro de 1961.

Inesquecível Té,

Primeiramente meu abraço.
Té, até o momento vou indo bem graças a Deus. Como vai você
e Dona Calu e os meninos, vão bem?
Té, aviso que não posso ir essa semana. Não posso ir à Festa.
Desejo que você dance bastante e seja feliz no Natal.
Não sabe como fico de não poder passar o Natal aí com vocês,
mas logo depois passarei o Ano Novo aí com você.
Té, peço que você mande a minha roupa por pai. Sem mais,
termino com saudade deste que lhe ama loucamente,

Bino.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Quando meu avô morreu

Quando meu avô morreu, minha avó teve um comportamento considerado estranho, principalmente por sua cunhada, irmã de meu avô, que não gostou nem um pouco do que viu.
Era noite quando chegamos lá na roça. Eu abraçava mãe e não acreditávamos naquilo tudo: a casa cheia, uns candeeiros clareando a imensa sala, e muita gente chorando. Minha avó foi nos receber na porta, assim como ela estava fazendo com todas as pessoas que chegavam. E também repetiu o que dizia desde que ali entrou a primeira pessoa: "Parem com essa besteira de chorar, gente! Que chororô que nada! Todo mundo um dia vai morrer! Hoje foi ele, amanhã sou eu, depois serão vocês! Entrem, entrem, mas nada de choro, nada de choro!" A repetição empolgada do "entrem, entrem", fazia parecer que ela abria as portas para uma festa. Claro que achei estranho, mesmo sabendo que minha avó sempre foi tirada a engraçada, quase seca para a vida, fazendo desdém das coisas, mas naquele dia ela ultrapassava todos os limites.
Fomos para o quarto: eu, mãe, minha tia, minha prima... Mãe estava mal, chorava muito. E minha avó, depois de receber as últimas pessoas que chegavam, entrou com um rompante no quarto que estávamos e tratou logo de explicar como meu avô morreu: "Assim, ó, de repente, sem quê nem pra quê! Depois dei banho, tá lá todo limpinho, cheiroso, ninguém pode dizer que não cuidei!" Dizendo isso, foi se sentando na cama junto com a gente, sem uma lágrima no olho, numa excitação juvenil: "Deixem eu falar pra vocês o que sofri com esse véi a vida toda!" Daí abriu sua vida, contou tudo, desde o casamento até aquele dia. "Ah, minhas filhas, esse véi nunca prestou, não é porque morreu que eu não vou contar tudo". E abriu mesmo o verbo: todas as traições, os filhos que ele teve fora do casamento, as pensões para as outras que ela sempre lhe obrigou a pagar... "Na primeira traição desmanchei o jirau e nunca mais dormi com ele! E digo mais, minhas filhas: tomara que não tenha ninguém na família que puxe a este homem!"
Assim foi a noite toda: minha avó, lavando a alma, contou o que queria com muita graça, e nós não conseguimos deixar de não rir. Até mãe chegou a rir numa determinada ocasião, mesmo com o rosto inchado de chorar.
Na casa todos comentavam aquele comportamento de Dona Calu. Que coisa! Nem uma lagrimazinha! "Esse véi foi ruim demais, minhas filhas, e que Deus lhe perdoe!", ela repetia. Minha tia-avó (irmã de meu avô),diante de todo esse teatro, se sentou na cozinha e ficou lá com a cara amarrada de ressentimento.
No outro dia, bem cedo, acordamos com as ladainhas tiradas, na sala, por minha avó bastante animada. As rezas eram tristes, mas ela alteava no tom e a coisa perdia um pouco a dramaticidade. Na hora do adeus final, foi ela quem ordenou aos filhos fazerem uma fila para darem a benção ao "véi" que estava partindo. "E os netos também, têm que vir", ela gritou. Lá fui eu na fila. Minha irmã fingiu que ia, aproveitou a distração de minha avó e não foi não, se escondeu no meio do povo. E a ordem continuava: "Dêem a bênção e beijem a mão dele!" Todos obedeciam. As pessoas presentes buscavam lágrimas nos olhos dela e, nada achando, murmuravam entre si: "Como é que pode? Que velha dura é essa?"
A fila dos parentes todos se despedindo foi grande. Isso levou mais ou menos uns trinta minutos. Depois ela voltou ao comando: "Tampem o caixão, está na hora!"
Na porta, uma caminhoneta com o fundo aberto esperava. O cemitério era longe, o enterro seria acompanhado de carro. Os filhos pegaram o caixão e foram saindo, colocando-o, a seguir, na caminhoneta. Minha avó no batente da porta olhava, com o olho seco. Fecharam a caminhoneta. O motorista ligou o carro. Minha avó no batente da porta olhava para tudo aquilo, dura. Depois mexeu no lenço da cabeça e começou um choro longo, doloroso, entrecortado de soluços.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

O "motivo da rosa"

Esqueçam! Esqueçam tudo que eu disse até agora sobre esse negócio de amar e ter que ser amada, fui muitíssimo leviana. Isso porque só hoje tive acesso a uma verdade extraordinária. Quem me disse foi alguém de outro mundo pela boca de uma pessoa próxima, que tem a missão de me ajudar nessa milésima vida que estou vivendo. Eu, no meu primarismo existencial, querendo receber amor a qualquer custo, a ponto até de desejar voltar a passar facão na cabeça de gente que não me amava, aprendi, hoje pela manhã, algo sublime. Sabe dessas verdades que a gente não ouve todos os dias? Que os ventos escondem atrás das pedras em dias de muito sol? Que nas noites de tempestade os trovões fazem questão de esconder dos nossos ouvidos? Que Deus embaralha nas cartas do tarô para que não possamos saber senão na hora certa?
Eis a hora, Aeronauta. Desculpem, leitores, mas não posso contar, é segredo.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Rimas desagradáveis

Sempre amei muito. E sei que ainda tenho uma propensão grande para amar. Mas o amor é algo tão difícil que aos quinze anos eu já dizia para mim aquele poema de Drummond: "Carlos, sossegue, o amor/ é isto que você está vendo:/ hoje beija, amanhã não beija"... etc. E completava, à maneira minha e do poeta: "Aeronauta, sossegue","depois de amanhã é domingo/ e segunda-feira ninguém sabe o que será". Cruel esperança, essa do amor. E repito o que disse Mário de Andrade no conto "Vestida de preto": "Minha impressão é que tenho amado sempre..." Frase simples, mas que desde a primeira vez que li me causou um impacto enorme. Sabia, secretamente, que essa seria a minha verdade mais íntima e dolorosa.
Isso tudo porque aquela história de dizer que o que vale a pena é só amar sem esperar amor de volta é apenas uma história bonitinha e inverossímil. Eu amo e quero amor de volta, sim... Por que senão como sobreviverei? Morrerei de fome, morrerei triste e perdida, chorando igual a uma condenada...
(Nesse instante me lembro de uma coisa risível: aos onze anos eu tinha um caderno de pensamentos, rimazinhas pobres, versinhos bobos, e um deles dizia: "amar e não ser amado é melhor morrer crucificado" (ah, ah, ah). Toda vez que me lembro desses pobres versos me dá vontade de rir. Puxa, eu, aos onze anos, com um gosto miserável para a poesia, já acreditava nessa verdade secreta, e mal-formulada em rimas tão desagradáveis...)

Orações

Li, uma certa feita, Harold Bloom dizendo numa entrevista algo muito interessante, e que era mais ou menos assim: decore poemas como você decora orações, e sempre fale para você mesmo em todos os momentos, seja os difíceis e os maravilhosos. Quando li esse conselho, lembrei que eu já fazia isso há muito tempo, desde que me apaixonei pela poesia. Decorei principalmente "Consolo na praia", de Drummond e falo para mim, constantemente, bem baixinho, em qualquer lugar: no ônibus, na fila do banco, na rua, sob a chuva e sob o sol...
Me vem agora, de lá das bandas de Pernambuco, esses versos de Mauro Mota:

AUSÊNCIA

Vestias diante do espelho
o vestido de viagem,
e o espelho partiu-se ao meio
querendo prender-te a imagem.

Prendo esses versos na memória e vou soletrando palavra por palavra. Lá fora a chuva veio fora de hora. É sábado. Tudo fica em estado de alerta para ouvir o poema que minha memória recita.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Bate-papo num final de tarde

O que escrever num final de tarde de quarta-feira? Tudo, menos sobre a falta de assunto, que já tem tradição na crônica brasileira. E o pior é que há muito assunto nas mãos. Há assunto demais, eis o problema grave. Como retirar tudo de dentro de mim para gravar no mundo? É falta de modéstia isto? Creio que não, pois o que tenho dentro de mim não é lá grande coisa, mas precisa sair, eu preciso limpar o terreno. É algo parecido com varrer aquele grande terreiro onde eu brincava com minha irmã, aos dois anos, na frente de lá de casa. Varrer bem varridinho para depois brincar, pular macaco (amarelinha) até dar dor de facão. Quando criança adorava girar, girar, girar, até ficar tonta e cair. A sensação de vertigem sempre me acompanhou como sedução, vontade de ir ao outro mundo e saber como é. Por isso amei tanto. Por isso de mim tenho essas notícias - palavras que se arrastam no meu ouvido e voam nas teclas do computador. Ah minha Drummondina... Onde estás agora? Você que eu cuidava como se cuida de um filho, sujando minhas mãos de vermelho quando ia trocar a sua fita... Você que sabia de minhas ambições de um dia me tornar escritora. Não é tão fácil como eu pensava, Drummondina. A "Manuela" de Mário de Andrade teve mais sorte que você, que eu. Tenho alguns poemas engavetados, tristes, buscando passear em letras impressas. Tenho essas croniquetas aqui, que se estivessem sido escritas em você, querida Drummondina, ninguém iria ler. Mas tenho alguns dez ou onze leitores assíduos que lêem essas besteiras que escrevo e comentam, isso porque estamos em dois mil e sete e eu finalmente aderi ao computador.
Escrever é mesmo buscar a vertigem, como eu fazia na infância: girar, girar, girar, ficar tonta e cair. É a mesma sensação de amar, amar, amar, e

domingo, 25 de novembro de 2007

Para a posteridade


Duas meninas lindas, com o mesmo tipo de vestido. Pressinto que vocês já devem saber quem é a Aeronauta aí.
Minha mãe encerava a casa com uma cera vermelha e um escovão. Ficava lustrando. E adorava forrar latas e enfeitá-las com plantas. Cenário ideal para tirar retrato das duas meninas. Nesse dia tenho a vaga lembrança de que brincávamos na varanda, perto do quintal. Mãe nos chamou, correndo: Mozart, o retratista, estava passando na rua, vamos aproveitar, disse ela, para tirarmos um retrato... Qual o lugar? Aqui, no corredor, junto dessa planta. Ah, eu com medo do retratista, com medo do retrato, com medo de tudo que era do mundo! Minha irmã, linda, sorria e estalava os dedos, sua mania preferida; enquanto o que eu desejava mesmo era entrar na parede e fugir daquele retrato e daquela máquina que tinha um bojo branco enorme olhando para o meu rosto. Os cabelos assanhados, vim correndo, mãe tinha pressa e o retratista não poderia esperar. O jeito era encarar para ficar livre logo: juntei minhas mãos em situação de desespero e resignação... Era para a posteridade, poderia estar pensando minha mãe...

