terça-feira, 30 de agosto de 2011
um quilo de açúcar
Casimiro de Abreu é a cara de pai. Este fazia um tom melódico, quase cantando em falsete, para declamar com muita solenidade: Oh que saudades que tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais. Repetia esse trecho sempre, sempre, como se fosse a primeira vez. E ria no finalzinho com uma emoção inteira. Na encenação desse rotineiro poema era de sua alma que ele dizia, era de sua infância, do menino que ele foi com o seu sonho megalomaníaco de comer um quilo de açúcar. Menino obstinado que trabalhou duro na roça plantando mamona, vendendo, e indo, finalmente, à venda próxima, comprar o seu quilão de açúcar. Menino obstinado em busca do mistério da realização: foi correndo pro fundo do quintal, no mais escondido da sombra de uma árvore, e lá se pôs à feliz e triste tarefa de finalmente comer o sonho. No terceiro punhado, com a mão cheia do que é mais doce no mundo, começou a ver tudo rodar; a seguir o vômito saiu forte - talvez como alerta para tantas outras ambições futuras, muito mais doces e perigosas. Ora, comer um quilo de açúcar, engolir a doçura ao quilo é ambição por demais temerária, terna, embriagada, enjoativa.
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
sobre Clarice e os calmantes
Estou lendo a biografia de Clarice escrita por Benjamin Moser. Desde ontem. E prestes a acabar. São setecentas e poucas páginas. Ando a engolir o livro. Vendo defeitos, mas gostando demais, sem conseguir largar. Tive que o deixar para ir dar aula, mas voltando para casa sei que não irei dormir enquanto não terminá-lo. É Clarice, a sempre Clarice, demoníaca, bruxa de minha vida, que tanto amo e tanto odeio. Já escrevi aqui sobre isso: sobre esse complexo sentimento que me une a ela. Nós duas, oh, nós duas, como somos parecidas. Ambas têm insônia, ambas tomam remédio para dormir, ambas são ansiosas, ambas se dividem entre o animal e o polido. Por isso a tentação grande que tive no passado de imitá-la; por isso a contínua imitação inconsciente, pois que há traços de sua escrita na minha percepção de mundo. Por isso esse agudo desespero de viver e não viver. Não tenho dela a genialidade, a beleza, a vaidade. Não tenho dela quase nada, só esse feitiço, essa coisa de perseguição. Quando me livrarei dessa mulher? Como destituí-la de ser o tal monstro sagrado? Afinal alguns textos seus não sobrevivem mais à minha leitura. Fico com raiva de alguns livros dela, tanta raiva. De outros, levo um susto. Como naquele em que ela fala dos comprimidinhos para dormir, os calmantes: nele estou eu, euzinha, devoradora de sonhos artificiais, gritando sem ouvir o próprio grito:
"Ah, disse ela com simplicidade, é assim: vamos dizer que uma pessoa estivesse gritando e então a outra pessoa punha um travesseiro na boca da outra para não se ouvir o grito. Pois quando eu tomo calmante, eu não ouço o meu grito, sei que estou gritando mas não ouço, é assim, disse ela ajeitando a saia." (In: "A maçã no escuro")
quinta-feira, 25 de agosto de 2011
Penélope às avessas
Mas será que na intimidade tiramos verdadeiramente a roupa? Os namorados e os psicanalistas nunca terão a resposta fidedigna. Eles são capazes de garantir terem visto nossa nudez, mas o que viram foi o nosso grande manto; o manto transparente. Usamos essa indumentária para os íntimos; e, para os estranhos, usamos a roupa mais impermeável. Esse manto transparente é feito de tecido iluminado, por isso tanto engana. Ele tem bordados delicados nas pontas, ele parece sagrado. Nosso corpo se delineia perfeito dentro dele; e nosso espírito, ali bem acalentado, se desenrola etéreo e farto. Os namorados e os psicanalistas dão garantia do que vêem: a possível nudez. Mas só nós sabemos das perspicácias desse manto, só nós. Pois que o costuramos, bordando-o noite a noite na escuridão dos abismos, feito Penélope às avessas, à espera inconciliável de nós mesmas.
