sexta-feira, 30 de novembro de 2012

memórias

Pai era o homem que tinha mais afilhados no município. Sua casa, portanto, estava aberta para os inúmeros afilhados e compadres, coisa que eu e minha irmã, na fidalguia da adolescência, não tolerávamos. Mas coisa que tolerávamos menos, e que hoje acho de uma preciosidade de imagens e riqueza, era aquilo que pai fazia em dia de casamento do pessoal da roça, na cidade: oferecia a casa para as arrumações, para os fotógrafos e para as comilanças. Nós, menininhas metidas, nos envergonhávamos daquilo que só hoje vejo que era genuinamente poético e humano: os noivos iam se casar no fórum, mas se vestiam como se fossem casar na igreja. A noiva se embonecava lá em casa com véu, grinalda e buquê e ia com sua comitiva, andando, para o fórum. Depois, na volta, de novo andando pela cidade, com os apetrechos noivísticos, voltavam lá pra casa para os comes e os retratos. Num desses retratos, consta o pai de uma noiva lascando uma coxa de frango nos dentes, tendo como pano de fundo a velha geladeira branca da sala de jantar.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

sandálias kariri

Sandálias kariri. Quem conheceu levante a mão. Era o avesso das sandálias havaianas, eram feias, eram grosseiras, eram desprestigiadas; e nenhuma menina de nossa turma queria possuir uma. Ter uma kariki só por castigo. E foi por castigo que minha irmã ganhou um lindo par de presente.
Por perder milhares de havaianas, um dia mãe sentenciou no seu ouvido, com muita raiva: "Na próxima vez que você perder sua sandália, ganhará uma kariri."
Pelo jeito dela falar, kariri nem significava sandália.
Mas eram feinhas mesmo: uma cópia barata das havaianas; tinham a cor forte e uns desenhos mal feitos em relevo.
Pois bem: numa enchente próxima, ao atravessar o rio, lá se foi o par de havaianas novinho, o último par de havaianas que minha irmã teria.
Ela chorou, chorou, chorou tanto para não querer ganhar uma kariri, que mãe relevou. Deu outra havaiana.
A enchente continuou, rio levando casas, muros, pedras.
Depois passou a enchente. Veio o sol sadio que vem sempre após chuva grande. O rio gafanhoto lá do fundo de casa ficou meio raso, vendo a areia.
Num dia, bem cedo, fomos escovar os dentes no rio, eu e minha irmã.
De lá ouvimos um estrondo. Gritaram longe: "O sobrado está caindo!"
Como a curiosidade sempre foi sua amiga, minha irmã pulou dentro do rio; como o rio estava raso e tinha mais areia, ela foi, mas um pé de sandália ficou. Isso não impediu sua curiosidade: saiu correndo, apenas com um pé de sandália, para ver de perto o sobrado cair.
Pensou: na volta eu procuro.
Na volta procurou,  mas nada encontrou.
Mãe lhe chama da janela. Percebe o que está acontecendo.
Chama "Maísa, vem cá."
Ela sobe as escadas que dão para o portão de casa.
No portão mesmo mãe lhe espera com uma enxada. E com a intimação: "Vá cavar o rio; só volte aqui com a sandália."
A enxada era grande, ela pequena, e as duas travaram uma luta ali mesmo na escada para conseguirem descer juntas.
Ela e a enxada; as duas perigando cair.
Chegando no rio, ela começou a cavar. Cavou cavou cavou. Deu meio dia e nada de achar a sandália.
Mãe, espumando raiva, grita da janela: "Vem almoçar, e mais tarde você volta".
Mais tarde novas escavações. Agora com o sol na cara. Pensava que o pior de tudo era ganhar uma kariki. Continuou cavando. Enquanto cavava, o próprio rio se recompunha em seu corpo de areia como se ali ela não tivesse feito trabalho nenhum. Trabalho vão é trabalho com água.


sábado, 10 de novembro de 2012

oração



Lembro da noite em que eu iria saltar dos 12 para os 13 anos; essa noite eu passei chorando; mãe foi saber o que eu tinha e eu disse que estava ficando velha demais.
Lembro da noite em que fiz 17 anos; nessa noite eu me encontrei com uma amiga de 66, e chorei pitangas porque estava ficando velha. 
Lembro da noite em que completei 21 anos; nessa noite eu vestia uma blusa preta de manga comprida e uma saia branca de pregas; reclamei que estava ficando velha para uma amiga de 37 que foi tirar o meu retrato.
Hoje à noite apenas rezo.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

"alegria, alegria"



Nasci amanhã, em plena ditadura militar, acontecimento que não chegou ao conhecimento de mãe, e que pai sabia por ouvir o rádio dizer. Nasci na madrugada, e cheguei com os pés na frente, e não com a cabeça. Nasci no completo perigo, e foi mãe Isaura, parteira do povoado, quem puxou minhas pernas e eu fui saindo de lá de dentro de mãe, abrindo o berreiro para o mundo. Mãe conta que no alto-falante, naquela hora da madrugada, dava para ouvir a música "índia seus cabelos nos ombros caídos, lá, rá, lá, rá, lá". Na hora das dores, pai estava no bar jogando sinuca e bebendo. E chegou bem na horinha em que eu nasci. Mais tarde ele soltou foguete para comemorar minha vinda, e no chega-chega de tanta gente em casa, providenciaram o "xarope de mulher parida", que todo mundo bebeu e lambeu os beiços. Nasci sem qualquer cabelo, contrariando a música que tocava no alto-falante. Com a carona achatada, uns fiozinhos loiros no cocuruto que fizeram com que meu avô me chamasse de "gaza", nome horroroso, e que ele melhorou para "gazinha". Não há nenhuma novidade no meu nascimento, nenhuma. Quando nasci apenas o Brasil ruía com a ditadura militar e Caetano cantava "alegria, alegria".