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O lirismo de meu pai

A imagem de meu pai é a imagem do lirismo. Sorriso terno, bigodinho a la anos sessenta, calçados vulcabrás e calça estilo social. Usava óculos e me chamava de "papai". A minha irmã ele chamava de "pai". Via, nessa diferença de apelidos mimosos, mais carinho por mim: óbvio, "papai" é mais carinhoso que "pai". Depois cresci e comecei a desconfiar: achava que "pai" demonstrava algo mais sólido, mais seguro, mais firme. E "papai", não-confiança. Coisas de semântica amorosa, ciúmes e intrigas de amor. Triângulo que cedo se formou entre mim, ele e minha irmã. Minha irmã sempre ganhou na esperteza: fazia cálculos, estratégias, e conseguia dele tudo o que queria. Eu não, nunca soube nada de técnica, medidas, era impulsiva, levava o coração na frente sem pensar antes, e só resultava em burradas.... Resultado: em todas as fotos antigas minha irmã está ao seu lado. Em todas as minhas lembranças minha irmã está ao seu lado, sempre sorridente, a chata, grudando nos dois braços dele. O que me restava mesmo eram o carinho e os beliscões de mãe. Mas cadê o lirismo?
Ah, o lirismo... Meu pai gostava de ler. Gostava de poesia. E no meu primeiro dia de aula comprou para mim um caderno de desenho e uma caixa de lápis de cor. Quando comecei a escrever poesia, ele mostrava para todo mundo. Porém, nessa mesma época, minha irmã quis aprender a dirigir. Que orgulho também para esse pai! Ter uma filha que dirigia carros, que sabia resolver coisas em bancos, que lhe ajudava no sindicato, que sabia falar para pessoas estranhas. Claro, essa filha não era eu. Eu era a filha que sabia escrever poesia, e que aos vinte e dois anos publicou seu primeiro livro. Ah, que orgulho também! Mas nesse tempo já era, talvez, tarde. Ela me roubou ele na infância, em algum momento completamente esquecido por mim. As fotos nada dizem, só mostram: eu com mãe, ela com pai. Sempre. Nas festas, nos batizados, nas fotografias oficiais que ficavam penduradas na parede da sala... Uma das minhas últimas lembranças de infância de nós dois juntos foi ele me trazendo no colo, aos seis anos, depois de eu ter dançado a noite inteira numa festa. Vinha suada, no seu ombro, pelas ruas, quase dormindo... Um colo tão bom, tão terno, que nesta parte da lembrança minha irmã não aparece. Sei que ela também vinha da festa, mas não me lembro como, a interesseira. Ah, era um colo tão bom, tão límpido, tão amoroso, tão reconfortante, tão lírico...

domingo, 18 de novembro de 2007

Nuvens de outro mundo

Se há um dia em que deixo completamente de existir, esse dia é domingo. Olho para a cama, a cama olha para a mim, só assim para passar o dia de domingo: dormindo. Há um ímã benfazejo entre a cama e meu sono, a cama e meu corpo, a cama e a minha íntima vontade de não viver. Ir para a praia tomar banho de mar? "É um porrete...", como disse Vinícius no "Poema enjoadinho", em outro contexto, claro. Ir para a casa de algum amigo ou amiga, para assistir a filmes e fofocar? Melhor meus sonhos, enquanto durmo, e, ao acordar, pensar em como seriam as pessoas de outro mundo. Ou as pessoas da década de vinte, trinta e quarenta: com aquelas roupas antigas com cheiro de naftalina e uma nostalgia de um tempo que não vivi. Seria bom num domingo desses ir para a década de quarenta e lá encontrar H. Ouviríamos Albenzio Perrone cantando uma valsa no rádio,e depois passearíamos pela praça deserta. Quem sabe à tarde um filmezinho no Cine Sempre-Viva? Não, eu não tenho a vida que gostaria, é sempre outra a vida que a gente tem, não é verdade? Sabe, Ivan, sou uma máquina, mas uma máquina chorona, você que ainda não me conhece de longas datas pode não saber disso. Outros, que já passeiam nessa aeronava há mais tempo, sabem. Ah, gostei de ser tema de seu segundo post (http://ivandmitri.wordpress.com): fiquei importante por um dia, e (que ironia) um dia de domingo. Dia que não existo: fecho portas, janelas e cortinas e vou dar um passeio nas nuvens de outro mundo.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Meu amigo do invisível

E não é que um dos meus amigos virtuais, que comentam aqui, descobriu o meu endereço e deixou na portaria um presente de aniversário? Pois é. Não sei quais foram os indícios que deixei nesse blogue para ele conseguir as pistas de minha casa. Sei que ele acertou em cheio o meu gosto: deixou o livro "Da preguiça como método de trabalho", de Mario Quintana. E segundo o porteiro me informou, ele chegou aqui de madrugada. Veio todo de branco, como alguém de outro mundo, acordou o porteiro que estava dormindo em serviço e disse que não era preciso me acordar. Entregou o livro. Dentro, uma dedicatória: "Para Aeronauta, aérea persona, dona dos cabelos emaranhados de poesia e preguiça, este método de mestre. Do amigo Carlos Barbosa. 10.nov.2007".
Abro o livro e Quintana me diz: "Não despertemos o leitor. Os leitores são, por natureza, dorminhocos. Gostam de ler dormindo."
Entendi o enigma... Por isso meu amigo virtual não interfonou: ele queria que eu continuasse dormindo ao receber esse livro maravilhoso, metáfora de tudo.

domingo, 11 de novembro de 2007

Doloroso silêncio

Aos quinze, dezesseis anos adorava ler e reler as cartas trocadas por Manuel Bandeira e Mário de Andrade. O livro era uma ediçãozinha de bolso da ediouro ("Mário de Andrade: Cartas a Manuel Bandeira"), com uma letra minúscula, coisa para a gente ler de lupa. Mas naquele tempo nem usava óculos ainda, por isso poderia ler e reler quando quisesse. Na leitura dessas cartas fiquei sabendo que Mário batizou sua máquina de escrever de "Manuela" - claro, em homenagem ao seu querido amigo Manuel Bandeira. Puxa, adorei aquela idéia. E só pensava no dia em que poderia fazer o mesmo: comprar uma máquina e batizá-la com um nome assim, bastante singular, no qual eu homenagearia um escritor querido.
Apenas aos dezoito anos tive dinheiro suficiente para comprar minha primeira máquina. Uma máquina verde, portátil. Eu já havia feito curso de datilografia, datilografava com todos os dedos, rapidamente. Fiquei imitando Clarice Lispector, que dizia escrever com a máquina no colo enquanto olhava os filhos. Eu não tinha filhos, mas escrevia em qualquer lugar, usando o mesmo artifício clariceano - na sala, no quarto, na cozinha, no quintal, etc. Naquela época andava apaixonada demais por Carlos Drummond de Andrade e não pensei duas vezes: escrevi na própria máquina o nome "Drummondina" e colei na parte da frente da fulana. Pronto, minha máquina agora tinha um nome singular.
Com essa máquina escrevi muita besteira - achando que estava fazendo coisa grande, começando minha vida de escritora. Eu me sentia o máximo, datilografando literatice, tentando preencher minha vida vazia de péssima literatura feita por mim. Com bons sentimentos, o que é o pior. Ah, aqueles sentimentos eram bons demais para se fazer boa literatura. Para onde foram esses textos só o grande rio de minha terra poderá dizer, e pelas mãos de mãe, que fez essa caridade. Eu andava na época tentando imitar Cecília Meireles, era um horror, saía cada coisa de doer.
Mais tarde dei de cara com um livro magistral, emprestado por um amigo: "Cartas a um jovem poeta", de Rilke. Após ler e perceber que não poderia ficar com ele (nunca fui de roubar livros), pensei numa tarefa extraordinária: datilografar o livro todo. Eu precisava ter aquele livro para ler em todas as ocasiões de minha vida. E a tarefa foi maravilhosa: bati rápido, terminei logo. Depois fiz uma capa e com minha própria letra desenhei com um hidrocor verde: "Cartas a um jovem poeta - Rainer Maria Rilke". Lembro que quando me apaixonei de verdade, pela primeira vez, emprestei esse livro datilografado àquele que acreditava ser o homem de meu destino. Nem sei se ele leu. Me entregou depois de muito tempo, após eu ter insistido bastante pela devolução, sem me dizer uma palavra. Foi o primeiro doloroso silêncio de amor da minha vida.

sábado, 10 de novembro de 2007

Nasci...

Nasci numa madrugada de 10 de novembro. Para que dizer o ano? Para vocês descobrirem minha idade? Não, basta, tenho mil anos. É o que sinto, sem nenhuma pretensão de sabedoria. Ter mil anos significa a sensação de estar na vida há muito tempo, milenarmente. E isso não me dá sabedoria nenhuma, muito pelo contrário. Dá uma espécie de gastura (essa palavra é engraçada).
Mãe veio passar esse 10 de novembro comigo, como todos os anos ela faz. E eu pergunto, mais uma vez para ela, sobre o tal do nascimento. E ela diz: "seu pai estava no jogo, e quando ele chegou, de madrugada, por pouco você já teria nascido". Ela nunca esquece de frisar que pai madrugava no jogo enquanto ela já sentia as primeiras dores do parto. E foi bem na hora que ele chegou do jogo que eu cheguei também, de outro lugar. Grande achado metafórico, já fiz até poema com esse acontecimento.
Enfim, cheguei. Chorando muito, claro. Muito, muito, muito. Acho que não queria vir não. Como disse um amigo meu, eu vim para a vida contrariada, pois estava muito bem lá numa biblioteca do outro mundo, e me mandaram na marra. Como não passar a vida toda chorando por causa disso? Lá a biblioteca era sortida, tinha livros para eu ler por toda a eternidade, e eu só iria fazer isso, só isso... Para que vir para o mundo para fazer outras coisas?
Mas aqui estou, até hoje, e ainda preciso repetir: "graças a Deus", como todos fazem, afinal não sou de quebrar corrente. Aqui também tem bibliotecas, só não posso ficar nelas o tempo todo. Aqui não é nenhuma Pasárgada, mas "é uma aventura de tal modo inconseqüente", que quando estou triste, "mas triste de não ter jeito", esqueço que tudo existe, e adormeço...

terça-feira, 6 de novembro de 2007

"Notívaga"