Imagem: "Mulher em azul transparente". In: www.google.com.br
terça-feira, 23 de agosto de 2011
meditação da terça-feira
Não sei distinguir o que é verdadeiro ou falso, o que é real e o que é simulacro; na verdade acho que tudo é encenação. Encenamos e não nos damos conta. E tem muita coisa de moda nisso aí. Quem não quer morrer aos vinte levante a mão. Virou clichê o suicídio, querer morrer para descansar de vez. Tudo é uma repetição exaustiva, a própria dor, o próprio esvaziamento, tudo é tédio, isso sim. O ser humano é um carrossel de imbecilidade, ainda mais por apostar numa autenticidade do "si mesmo". Tudo o que sentimos (ou acreditamos sentir) já foi sentido, e já foi dito, e repetimos nossos pais e avós em sensações e coisas realizadas. O inconsciente coletivo é um grande abismo de símbolos gregários. Por isso talvez não se distingue o que existe e o que é criado, o que é criado e o que existe. O que existe? Tente ao menos uma vez sentar-se na pedra mais alta do mundo e olhar lá embaixo: são mortos ou vivos que caminham pelas ruas? Quem sabe? O que sabemos, de fato? Essas perguntas também não se salvam do lugar comum, do clichê, e parece que não há saída não.
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
das coisas raras
É difícil continuar a viver, digo isso, e não é a primeira vez que digo; por aqui são mais de mil palavras como essa. Na minha inocência estúpida, gostaria de ser amada, mas amor não há. Todos estão ocupados. Os braços tolhidos, aleijados, pela plena convicção de que essa é a melhor verdade. Todos estão na sua, como eu diria se fosse jovem. Não sou mais. E nessa idade em que cheguei não há mais vontade para contendas, só para descanso. Quero apenas descansar meu corpo; acordar com cheiro de chocolate na cozinha, um rangido de porta que abre, uma mão tocando meu ombro sob o edredom largo.
quarta-feira, 17 de agosto de 2011
assanharol
Sempre prefiro lembrar o que fui: menina da roça, com medo de homem fardado. Esse medo continua, essa menina é insistente. Fico tremendo de medo ao ver um soldado com aquele revolvão na cintura. A menina que continuo sendo é fidelíssima. Nunca usará um rímel, que Deus lhe guarde. Nunca usará um blush, que Deus lhe proteja. Nunca usará salto alto de bico fino, que Deus é misericordioso. Jamais fará a tal chapinha, jamais quer ter cabelo liso, jamais quer viver em salão de beleza. A menina que continuo sendo é preguiçosa dessas coisas, e prefere o assanharol no cabelo, dá menos trabalho, é mais leve, é melhor. Essa menina não se esquece do dia em que foi compor, como professora convidada, uma banca de defesa de mestrado. Ela chegou cedo, e ficou por ali esperando a porta abrir. Só que ela teve sede, e foi pedir à servente um copo d'água. A servente lhe tratou mal, e disse que só tinha água de torneira. Depois, mais tarde, a servente foi se desculpar, pois pensou tratar-se de uma estudante. Nesse dia a menina regozijou-se pela descoberta incomum de não pertencer àquela tribo. Livre, solta no milharal, selvagem como sempre foi.
Imagem: litoral do Piauí.
terça-feira, 16 de agosto de 2011
FALSETE
sábado, 13 de agosto de 2011
amplidões
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
deserto
Queria entender os mecanismos maquiavélicos que formam cada osso da cara de um ser. As invejas nutridas em cada ponto de uma face branca de pó, aquelas unhas grandes e afiadas de quem quer pegar, de soslaio, sua presa. Meu Deus, como eu queria entender esse povo. Esse povo metido a besta. Gente que traz uma energia miasmática, cruzada, na qual uma boa prosa não flui, e que você precisa a todo tempo estar atento para não desmaiar. Gente que nos dá morredeira, cansaço, tédio, desesperança, raiva. Meu corpo não consegue, meu corpo crispa, adoece. E me recolho, inerte, deitada na minha cama, expulsa do mundo. Como deixar de ser estrangeira, e habitar essa mesma terra, em estado de comunhão? O que quero, muitas vezes, é dar uma de louca, e quebrar de porrada a cara de um. Meu Deus, eu sou doce, não sei pronunciar palavrão, não consigo rebater uma indelicadeza, não vou ter coragem de quebrar a cara de um, de unhar até sangrar uma face branca de pó. O que fazer, meu Deus, senhor da Justiça? Tua balança oscila, oscila, cai.