Sempre fui insone. Enquanto o mundo dormia, eu escrevia poemas. Minha irmã reclamava da luz acesa. Eu apagava a luz e rabiscava meus garranchos na penumbra do quarto. No outro dia as palavras estavam todas atropeladas umas nas outras, e eu ia passar a limpo. Como escrevi nessa época, meu Deus! Tanto papel hoje perdido, outros recuperados, muitos engolidos pelo rio (mãe jogou muita coisa fora nas enchentes que vieram depois que saí de lá de casa).
Lembro quando descobri a palavra "notívago": pronto, achei o que eu era - "notívaga". Nunca tive sono de verdade. Perambulava por outro mundo enquanto todos da casa e da cidade dormiam. Gostava de escrever e de ler à noite. Era o que dava sentido à minha tão insignificante vida. Sempre senti isso: a inutilidade, o ser inútil. Só as palavras coloriam a existência - essa foi a descoberta que fiz, inconscientemente,aos seis anos, quando aprendi a ler. Depois fui tomando consciência de que só ler era preciso. E escrever, para não morrer.
Será que é esse o meu contato com Deus? Deus é a literatura? Pois só nela vejo uma possível salvação. Só através dela saio da inutilidade, e consigo ir além de mim, além de toda a mediocridade, além de toda essa vida sem graça.
Ah, livro que me assombrava: "Alice no País das Maravilhas". Sofri tanto com esse livro, com aquele coelho de relógio sumindo e a menina indo atrás... Ah, sofri muito. Aquelas coisas todas absurdas acontecendo com Alice era carga demais para uma menina de sete anos ler. Eu tinha pesadelos. Lembro que a edição que pai comprou (o exemplar era de minha irmã) trazia uma capa rosa, e de tanto o livro passar de lá para cá, de cá para lá, a capa vivia amassada. Isso mais transfigurava a história terrível que existia ali dentro.
Será que foi tudo isso que fez com que eu perdesse o sono? E visse que a vida era mesmo a história de Alice? E que as maravilhas eram sempre coisas absurdas acontecendo, a todo instante? Mas que havia uma solução boa, triste, engraçada, reconfortante, salvadora: a de poder ler tais histórias, mesmo tendo pesadelos depois...?

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Se vocês não tiverem preguiça de ler...

Francis Ponge bem estava certo quando proferiu: "Não se sai da árvore com meios de árvore" (In: "O partido das coisas"). Claro, só podemos "sair" da árvore pela linguagem; ou seja, só podemos saber da árvore nomeando-a, definindo-a pela linguagem humana, pelo ponto de vista humano...
G.H., personagem de Clarice Lispector (In: "A paixão segundo G.H."), descobriu, ao comer a massa branca da barata:"... a vida é dividida em qualidades e espécies, e a lei é que a barata só será amada e comida por outra barata", "pois a lei é que eu viva com a matéria de uma pessoa e não de uma barata". Então não havia despojamento naquele ato: uma mulher, comendo a massa branca de uma barata a fim de transcender sei lá o quê... Não há como. Assim é que G.H. descobre que ela não era santa, e ao comer a massa branca da digníssima "ortópero onívoro" (como define o "Aurélio"), estava mesmo era "querendo o acréscimo". Enfim, cada qual com sua espécie e suas limitações, e suas vontades de bem-aventuranças...
Todo esse preâmbulo é consequência de elucubrações "existencialistas" que tive hoje pela manhã na "sala de terapia". Eureca! Descobrimos o fio da meada...
Se um ser humano é um abismo, o outro ao seu lado também é. Se um vivente (como diz minha avó) é nojento, o outro também é. Se sua amiga muitas vezes lhe chateia, você também muitas vezes chateia a sua amiga, mesmo achando que não, mesmo que involuntariamente. Concluindo, em termos rasteiros: todo mundo é da mesma laia, não tem jeito! Não dá para presentear sem pensar na cara de felicidade de quem receberá o presente - e que será a nossa parca gratificação. Nosso ego precisa ser amaciado, dengado, mal-educado que é. Isso porque somos da espécie humana. Posso sair dela?
Impossível.
Então, como não sofrer com o inferno que é o outro?
Talvez enxergando o próprio inferno que eu sou.(Resposta auto-ajuda, assumo.)
Eu sou mimada, peço amor a todo mundo, quero que todo mundo goste de mim, quero que todo mundo me admire, me elogie, quero que todo mundo me ame!!! Quando isso não acontece, adoeço. Adoeço pela falta de amor, não durmo direito, e choro choro choro... Não o dia todo, pontualmente, como na infância, mas choro. E é um choro sentido, convulsivo, vitimada que fui pelo desamor.
Como consertar esse estrago?
- Não querendo ser amada? Mentira, quero ser amada.
- Dando presente e esperando a reação de gratificação do outro, do amor do outro? Sim. O que posso fazer se não consigo ser santa, sair do acréscimo, sair da matéria grossa e rude de que fui feita? Como sair da limitada espécie da qual sou uma fiel representante?
Italo Calvino, ao elencar valores que só a literatura poderá nos legar nesse milênio (In: "Seis propostas para o próximo milênio"), nos diz da leveza. Aliás, é a "Leveza" a primeira proposta. E entre tantos trechos belíssimos que poderia citar aqui, fico com duas passagens. Diz ele: "A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório", e lembra Paul Valéry: "É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma". A outra passagem é quando é conjecturado retirar o peso da tristeza chamando-a de melancolia - a "gravidade sem peso": uma certa "relação particular entre melancolia e humor"... Explana a seguir:

"(...) Assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo (...) e põe em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de relações que a constituem."

Pronto, Calvino disse tudo que eu queria dizer e que o psicólogo sugeriu, ao tentar reconsiderar a minha declaração de não conseguir sair da limitação da espécie, da condição do peso. Ele falou, fechando a sessão: "sim, não é possível, mas comece a ver tudo isso com mais leveza..."
A leveza é o 'humour', uma certa compreensão engraçada sobre o outro, sobre o mundo, e que não significa sair por aí fazendo piadinhas, mas contemplar a existência como um grande "como se", e rir de você mesmo, tentar trafegar pela vida como um pássaro, e não como uma pluma, como ensinou Valéry. (A rima final faz parte dos rituais de bons fechamentos que finalizam, nos ínterins das "representações", o "como se": encerrando as cortinas, fechando o livro, indo para outro blogue, desligando o computador...)
... E se eu continuo querendo gratificação? Claro, um comentário depois de ser lido é sempre bom, mas só se vocês gostarem do texto... E se não gostarem também, pois preciso pôr em prática essas elucubrações todas.

domingo, 4 de novembro de 2007

A pretensa suicida

A primeira vez que tive contato com uma pretensa suicida, faz muito tempo. Ela tinha doze anos e já namorava um rapaz de dezoito que levava nas costas a fama de ser o maconheiro da cidade. Esses são os primeiros dados. Os seguintes virão depois. Na casa em que ela morava com os pais e a irmã, havia uma varanda que dava para o quintal. No muro da varanda a mãe delas plantou uns crótons enormes, cada folha era do tamanho - quase - das duas meninas. Folhas verdes com riscos amarelos, um negócio sinistro, ameaçando o mundo. A mãe logo alertou, quando os crótons cresceram: "Cuidado, nem cheguem perto, esses crótons são veneno vivo!" A expressão "veneno vivo" funcionou, porque as duas nem se recostavam na varanda. E quando isso acontecia, tratavam logo de um bom banho para não restar no corpo nenhum resquício do tal veneno.
Agora voltemos aos primeiros dados: a menina tinha doze anos e namorava o dito maconheiro da cidade, como já mencionei. A mãe mostrou as garras: batia na menina, chamava o dito cujo de "cão do inferno" e de "esqueleto humano" (porque o homem era muito magro), fazia escândalos no meio da rua ao encontrar os dois juntos, e dentro de casa era surra, muita surra na coitada. Aquilo foi desgostando a menina. Mas desgostando mesmo. Tanto que ela planejou tudo. A varanda. Os crótons. Era sábado. A mãe iria para o rio lavar pratos. Depois iria para a rua visitar uma tal comadre. Era o dia certo. E, para facilitar, ainda tinha uma pedra no quintal ao lado dos crótons. Uma pedra acolhedora, boa de sentar para esperar a morte. O que ela fez? Comeu a maior folha que tinha, a mais verde, a mais viva, comeu toda, só deixando o talo. Depois sentou-se na pedra. E lá ficou esperando, com a barriga cheia, a tal da Indesejada, ou melhor, nesse caso, da Desejada. Esperou sentada a tarde inteira, inteira...

Ah, minha irmã, como foi boa essa mentira de mãe! Por causa dessa mentira - a despeito de você, até hoje, ainda sentir a língua formigar em razão do cróton comido - podemos comemorar, neste dia de domingo, mais um aniversário seu!

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Procura-se

Não consigo me lembrar qual foi a primeira pessoa que não me amou, o primeiro gesto de rejeição, o primeiro desdém. Muito menos consigo me lembrar de meu primeiro ódio, meu primeiro esgar, ou minha raiva mais irada possível. De minha vida mais antiga só trago imagens inconclusas, todas elas em lusco-fusco, nostálgicas, nunca com sentimentos claros. Ora é o macaquito preto de bolinhas brancas que eu e minha irmã vestíamos quando nos mudamos da roça para a cidade, ora sou eu em minha primeira declamação de poesia da escola: aquele negócio de "quando era pequenina do tamanho de um botão, trazia papai no bolso e mamãe no coração..." etc. Mas raiva, raiva mesmo, não lembro de ter sentido na infância. Acho que fui neutralizada de qualquer raiva em razão de não me lembrar da primeira pessoa que não me amou. Quem seria essa pessoa? Em quais circunstâncias? Não há resposta, não há. O que ficou foi um abismo, um buraco, onde há muita raiva e muito amor dentro: os dois na mesma dimensão, com a mesma fúria: redemoinho que me leva para lá e para cá, num bruto estado de solidão. E que dá vontade de bater na cara, de esmagar alguém até ficar roxo o lugar da batida. Esse "alguém" tem rostos emprestados, sei que não não são esses os rostos que quero bater. Mas como achar a primeira pessoa que não me amou para dar uns bons tapas na cara? Sempre apanhei, nunca bati. Deve ser muito bom dar, além de uns sonoros tapas, um murro na barriga,um beliscão no braço... Nunca fiz isso. Apenas imaginei. E me calei. Lembro que teve uma época em que eu tinha um facão imaginário: através desse facão muitas cabeças foram cortadas. Era só eu encontrar uma pessoa com uma prosa ruim, a cabeça ia ao chão. Isso me aliviava. Mas agora o facão sumiu.O que fazer? Chega de amar, chega, chega! Procuro a primeira pessoa que não me amou, e aí acertaremos as contas.

domingo, 28 de outubro de 2007

Domingo, com Cecília

A casa está enorme, fechada, eu sozinha dentro dela. Vou buscar Cecília Meireles:

"Por mais que sacuda os cabelos,
por mais que sacuda os vestidos,
a poeira dos caminhos jaz em mim."

Este é "Poeira", um dos "Poemas escritos na Índia". Lá, onde ela também escreveu: "Quando é a noite,/ O vento não vem./ E o menino dorme tão bem!"

Fico por aqui, fecho o livro, enquanto vou abrir a janela do quarto e apagar a lâmpada. Faço isso, mas a luz que vem de lá de fora não consegue clarear sozinha, sem a ajuda da lâmpada, o quarto e eu dentro dele. Deixo as duas luzes, portanto, acesas. São cinco horas de uma tarde estúpida de domingo. Os domingos não deveriam existir, todos já sabem disso. Os domingos só servem para a gente morrer mais um pouco. E ficar com raiva ao saber que muitos estão adorando esse dia, ao som de um fundo aberto de carro, perto da praia...
Só dá para fazer uma coisa aos domingos: dormir. Mas como tudo tem limite (mãe me disse esse clichê a vida toda), o sono acabou. O que vou fazer agora? Por isso pego de novo o livro de Cecília - minha irmã de alma. E ela volta a dizer, na "canção do menino que dorme", que mesmo que "o vento não vem", "o menino dorme tão bem!"
É, Cecília, preciso fazer como esse menino. Na verdade não dormi bem o dia inteiro. Pois se não lembrei de nenhum sonho? Todos fugiram quando acordei. Dormir e não sonhar é algo inútil, nós duas sabemos. Você que teve tantos sonhos, até publicou um livro com esse nome!

"Em sonho vireis delicadamente
e sem motivo algum
direis palavras amáveis
que vos surpreenderiam
se vos fossem contadas."

(...)

"Jamais saberei o que sonháveis
enquanto eu sonhava com as vossas gentilezas.
Jamais sabereis que tais gentilezas foram sonhadas."

Oh, Cecília, sofremos das mesmas dores: essas que o amor deixa como ausências dentro de casa, feito teias de aranha cansadas e dias de domingo mal-dormidos.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Sílvia Clotildes

Em frente a este computador tem um mural com várias fotos: meu sobrinho, vestido de "Senhor Incrível", Drummond de Andrade falando que "...a hora mais bela surge da mais triste", eu e minha afilhada Mariane (linda) na porta da "Casa do Olodum", Cecília Meireles em meio a muitas flores, Iemanjá, uma fota panorâmica de minha cidade natal, e um bilhete muito, mas muito antigo...
O bilhete começa assim: "Amiga A. Desejo muitas felicidades e que a partir dos seus catorze anos você tenha uma vida cheia de alegria e amizade a todos." A seguir fala muitas outras coisas, como "às vezes eu lhe abuso, aliás sempre; mas amigo de verdade tem que compreender o outro", etc. Depois assina seu nome: "Sílvia Clotildes", e desenha em frente uma flor azul com vários ramos verdes espevitados.
Esse bilhete para mim é um símbolo. Por isso nunca o retiro do mural.
Esta é a minha amiga Sílvia, lembram-se? Aquela, que me dava cascudos na escola, que me batia, e que minha irmã batia nela para descontar. Minha primeira amiga. Quando nos conhecemos tínhamos seis anos de idade. Íamos juntas para a escola. Sentávamos juntas. Ela explorava de mim para pegar merenda para ela. Conversávamos. Brincávamos. Ela me batia. Eu nunca revidava: não tinha coragem e força para isso. Crescemos juntas. Ela me dizia sobre as coisas do mundo que eu não acreditava. Dizia que não existia papai noel, nem cegonha, muito menos existiu arca de Noé e o próprio Noé. Muito menos Deus. Eu nunca acreditei nessas mentiras dela. E continuava sua amiga, a despeito de seu gênio terrível e mentiroso. Nunca me esqueci do vestido que ela usava no dia em que nos conhecemos na sala de aula: um vestido cheio de flores. Logo fizemos amizade. E quando a professora pediu que desenhássemos uma casa e eu fiz a minha com telhados coloridos, ela me recriminou: "ei besta, telhado não é dessa cor não, é marrom". Eu não acreditei nisso. E pintei o meu telhado colorido. Todos esses desencontros, porém, nunca impediram que nossa amizade continuasse. Ela habitualmente antenada com as coisas da vida, eu sempre alheia, no mundo da lua, mas juntas. Acho que uma amparava a outra na dificuldade de podermos ser amigas diante de diferenças tão cruéis.
Na adolescência também vivenciamos muitas coisas juntas. Ela,claro, invariavelmente adiantada. Namorou cedo, enquanto que eu ficava com inveja. Aliás, foi a inveja que sempre temperou nossa amizade. Quando crianças, se mãe comprasse um sapato para mim, ela também precisava ter um igual, e vice-versa. Quando já crescidas, a inveja continuou transparente: se eu ou ela comprássemos um disco novo, a outra tinha que comprar um também, igualzinho. Aceitávamos nossas invejas mútuas numa boa.
Eu saí de nossa terra, para fazer faculdade, aos vinte e cinco anos. Ela lá ficou. Não quis dessa vez ser fiel à inveja, algo tão peculiar à nossa amizade. Atualmente tem três filhos, e eu não tive inveja, não quis fazer o mesmo. Mas continuamos amigas. Falamos tudo, uma na cara da outra. Amizade límpida, sem máscaras. Sustenta-se no mundo de maneira gratuita, sem cobranças. Sem explicações.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Ah, o amor

Pego à toa na estante um livro de Roland Barthes, e vejo algo que ele anotou, entre parênteses, ao começar a falar sobre a poética experiência da fotografia: "(a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões)". Está sublinhado a lápis por mim. O livro traz na folha de rosto, como sempre, o nome da proprietária (eu), e a data: 20.05.05. Páro aqui, hoje não vou além, apesar de ver que o livro está todo sublinhado com paixão. Essa frase, nesse momento, me captura totalmente. E volto a escrevê-la, como se murmurasse, falasse baixinho para eu não conseguir ouvir: "(a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões)". E me lembro que você vai viajar, e que eu vou ficar alguns dias sem remédio. Não foi isso que o psicólogo prescreveu?: "abstinência total de amor". E você me deixará sozinha em casa bem na hora em que se iniciará o tratamento, a análise propriamente dita. Golpes de pequenas solidões. "Abstinência de amor", o psicólogo vibrou com a armação do destino: "... na hora certa, você precisa disso, falta de amor total para poder se curar". Meu Deus. Abstinência de amor. Agora é que me dou conta da frase do psicólogo e dessa viagem sua, tão chata. Como sobreviver sem esse remédio que você tanto me dá, e que me fez adoecer na infância? Que me deixou a seqüela do chororô? Que me fez chorar até porque minha irmã rasgou a bandeira nacional no dia sete de setembro, em plena escola? Na minha cabeça ela ia ser presa por causa disso... E ela rasgava com gosto, a cada chorada minha, num sadismo engraçado. Ah, minha irmã de novo, que me ensinou o amor pelo avesso... Minha irmã que conhece o mundo desde menina, e que se habitou a viver nele como moradora incondicional. "Abstinência total de amor". E minha mãe, que pouco viajava, e quando o fazia era comigo ao seu lado, um aconchego tão grande, apesar de, verdade seja dita, nunca ter deixado de me beliscar no braço. Pai viajava muito, eu não gostava, o lucro era porque na volta, dentro de sua maleta de mão, vinha sempre um livro para mim. "Abstinência total de amor". Eu indo para o trabalho, sozinha. Eu voltando para casa, sozinha. Eu deitada no divã falando falando falando, e o psicólogo anotando anotando anotando... Já estou sentindo a presença de Kafka... E não posso chorar agora.

domingo, 14 de outubro de 2007

O segredo que a vida exala

Este meu nome de batismo aqui - "Aeronauta" - vem da poesia. Da poesia de Cecília Meireles. De um personagem que se parece comigo. E que um dia descobre que não é feliz nem triste, humilde nem orgulhoso, pois não é terrestre:

"(...)
Agora sei que este corpo,
insuficiente, em que assiste
remota fala,
mui docemente se perde
nos ares, como o segredo
que a vida exala.
(...)"

Essa impressão eu tive cedo. Muito cedo. Sei que era o crepúsculo de um sábado chuvoso, estávamos reunidos na mesa de nossa casa na rua da conceição: eu, mãe, pai, minha irmã, um candeeiro e o destino. E a chuva lá fora vinha com um vento que assanhava o fogo do candeeiro. Ali corroía uma atmosfera pesada. Quantos anos eu tinha? Cinco? Seis? Mil? Nessa atmosfera o vento vinha dizer que minha tia havia morrido. O nome dela era Corina. E ela morreu tendo o seu último filho. Que coisa! No dia em que alguém nasce do outro, esse outro morre. Como se a vida fosse a morte e a morte a vida. Não, naquele momento jamais teria tal impressão filosófica, claro. Lembro que tive, isso sim, uma sensação de estranhamento, deslocamento, escuridão. Fomos todos para o povoado onde se encontrava o corpo de minha tia. Chovia forte. Na sala apertada, gente que não acabava mais. Mas minha lembrança está focada mesmo numa cama de pernas estranhas, uma pessoa deitada envolvida num lençol branco, enorme. O aroma, que o vento fazia questão agora de enfatizar, era de um incenso de igreja. E o som era de uma cantoria terrivelmente melancólica e chorosa, proveniente da reza sofrida. Me levaram correndo para o quarto ao lado. Nessa hora só lembro de minha mãe me acompanhando, mais ninguém. E de lá do quarto dava para eu ouvir, bem nítido, o som abafado da dor, e sentir o cheiro forte do incenso, e ver, como numa imagem de sonho, uma efígie sobre a porta onde eu me encontrava. Essa efígie me acompanha até hoje. Não sei o que ela significava, se ela existiu de fato. O que sei é que aquilo tudo doía muito em mim...
No outro dia, um grande silêncio, e a cama de pernas estranhas jogada num quintal vazio, devastado, triste...

Ah, mais uma vez, como eu gostaria de ter sido, desde cedo, uma não-aeronauta, como minha irmã! Ela achou aquilo tudo uma grande novidade. E voltou contando para os amiguinhos que nossa tia morta era tão gorda que teve de ser enterrada em dois caixões.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Minha irmã

Pensei em postar esse texto no dia do aniversário dela. Mas ainda está longe: 4 de novembro. Não dá para esperar até esse dia, vou tentar escrever hoje. O que falar dela? Ah, tanta coisa. Primeiro que somos muito diferentes uma da outra. Quando crianças, vestidas iguaizinhas, as pessoas diziam assim: "vocês duas são irmãs? Mas como são diferentes!" Isso quer dizer que as únicas coisas parecidas ali eram nossas roupas: costuradas por mãe, claro, que talvez desejasse que fôssemos gêmeas.
Ah, nós duas... criaturas completamente distintas... Uma gordinha, a outra magra. Uma com cabelo liso, a outra com cabelo crespo. Uma que gostava de brincar de roda e de boneca, a outra que gostava de subir em árvore e de paquerar. Uma que gostava de estudar, a outra que amava brigar na escola. Acho que não é preciso dizer quem é quem aqui. Já dá para perceber que minha irmã era o máximo.
Mas eu não gostava de ser irmã dela. Nem ela gostava de ser minha irmã. Apenas morávamos na mesma casa, e ela me defendia quando Sílvia, minha primeira amiga, me batia. Dando puxões de cabelo em Sílvia ela dizia assim: "em irmã minha ninguém bate, só eu!"
Ela era muito metida e me chamava de besta. Às vezes, na escola, fingia que não me conhecia e nunca me tirava para o seu time. Em casa me dizia por que procedia assim: "você é muito mole!"
Hoje como eu gosto de ser irmã dela. Nós temos um passado em comum. A mesma casa antiga guardada na memória. O mesmo pai e a mesma mãe. O mesmo linguajar. Só continuamos muitíssimo diferentes, claro. Mas isso não impede que a gente se goste e dê boas risadas juntas lembrando nossa infância. E que eu jamais esqueça a maior declaração de amor que ela me fez: aos sete anos, ao saber que eu ia viajar para Salvador em razão de uma hepatite, ela foi se despedir de mim e me deu aquilo que mais estimava na vida: um copinho de alumínio com seu nome gravado.

domingo, 7 de outubro de 2007

Borboletas voando pela sala

Eu e meus alunos tivemos, nessa semana, uma experiência excepcional com Francis Ponge e seu "O Partido das Coisas" ("Le parti pris des choses"). Distribuí cada "coisa" para cada equipe: enquanto uma ficou com a descrição que o poeta faz do "pão", outra ficou com "a laranja", outra com "o fogo", outra com a "água", e mais uma com "os prazeres da porta". Eu fiquei com a "chuva". Tão excepcional quanto as descrições maravilhosas que o poeta faz, foi a apresentação deles. Que decodificação visceral! Mais do que verem, tocarem e perceberem a vida de uma porta (claro, não levaram uma porta de casa, utilizaram a porta da sala de aula), eles sentiram que existe uma "ventura" (como diz Ponge) em tocar uma porta, "o corpo-a-corpo rápido pelo qual por um instante o passo se detém, o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda ao seu novo aposento". Levaram jarras cheias de água e mostraram o "vício" que Ponge creditou, com mérito, à água: "o vício da gravidade". Segundo o poeta francês, a água "só tende a se humilhar, deita-se de bruços no chão, quase cadáver, como os monges de certas ordens"... porque se encontra "sempre mais abaixo", e "é sempre com os olhos baixos" que a vemos. Agora o mais interessante, além de mostrarem a descrição do pão com "esse frouxo e frio subsolo que se chama miolo" e que "tem seu tecido semelhante ao das esponjas", e de trazerem uma laranja para demonstrarem o quanto esta fruta "é por demais passiva", pois que "seu sacrifício odorante... é entregar-se realmente muito barato ao opressor", além de tudo isso, interessante demais foi a apresentação do fogo. Muito criativos, mostraram, junto com Ponge, o que é realmente o fogo e suas formas. Levaram, claro, papel e fósforo, levaram o fogo de uma vela, levaram centenas de papéis a serem queimados... E mostraram o que Ponge disse: "Só se pode comparar a andadura do fogo à dos animais: é preciso que desocupe este lugar para ocupar aquele outro; caminha a um só tempo como ameba e como girafa, o pescoço à frente, os pés rampantes)..." "Depois, ao passo que as massas metodicamente contaminadas se aniquilam, os gases liberados vão-se transformando numa só rampa de borboletas". Metáfora da fumaça, os alunos mostraram as borboletas, todas voando pela sala e pelo coração da professora... que assistia a tudo isso muito comovida.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Conversando no divã (II)

Meu psicólogo me diz que preciso aprender a ser dura. Como???? Sou mole, manteiga derretida, como os vizinhos me chamavam na infância ao ouvirem, na rua, o eco do meu choro repetido o dia inteiro. É, sou uma manteiga derretida. Como aprender a endurecer mãos, coração, olhos?
"Comece a olhar a vida com dureza", foi o que ele enfatizou hoje pela manhã, e na hora entendi que ele lia minha alma e estava certo, mas que isso era tarefa impossível para mim. Vou ser manteiga derretida até o fim de meus dias. Mãe me contou que eu, recém-nascida, lasquei os cantos da boca de tanto chorar. E lembro bem que passei toda a minha infância chorando, me esgoelando para o mundo e para a rua toda ouvir. Sei lá por que chorava, sei que chorava. Na adolescência chorava também, não me esgoelando, claro, mas chorando quietinha no meu canto, com meus livros de Clarice no colo. Depois, adulta, as lágrimas continuaram insistindo na moradia boa de meus olhos. Agora, mais adulta ainda, continuo a mesma manteiga derretida, apelidozinho que eu odiava quando era criança. O pior é que ele, o psicólogo, está certo: preciso aprender essa lição da dureza. Por onde começo? Acho que por ele mesmo. Não estou mais nessa de achar que psicólogo precisa ter afeto por seu paciente. Chego lá, choro choro choro, ele me dá lencinhos de papel e busca comigo encontrar o labirinto, sem pegar na minha mão. É melhor assim, o labirinto é meu, tenho que ir sozinha, ele só precisa me ajudar profissionalmente. Pronto, eis uma palavra dura: "profissionalmente" - palavra longa, fria, parece escritório, secretária fardada atendendo ao telefone e um sonzinho de fax ao fundo. Eis, pois, o mundo. Ele é o mestre, diz isso ao meu coração: "veja, o mundo é um escritório kafkiano onde você está envolvida num terrível processo. Mas é possível sair de lá. Porém, só será possível mesmo se você enxergar, ver, viver esse escritório, e, pior ainda (ou melhor ainda), viver a condição de ser o inseto kafkiano."

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Meu pé de carambola...

O quintal de lá de casa é uma lembrança forte. Era enorme, tinha um pé de carambola baixinho, pendurado de carambolas, um portão e uma escada de cimento que dava para o rio. A gente acordava e nosso primeiro contato com o mundo era o quintal: descíamos os degraus correndo, com a escova e o creme dental na mão, e íamos escovar os dentes no rio...
Voltando da escola, à tarde, era sob o pé de carambola que fazíamos nossas brincadeiras. As folhas eram dinheiro vivo para mim, para que eu pudesse fazer compras para minhas bonecas. Minha irmã não, gostava do pé de carambola para subir até o mais alto dos galhos e ficar de lá de cima proclamando sua audácia. Eu não subia, tinha medo de cair, mas catava todas as folhas possíveis para não deixar que minha casa de brinquedo passasse necessidades.
À noite, mãe abria as janelas que dava para o quintal. E era o vento que vinha do balançar do pé de carambola que trazia fresca lá para a casa. O calor era danado, e o vento vindo do quintal era o nosso mais delicioso ventilador.
Tínhamos sim, eu e minha irmã, uma relação forte com o pé de carambola, que se acentuou quando nós duas líamos e chorávamos, líamos e chorávamos o "Meu pé de laranja lima". Nós talvez pressentíssemos que aquilo tudo um dia ia acabar: quintal, pé de carambola, portão, escada, rio para escovar dente, etc.
Num final de tarde da década de oitenta, chegando do ginásio, encontramos um futuro sombrio: o quintal tinha desaparecido e plantaram uma casa nele. Não teríamos mais acesso ao rio, desapareceram portão e escada. Desapareceu o pé de carambola. Eu e minha irmã choramos, choramos, choramos, tal qual Zezinho, eu e ela, repetindo e repetindo o livro de José Mauro de Vasconcelos.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Só nós dois

Não há nada a dizer. Apenas que os dias continuam passando e eu fora de mim. Eu longe de mim. Andando num país que não existe, por ruas invisíveis, cultuando cantigas que só eu e o vento ouvimos. Só eu e o vento - andando por aí, roubando alguns sonhos de quem se deixa levar por nós. Poucos se deixam. Muitos estão ocupados em existir, existir, existir... Há uma busca insistente pela vida, enquanto que eu e o vento pouco buscamos: sabemos apenas balançar árvores, folhas secas, papéis que andam soltos pelo mundo, sentindo texturas de peles que se deixam tocar. Apenas isso. Nada mais do que isso.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Eu não queria sentir dor

Minha mãe é um riso com os olhos apertados. As unhas cheirando a alho e a cebola. O cabelo anelado, cortado curtinho, sempre pintado de preto. Cheinha de manias: brinco é uma delas. Tem uma coleção, de todas as cores, mas todos em formato pequeno.
Minha mãe sempre foi criança. Até quando batia em mim para que eu comesse. Dizia assim: "Ô sujeitinha, você não quer comer não?", e me dava um beliscão no braço. Hoje acho graça disso, mas na hora do beliscão eu a odiava. Porém, logo depois me esquecia e estava rindo para ela. Minha irmã me chamava de besta por causa disso, pois eu apanhava e na mesma hora me esquecia...
Ah, minha infância é sempre o mesmo retrato: eu e minha mãe. Onde estava ela, lá estava eu. Na adolescência o retrato mudou: ela era minha perseguição. Agora, na idade adulta, ela é a minha memória: gosto de perguntar coisas a ela de "quando eu era pequena". Ela diz que tem saudades desse tempo, e os olhos se enchem de água. Nessas águas consigo voltar, lembro de nossos banhos em família no Córrego do Padre, ela banhando-se de vestido, pai com uma sunga azul, eu com um biquíni verde, minha irmã com um biquíni vermelho. Ainda nessas águas que saem dos olhos dela vejo eu correndo pela larga praça de minha cidade, fugindo de uma maldita injeção que me esperava na farmácia. E ela gritando para todos os moradores ouvirem: "pega, pega essa menina aí, pelo amor de Deus!" E de todos os cantos da praça aparecendo pessoas para pegarem essa menina que era eu, na maldita armadilha de uma injeção que eu não queria, que eu não queria. É isso: minha mãe também representava o que eu não queria... Ora, para que tomar injeção e sentir dor? Não, eu não queria sentir dor...

domingo, 16 de setembro de 2007

Um reino jamais perdido

Sempre fui uma pessoa esquiva: gente sempre me deu medo. Mas no fundo, eu sei, adoro gente. Descobri isso dando aulas. Amo apaixonadamente meus alunos. Gosto de olhar para cada rosto e adivinhar seus mistérios. A fidelidade às carteiras onde se sentam, por exemplo, é um mistério saboroso. Por que será que eles se sentam constantemente nos mesmos lugares? Outros mistérios? Ah, são muitos. Até quando desatam a conversar e eu chamo a atenção para a "feira de maxixe". Eles riem e voltam a prestar atenção à aula. São todos adultos, e se comportam como crianças: isso é o que mais me encanta, e ao mesmo tempo o que me deixa, às vezes, nervosa. Aluno, por mais que goste da aula que assiste, fica sempre doido para ir embora. Sei disso e tento, a cada dia, trazer algo novo, como quem quer roubar mesmo a atenção de uma criança...

Inúmeras vezes notei essa repetição: no primeiro dia de aula, na hora da sondagem, eles têm orgulho de dizer que detestam poesia. Nesse instante volto a sentir a dimensão do desafio... É preciso, a partir daqui, em todos os momentos da aula, olhar para cada rosto, cada olhar, cada gesto, para tentar descobrir o caminho. É ainda preciso não ter medo de amar cada rosto, cada alma e, também, cada desprezo que eles possam lhe dar durante esse percurso. E, mais, é intensamente necessário amar estar ali com eles. E chegar perto. E falar dentro da alma de cada um, mesmo daquele que faz desdém, ri do que você diz. Ah, é tarefa maravilhosa essa. Poesia e alma andam juntas, por isso o resultado sempre é bom, muito bom. Num certo dia você percebe que o interesse deles já começa a mudar, eles já vêem diferente o poema, sem bocejos, pois enxergam suas vidas ali. Depois começam a brincar com as palavras, e no final dizem: "puxa, professora, já estou começando a gostar de poesia!" Ou: "Eu não achava, professora, que poesia era assim..." E aí acontece a comunhão. É maravilhoso. Será que a sensação que sinto nesse momento é a mesma que um padre sente após uma conversão?

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

No confessionário

Eu tinha sete anos e vestidos curtos. Sempre bem curtos. Viam a calçola. Cor de rosa. Enorme. Eu adorava mostrar essa calçola cor de rosa para a família de dona Clotildes, na hora do jantar da casa dela, principalmente para Eugênio, um meninão de seus quatorze anos, tímido como não sei nem o quê. Eu sabia que ele era tímido e queria que ele ficasse vermelho que nem um pimentão. E toda noite ia para tal casa promover o espetáculo. Na sala do jantar, a família toda reunida, uma mesa redonda, Eugênio perto da parede, eu dizia assim: "olhe, Eugênio, minha calcinha nova!" O povo todo gargalhava e ele, coitado, querendo desaparecer... Isso se repetia todas as noites. Não sei por que aquelas pessoas achavam graça naquele espetáculo repetitivo: eu sempre dizendo as mesmas palavras e a família presente rindo o mesmo riso... só o que era diferente era a calçola de cada noite, nem sempre cor de rosa, claro.

domingo, 9 de setembro de 2007

O encanto das perguntas

XLIII

Quem era aquela que te amou
no sonho, quando dormias?

Onde vão as coisas do sonho?
Vão para o sonho dos outros?

E o pai que vive nos sonhos
volta a morrer quando despertas?

Florescem as plantas do sonho
e maduram seus graves frutos?

Esses dísticos perguntadores e maravilhosos são de Pablo Neruda, do seu imperdível "Livro das perguntas". Gosto do livro todo, mas esse poema me visita desde ontem. Talvez porque fale dos sonhos. Talvez porque pergunte de um pai "que vive nos sonhos" e que "volta a morrer quando despertas"... E é uma pergunta, não uma afirmação: por isso o encanto. A pergunta se insere no reino do que poderia ser, do sonho. Todo sonho é uma grande pergunta, não sei se Freud disse isso, mas deve ter sugerido.
Não quero propor aqui uma interpretação do poema - assim como faço com meus alunos, e sempre acontece, por conseguinte, o encanto: o encanto de encontrar muitas respostas e continuar perguntando... A poesia é assim: tem tantas portas, janelas, varandas... E constantemente uma estrada não-vista a ser revelada.
Não, agora não quero propor nada. Apenas deitar e sonhar: perguntar ao mundo, enquanto durmo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Casamento feliz

Desde cedo descobri que o meu grande amor, para a vida toda, seria mesmo a literatura. Nas férias, deitada no sofá de lá de casa - um sofá antigo, desses que não existem mais - eu passava o dia lendo, ninguém me importunava. Pai passava quando vinha da rua, mãe quando varria a sala, minha irmã quando vinha da casa das amigas, e eu lá, no mesmo lugar, lendo, sendo feliz. Ninguém me tirava daquele mundo... Minha família sempre entendeu isso muito bem. Acho que sentiam orgulho. Pai, que sempre foi leitor fervoroso de Jorge Amado, e lia jornal todas as noites, sentia-se orgulhoso por ver que tinha filhas que gostavam de ler, e uma que chegava a lhe preocupar, pois lia demais da conta: eu. Ele perguntava a mãe, "e essa menina não sai não, não brinca com suas amigas, não passeia"? Mãe não entendia muito bem aquele negócio meu com os livros, mas achava melhor assim: melhor dentro de casa que aprontando na rua. E dessa maneira iam passando os dias. Descobri que, mesmo morando numa cidade sem biblioteca nem livraria, poderia ler. As famílias vizinhas, e pai também, compravam coleções de grandes autores através dos vendedores de livros que apareciam na cidade de tempos em tempos. Eram coleções encadernadas, bonitas. Lembro que as que pai comprou foram as de Jorge Amado, Aluísio Azevedo e Machado de Assis. E uma vizinha comprou José Mauro de Vasconcelos e José Lins do Rego. Li as coleções de casa e depois fui às coleções da casa vizinha: não podia perder tempo... Como chorei e como reli Meu pé de Laranja Lima... A fala terna e dolorosa do personagem principal: "...e eu, Godóia?" até hoje soa no meu coração, doendo...
Sei que a minha compreensão do mundo, o meu sentimento do mundo, como diria Drummond, vieram de lá: dos primeiros livros lidos. E também da bela compreensão de minha família por essa união que a infância selou para toda a vida: meu casamento, com total comunhão de bens, com a literatura.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Conversando no divã

Para que diabos procuramos nos tratar numa sala de terapia? É essa a pergunta que me faço, eu que sou adepta de uma dessas salas. Para que diabos se procura um psicólogo? Para que diabos temos depressão? Os palavrões todos são formas de desabafo, como se agora eu estivesse numa dessas salas, o psicólogo à minha frente, eu em frente ao psicólogo, com todas as minhas dores. O que diabo ele irá fazer com a minha dor? Passar remédio ele não vai, pois quem passa é o psiquiatra. O psiquiatra trata da depressão em sua forma cerebral, diria assim, remédios para a famosa serotonina, etc.; enquanto que o psicólogo trata da depressão com perguntas mais auspiciosas, profundamente existencialistas, filosóficas, coisas que possam encontrar a alma do paciente, sua gênese familiar, a criança que está lá entalada querendo brincar de qualquer jeito... Os psicólogos estudam muito, lêem Freud, Lacan, Jung, têm até autoridade para negar as posições de cada um desses famosos e ter a sua própria posição. Aliás, eles tem tudo nas mãos: um ser. O que fazer com um ser? Ouvir o seu choro convulsivo? Arrumar-lhe um lencinho branco de papel? Dizer-lhe palavras auspiciosas? Meu Deus, o que fazer... Pronto, já sei: o bom psicólogo encontra a alma de seu cliente, sabe sua história, lhe diz o que deve fazer, o que não deve, sugere caminhos... Há no seu olhar algo humano, percebe-se. Em alguns casos ele simpatiza com sua história, tem uma devida compaixão. Mas ele não pode fazer mais nada. Não pode lhe dar um abraço. Não pode lhe transmitir afeto. Às vezes o afeto se dissemina no olhar, mas ele retrai. Porque não pode. Porque isso conseqüentemente se transformará em contra-transferência. Porque o que acontece ali é uma relação profissional: há um doente e há um médico. Só que o doente é doente da alma e o médico também é da alma. Eis a encruzilhada. A alma exige não-profissionalismo, a alma implora afeto, abraço, cumplicidade com seu destino. Por isso me pergunto, de novo, e me perguntarei a vida inteira: para que diabos procuro um psicólogo?

domingo, 2 de setembro de 2007

A Pasárgada de meu sobrinho

Estava doente, e meu sobrinho, que acabou de fazer dez anos, sabia que eu estava doente. Ele sabia que eu precisava melhorar. E a estratégia dele foi boa, inteligente, sensível.
Primeiro passo: ele me acordou. Ao meio-dia eu estava dormindo, e ele me telefonou.
Segundo passo: ele me disse assim:

"Titia, escute isso:

'... E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada' "

E no finalzinho do verso, no "vou-me embora pra Pasárgada", ele quis imitar a risada de Juca de Oliveira recitando o poema no cd que ouvimos juntos, há um mês atrás. Não agüentei: morri de rir. Aí ele disse que naquele momento estava lendo o poema no seu livro da escola, e que adorava encontrar poemas - que ele já conhecia - em outros lugares. E disse mais: que adorou essa parte de deitar na beira do rio e chamar a mãe-d'água... E imitando Juca de Oliveira, desligou com uma gargalhada: "Vou-me embora pra Pasárgada!"

domingo, 26 de agosto de 2007

Nunca me esqueci disso

A televisão demorou a chegar à minha cidade. Eu devia ter uns oito, nove anos quando isso aconteceu. Poucas pessoas possuíam o aparelho. Assim, tínhamos platéia todas as noites. As pessoas chegavam às seis e saíam às dez. Na época passava a novela "Maria Maria", em preto e branco, uma imagem enorme pois que a televisão que pai comprou era gigante. Mãe tratou logo de fazer uma capa de feltro verde para a digníssima da casa: desenhou um galo também gigante e escreveu com letras caprichadas: "TV Aratu Canal 4". Mãe sempre foi adepta do rádio, e demorou muito para assumir o seu amor pela televisão. Todos os anos, antes da televisão chegar, ela fazia questão de comprar um rádio novo. Colocava na cozinha, ligava pela manhã e só desligava à noite. A voz de Valdir Vieira ecoa até hoje, quando vejo o velho rádio sobre o guarda-louça de sua cozinha. Pois bem, encurtando a história: nunca me esqueci de uma conversa que ouvi de mãe com sua amiga, logo que pai comprou a famosa televisão. Ela dizia para a amiga que jamais trocaria o rádio por "aquilo". A outra ficou espantadíssima e perguntou o motivo de tal despautério. Ela argumentou que a televisão exigia sua presença na sala o tempo todo, enquanto que o rádio não - era só aumentar o volume e ela podia cozinhar, lavar pratos, ir ao quintal, fazer tudo. Minha mãe, sem saber, falava talvez sobre a liberdade... Ou sobre tantas outras coisas... Nunca me esqueci disso.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Jogo perverso

Esse homem é incorpóreo, já atravessei seu corpo como se atravessasse o corpo dos ventos. Ele foi algo que inventei desde menina quando, insone, insistia em criar rosto de gente nas formas esquisitas do telhado de lá de casa. Ele insistiu em me acompanhar, em todos esses anos. Desde que saí de casa, invento seu rosto ao relento, sob as nuvens. O que é ainda lúdico, na maioria das vezes se transforma em jogo perverso, pois que as formas das nuvens não têm a estabilidade das formas do telhado...

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

... para a lua, num foguete

Num dos posts de Renata Belmonte, há um elenco de medos. Muito corajosa, Renata, gritar ao mundo os seus medos. Hoje à tarde, olhando uns retratos meus de quando era criança, me lembrei desse post de Renata. Em todas as fotos tenho um ar assustado. De que tinha medo essa pequena Macabéa?
- "Tinha medo de soldado". Como a própria Macabéa, eu talvez pensasse: "será que ele vai me matar"? Brincadeiras à parte, essa pequena tinha medo de homem fardado, até de guarda da Sucam ela tinha medo.
- "Tinha medo de desgrudar da mãe". Mesmo apanhando, eu não queria me desgrudar dela. (Lembro de uma cena clássica: acordei de manhã e ela não estava. Saí pela rua, pela chuva, chorando e gritando seu nome, até cair numa poça d'água.)
- "Tinha medo de sua irmã". A menina era do outro mundo, me batia e não queria graça comigo. Era do time das fortes da escola, da rua, da galáxia.
- "Tinha medo de retratista". Aquele clique amarelo que saía do "aparelho"(eta palavra antiga) não era nada confiável.
- "Tinha medo de 'João da Jega'". Este morava numa loca e me disse, aos seis anos, que me levaria para a lua, num foguete.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

O vento e sua "incorpórea música"

Que coisa misteriosa o vento! Os mais pragmáticos diriam: oh, que coisa óbvia o vento!
Coisa aparentemente mais óbvia e ao mesmo tempo mais misteriosa... Não vemos o vento e temos a certeza que ele existe. Há comprovação maior do mundo sensível?
O vento é, pois, uma das provas mais contundentes da existência do invisível.
Só um poeta de grande sensibilidade poderia chegar tão perto desse ser - o vento - e saber de sua mais recôndita vida. Emily Dickinson, nos seus colóquios com as coisas do mundo, nos legou essa preciosidade:

"À noite, como deve sentir-se solitário o vento
Quando todos apagam a luz
E quem possui um abrigo
Fecha a janela e vai dormir.

Ao meio-dia, como deve sentir-se imponente o vento
Ao pisar em incorpórea música,
Corrigindo erros do firmamento
E limpando a cena.

Pela manhã, como deve sentir-se poderoso o vento
Ao se deter em mil auroras,
Desposando cada uma, rejeitando todas
E voando para seu esguio templo, depois."


(In: DICKINSON, Emily. Poemas escolhidos. Trad. Ivo Bender. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 39.)

sábado, 18 de agosto de 2007

O amor e suas pérolas lingüísticas

O amor nos faz bobos. Improdutivos. Sem linguagem. Ou com linguagem verbosa. Diante da pessoa amada, há braços demais, e uma falta de assunto então... Daí nascem pérolas, como aquelas que a literatura trouxe para nós, inesquecíveis:

* Macabéa, coitada, diante de seu amado Olímpico de Jesus, não tinha lá muito o que dizer; aliás, ela não tinha, de nascença, palavras. Num certo passeio sob a chuva (ele dizia que ela só sabia chover), pararam diante de uma loja de ferragem "onde estavam expostos atrás do vidro canos, latas, parafusos grandes e pregos". E Macabéa, com medo do silêncio grande que se formava entre ela e o seu amor, tratou logo de puxar assunto:

"- Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?"

* Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, nos seus dois metros de altura, enfrentador de tudo que é bicho do mato, de cobra a lobisomem, verboso que só ele, mesmo sendo famoso "mulherista" queria por queria encontrar amor, pois que descobriu que seu viver "vivia a pedir costela". E afinal encontrou: Dona Isabel. Desejoso de "amamentar" conversa com a senhorinha, professora da cidade grande, o coronel Ponciano entrou numa "inquirição desgovernada":

"- Vossa Mercê já foi mordida de cobra?"
"- Dona Isabel já viu a pessoa de um boitatá?"
E etc, etc, etc.

Ah, o amor e sua terrível subordinação à linguagem. Sabemos bem sobre tudo isso. E a literatura mais do que nós. Está tudo lá, nas suas devidas páginas, principalmente o que vem nesse texto sob os auspícios das aspas: em "A hora da estrela" de Clarice Lispector, e "O coronel e o lobisomem", do maravilhoso José Cândido de Carvalho.

Sou uma aeronauta

Nunca consegui me achar dentro deste mundo. Sou uma aeronauta. O nome pode não ser lá muito bonito, mas é o que sou. O que me deram de batismo é somente um adendo. Não precisam saber que outro nome é esse. Com o nome que me deram muitos pensam que sabem quem eu sou. Que nada, não sou essa que tem o nome que todos pensam conhecer. Sou outra. Minha mãe, meu pai, minha irmã, meus colegas na escola, a professora, sempre diziam que eu vivia no mundo da lua: era a única coisa que sabiam, verdadeiramente, de mim.
Sempre tive embrulhos terríveis no estômago; por isso o blog de Personagem Principal, Júlia, Viviane, Clarice, Mansfield, despontou em mim a vontade de fazer igual: não dizer meu nome de batismo e escrever ao léu, escrever de uma aeronave distante, longe do mundo, e com uma furtiva esperança: ser amada.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

O verdadeiro retrato

Retrato - eis uma palavra que adoro. Outra: retratista.
Tirei muitos retratos na minha infância. Era preciso fazer pose, vestir a melhor roupa, dar o melhor sorriso. Minha memória guarda retratos ornamentais, como aquele que mãe ostentava na parede da sala: a família toda, impecavelmente sorrindo...
Minha memória guarda também retratistas inesquecíveis. "Zé Lópe", por exemplo, que falava cantando porque teve a língua cortada pelo doido da cidade. Esse tirava fotos 3X4, para a escola. Cismava que tínhamos que soltar os cabelos, e se déssemos uma risadinha qualquer o homem ficava brabo. Com a fala cantante, dizia que tínhamos cabelos que baratas roeram, que com aqueles cabelos não saíria nunca retrato que prestasse; e que retrato para documento com gente rindo ele não tirava. A fala dele nos fazia rir, rir, rir. O homem se destemperava, saía pela rua para dar queixa a pai.
Numa das revelações dessas fotos, caí de perplexidade. Simplesmente não era eu. Fui dizer para ele que houve um engano. Ele bateu pé firme, era eu sim. Não sei por que razão a boca daquela menina do retrato estava torta, o cabelo assanhado, e exibia uma cara de fuinha que nunca tive na vida... Ele dizia que era eu sim, eu dizia que não era eu não. Até hoje tenho dúvidas a respeito disso. Até que ponto um retratista conhece nosso verdadeiro retrato?

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

A leveza de uma alma

Hoje rezo esses versos de Raul de Leoni (1895-1926)... Versos tão leves que quase não existem...

"Tua alma é tão leve, tua alma é tão fina
Alma em perfume - alma em surdina
Que essência fluida, e que graça recolhida
Tua alma passa tão de leve sobre a Vida...

A leveza de uma "alma em perfume" é a mais sensível oração que já ouvi.

sábado, 11 de agosto de 2007

Saudade, flor arbitrária

... Estavam mesmo me esperando com flores e beijos. Um aéreo mundo construído para minha chegada. Os amigos todos vestidos à antiga: homens de fraque, mulheres com longos vestidos, crianças com casaquinhos bordados, amarelecidos. Balões coloridos ensaiavam com os ventos uma profunda música de silêncio; enquanto que o tempo era uma espécie de resquício de um passado denso e de um futuro sonhado... Em tudo, tudo, se manifestavam as emanações da saudade, planta rara que só ali prosperava. Só ali prosperava, saudade - flor arbitrária.

domingo, 5 de agosto de 2007

Meus amigos de vento e nuvem

Caros amigos:

Adorei dividir o meu aéreo mundo com vocês. Mas já estou indo. Em algum lugar me esperam com flores e beijos: meus outros amigos de vento e nuvem, como aqueles que Cecília Meireles teve:

MEUS AMIGOS DE VENTO E NUVEM

Meus amigos de vento e nuvem,
meus amigos sem rosto algum,
abrem caminhos, mudam casas,
estendem paredes sem fim.

Meus fluidos amigos, num mundo
que existe apenas para mim.

Que longas escadas tão belas,
que luzes sem chama, que amável
cena para uma vida eterna
em cor de amizade e jardim.

Meus amigos estão construindo
um mundo aéreo para mim.

Mãos tão frágeis levantam muros,
corpos voantes transportam ruas,
todos num silêncio conjunto
e gestos de anjo e volantim.

Ah, meus invisíveis amigos
que entre os céus trabalhais por mim!

sábado, 28 de julho de 2007

"... eu mesmo sou meu perigo"

Há dias não passo por aqui. Há dias que a casa está cheia. Gente para lá e para cá, livros amontoados nas cadeiras, nos sofás. Livros até nas panelas. Essa gente que aqui está é portuguesa, voz de Camões pela sala, de férias na minha casa. Antonio Nobre, Sá de Miranda, Florbela... Fernando Pessoa, e seu grande drama de ser, me acordando cedo, ora sendo Caeiro, ora Reis, ora o mais agoniado: Álvaro...
Ah, Camões, que lindo ouvir-te, novamente, dizer essa redondilha:

"Tenho-me persuadido
Por razão conveniente
que não posso ser contente
pois que pude ser nascido.
Anda sempre tão unido
o meu tormento comigo
que eu mesmo sou meu perigo."

Eu digo o mesmo, Camões, faço estribilho contigo...

segunda-feira, 23 de julho de 2007

As "roubadinhas"

Cruz e Souza terminou a vida sendo funcionário da Estrada de Ferro Central do Brasil, na condição de arquivista. É sabido que o mesmo foi denunciado à diretoria de tal Empresa em virtude de ter sido encontrado "um poema de sua lavra" em local de trabalho. Lê-se no final do texto denunciador: "Pede-se providências".

Ah, o serviço público e a literatura... Drummond e o Amanuense Belmiro, dois conhecedores do universo burocrático: o primeiro, poeta e funcionário público (declarou muitas vezes que escrevia no expediente); o segundo, personagem aspirante a escritor e funcionário público num romance magistral, hoje esquecido, de Cyro dos Anjos ["O Amanuense Belmiro" (1937)]. Ambos - o poeta e Belmiro - conheciam bem esse mundinho cinzento da burocracia, tanto que o amanuense registra, o tempo todo no seu diário, poemas de Drummond, como a revelar um feliz diálogo entre profundos conhecedores do que há de mais inóspito no destino de um homem.

... E pensar que eu, aos vinte e dois anos, entrei para o serviço público... Enquanto o que mais queria mesmo era ler e escrever versos. Mas eu tinha minhas artimanhas. Levava o livro escondido na bolsa, colocava-o dentro da gaveta de minha mesa e quando o escrivão (trabalhava num cartório) vacilava, eu abria a gaveta e o livro - dando, assim, as minhas roubadinhas. A mesma coisa com a máquina ("facit") de escrever. Às vezes fingia que estava batendo um mandado... que nada!, estava era escrevinhando poesia, versos ingênuos, literatice... Era a maneira que eu tinha de agüentar o linguajar desumano dos processos.

... no ar

"As pessoas insistem em saber para quem são os poemas de amor... Não são para ninguém: a gente ama no ar..." (Mario Quintana)

A gente ama no ar! Repito o poeta, só que de maneira exclamativa. Ah, a gente ama no ar... Agora repito de maneira compassiva, talvez como Quintana quis entoar: as reticências, quem sabe, são vestígios dessa compaixão. Como se dissesse: não há, na realidade, destinário possível que consiga receber nosso amor: este é sempre feito de sonho, de um material evanescente - que escapa, que se dilui, que não é desse mundo...

sábado, 21 de julho de 2007

A solidão e sua porta

"(...)
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha),

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha"

"A solidão e sua porta", eis o nome do soneto, aqui em suas duas estrofes iniciais. Quem escreveu: Carlos Pena Filho. Quem reza esse poema: eu.
Eu rezo esse poema sempre. E se soubesse, aqui nessa máquina terrestre, como sublinhar em negrito, eu sublinharia o seguinte verso: "...e até Deus em silêncio se afastar". É o verso mais forte. É o que dói mais. É a maior medida da solidão: sentir Deus, em silêncio, se afastando, fechando a porta, indo embora.

terça-feira, 17 de julho de 2007

A fotografia que não tiramos

Lembro do dia em que ele completou 39 anos. A casa cheia de gente, um lampião a querosene clareando a sala e aquela imensa geladeira branca, a gás, compondo, com felicidade, a fotografia que não tiramos. Minha memória, mesmo com as imagens em lusco-fusco, registrou tudo. A radiola tocava uma música da época, e até o mudo da cidade dançava. Eu trazia os dedos cheios de anéis e, numa dança, um dos anéis grudou na calça de um rapaz que foi me levando na dança dele... Todos riam muito, até mãe, que nunca gostou de bagunça na casa dela. Todos estavam felizes, fratelli na mesa para as crianças e as moças, e cerveja para os rapazes...

Ah, pai, como eu gostaria de comemorar hoje os seus 70 anos. Nessa comemoração, como aquela dos seus 39, mãe estaria feliz, mesmo com a casa cheia de gente; minha irmã,então,estaria rindo à toa, grudada no seu braço, sem deixar eu chegar perto... E eu, eu estaria dançando pela sala, com os dedos cheios de anéis...

segunda-feira, 16 de julho de 2007

"... bebendo o ar fino"

Bandeira era tísico, todos sabem. E fez de sua admirável doença motivo para poesia. Não, não é nada de auto-ajuda, graças a Deus, é mais coisa para fazer rir. É, Bandeira fez de sua doença e de sua poesia motivos para rir da "contrariedade" que é a vida, na sua rabugice estrábica, antimelódica. Foi assim que, mesmo em " A Cinza das Horas"(1917), seu primeiro livro, marcado por um simbolismo pungente, lemos no poema que fez a Antonio Nobre (outro poeta tísico, português): o seguinte trecho:

"Com que magoado olhar, magoado espanto
Revejo em teu destino o meu destino!
Essa dor de tossir bebendo o ar fino
A esmorecer e desejando tanto..."

Esse trecho nos dá a deliciosa marca de Bandeira: a marca da ironia, ao invés da seriedade, da graça ao invés do pedantismo, do riso ao invés da choradeira tão somente. Diante da cumplidade de tísicos, Bandeira diz a Antonio Nobre a peculiaridade da vida e morte que os une: a "dor de tossir bebendo o ar fino", dor que os faz esmorecer diante do imperativo dos desejos, mas, ao mesmo tempo, dor que proporciona rir do que não tem remédio: a própria vida, em sua fragilidade cômica.

domingo, 15 de julho de 2007

Domingo não é um bom dia

Tem dias que não são bons para acordar. Tem dias que são bons para dormir, para sempre. Tem dias que não quero acordar, domingo por exemplo. Não quero acordar aos domingos, não quero. Domingo não é um bom dia para existir. Se eu pudesse eu pularia direto do sábado para a segunda. Domingo é um dia estragado, vazio, casas fechadas, ruas desertas, céu brilhando com uma ironia de fazer chorar. Seria melhor se chovesse, mas não, o sol tem que zombar da gente... De mim, principalmente, que gostaria de estar dormindo, para só acordar amanhã. Domingo não é um bom dia para viver. Que me perdoem os alegrinhos, os que gostam de praia, os que gostam de uma cerveja gelada.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

História de amor

Não sei quando se deu o primeiro momento, o primeiro toque, o alumbramento inicial. Não sei precisar a idade. Talvez aos seis anos mesmo. Talvez aos sete. Lembro da biblioteca. Pequena. Do Grupo Escolar. Da hora do recreio. Graças a Deus nunca tive aptidão para jogar baleado. E nunca tive aptidão para fazer amigos. Aliás, nunca tive aptidão para o mundo, graças a Deus. E ali, naquele espaço pequeno, tinha lugar para mim. Um lugar que ganhava dimensões, ficava enorme, à medida que eu abria os livros de Câmara Cascudo. Tinha uma tal história da Moura Torta...

Essas são as cenas do início. Minha irmã estudava num outro Grupo Escolar e assim podíamos trocar os livros que trazíamos emprestado da escola. Minha irmã gostava de ler, mas também gostava de jogar baleado, e de fazer amigos. Enfim, gostava do mundo. Por isso nossa troca não ia além de comentar as histórias lidas, e não compartilhávamos, sei, a medida do mesmo alumbramento.

Essa medida se inscrevia no amor ao livro enquanto objeto, não apenas enquanto história. Quando pai percebeu que gostávamos de ler e começou a comprar para nós os primeiros livros, minha irmã não cuidava deles, profanava-os. Eu comecei a não querer que ela lesse os meus, escondia-os. Ela acordava bem cedo, e ia ler, de pirraça, os meus livros, escondido. Quando eu acordava via os dedos gordurosos dela na página... O mundo desabava.

Eu ainda era uma criança, mas cuidava de meus livros como se cuidasse de uma pessoa. Forrava com um plástico, e lia com cuidado, com o zelo de um amor que até hoje não conheci em suas outras formas. Escrevia o meu nome na folha de rosto, e a data. Até hoje tenho esse hábito, adquirido na infância. Ato de proprietária, mãe, dona. Dona de um mundo - mais esquisito do que este, confesso, e onde a felicidade é possível da maneira mais negativa.

Por gostar tanto do objeto-livro, não consegui esquecer uma cena que vi, faz pouco tempo, numa novela de televisão. A cena é composta na biblioteca desorganizada de uma escola pública do Rio de Janeiro. A nova diretora entrou com sonhos de organizar toda aquela bagunça - não só a biblioteca, mas a própria escola. Só que um professor dá um beijo nela, e aí começa a trama de amor dos dois. Ela, uma diretora, tão politicamente correta, decide ir conversar com o professor; e escolhe a biblioteca como cenário para a conversa. Chegando lá, começam a discutir feio, e não é que a dita cuja tem o desplante de jogar os livros na cara do professor? Ele sai correndo e ela vai jogando nele todos os livros que vê pela frente. Que coisa horrorosa, que desrespeito! Aquela cena me deixou péssima, e me fez lembrar de minha irmã - que na infância lia os livros comendo carne frita. Delito pequeno, hoje vejo, diante desse.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Conversas com Clarice

Foi Clarice Lispector quem distinguiu as duas idades: a da matéria e a da alma. Eis em "Aniversário" (In: "Para não esquecer"): "... eu acho que se devia contar os anos pela alma. A gente dizia: aquele cara morreu com vinte anos de alma. E o cara tinha morrido com setenta anos de corpo."

Ontem eu fiz dez anos de alma, Clarice. Dez anos, tão pouco, para quem tem trinta e nove... O que eu fiz nos vinte e nove anos anteriores, sem alma? Fiz muitas coisas; por exemplo, li você pela primeira vez aos quinze. Mas, mesmo assim, minha alma ainda não tinha nascido. Lendo você, minha alma, imersa, palpitava, eu não entendia direito o que seu texto dizia, mas eu sentia todas aquelas coisas enigmáticas, todas aqueles sortilégios que me tiravam do mundo, me levavam para o ar, e que estavam nas entrelinhas do famoso não-dito que você tanto perseguiu...

Mesmo com tudo isso, até os vinte e nove anos eu só tinha nascido na matéria. Na alma, nem um pouco. Apesar de sofrer todos os arrebatamentos que só a alma consegue sofrer, apesar de desde os doze escrever poesia, apesar de...

... Só aos vinte e nove minha alma nasceu. Eu já era uma pré-balzaquiana, e com a alma por nascer... Enfim, ela nasceu. No dia 10 de julho de 1997, exatamente às 18 horas. Nesse dia eu toquei o invisível.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Castelos de nuvem

"De que matéria essencialmente divina são os castelos que não são de areia?"
A pergunta é de Fernando Pessoa (in O livro do desassossego), e eu ouso repetir, como um eco sem fundo. E me pergunto por que me faço esta pergunta, a esta hora da noite, quando, na televisão, passa jogo do Brasil. Por que será que ando assiduamente no outro mundo? Num poema Quintana disse estar sempre pensando em outra coisa - e assim se encontrava ao receber a extremunção: pensando nos seus sapatos antigos. Terno e brincalhão, nosso querido Quintana.
Enquanto lembro Quintana, ganho tempo para tentar responder à pergunta de Pessoa. Os castelos que não são de areia são, de fato, de uma matéria divina. Mas de que é feita tal matéria? Será por acaso de nuvem?
Os poetas, acredito, achariam provável. As nuvens têm algo de bíblico, de divino. Assim, os castelos que não são de areia têm, na sua matéria, a fluidez inefável das nuvens... composição de sonho, transitoriedade e transcendência.
Os castelos de areia se desmancham, enquanto que os castelos de nuvem se alteram, se mobilizam, se transformam...