terça-feira, 9 de agosto de 2011
o retorno de Salvo
Salvo. Sempre vestia uma camisa azul marca volta ao mundo, bem fininha, uma calça de tergal e levava um classificador amarelo ensebado debaixo do braço. Era alto, um pouco roliço, negro, e quando eu o avistava no início da rua meu coração batia acelerado. Batia mais acelerado ainda quando eu estava lá no fundo da casa e ouvia suas palmas na janela e o som do classificador zunindo no parapeito com estardalhaço, junto com seu grito ecoando forte. Era ele chegando! Meu coração pulava junto com minhas pernas correndo casa afora para ver o que Salvo trazia. Salvo sempre trazia boas coisas. Emissário dos envelopes lacrados, com meu nome escrito atrás precedido pelos dizeres: "Para a jovem..." Na verdade eu amava demais esse homem, que tinha a cara cheia de verrugas e que gostava de andar pelas ruas com o passo solene e arrastado de quem sabe o que veio fazer no mundo.
Quando Salvo morreu, o carteiro que o substituiu não tinha a menor parcela de poesia. Exibia aquela fardinha amarela e azul, entregando cartas não a pé, mas montado numa bicicleta metida a besta. Foi desse tempo pra cá que as cartas começaram a desaparecer, e no lugar delas chegarem apenas faturas para pagamento de alguma coisa. O que me pergunto, desde a ida de Salvo para o céu dos carteiros perfeitos, era se ainda seria possível sentir aquela emoção tão antiga. Isso porque morando em apartamento, e pegando correspondência dentro de uma caixa parecida com cova emparedada de cemitério, nunca mais tinha visto um carteiro de verdade.
Porém, ontem um bateu no portão daqui de casa. Saí correndo, como só corri aos quinze. Vi que ele trazia um envelope médio, era um pacote, o livro. De repente não era mais um carteiro comum, fardado, que ali estava, bem próximo a mim. Salvo tomava seu posto e me entregava rindo, com a felicidade cúmplice da minha, o livro "A chuva de Maria", de minha amiga Martha Galrão. E ainda me disse assim, gritando, como sempre fazia todas as vezes em que batia na minha janela: "Menina, você é a pessoa que mais recebe cartas nessa cidade!"
quarta-feira, 3 de agosto de 2011
descarada e inútil
Toda perdição está na linguagem. O que vou falar? É sempre um perigo o que vou falar. Palavra é armadilha, é caricatura, é gregarismo. Meu Deus, dai-me o poder de me livrar da língua, dai-me a invisibilidade pura, o silêncio sem signos. É ridículo o ser humano falando, feito papagaio iludido, cantando o hino. Muitos são os que não se dão conta de que tudo que falam é perdido, sonoro desperdício do que chamam razão. Deixai-me Deus, com minha estupidez, deixai-me, sei não. Sei não se canto, se harmonizo o caos falido que transforma a língua em riso, não estado de tensão. Falam como caminham, como suam, como tomam banho. Palavra é sabão passando na pele, pratos lavados na pia, com a precisão lívida das mãos. Sabão que é vendido em vários lugares, na solidão igual do que se reproduz.
Língua que não vale mais nada no mercado, linguagem descarada e inútil, eu te persigo com a força vã dos desesperados.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
canção rotineira para o dia primeiro
É uma intensa e contínua sensação de estrangeirismo. Levar o corpo para lá e para cá, acordar, lavar a cara, pagar as contas do mês que se extinguiu, mostrar para os meus congêneres que estou viva e apta para exercer as funções de gente no mundo... É difícil isso; como ter que entrar num avião, num navio, numa aeronave, ou saber que vai morrer. Dizem os entendidos em espiritismo que essa sensação incômoda se dá em decorrência de uma saudade incurável do nosso corpo etéreo, sem carne, de nosso espírito livre, voando pelo espaço. Dá-se tudo isso, pois, em decorrência dessa nostalgia absurda de um voo esquecido, pois que nos plantaram no espírito leve essa matéria obesa, pesada, compacta. Resta-nos, portanto, essa vontade imensa, como cantou Cecília, de morar no último andar, e de lá olhar, em perspectiva tridimensional, a labuta de corpos se arrastando, tristes, continuamente, pelas filas dos bancos e ruas do mundo. Resta-nos o sonho de poder alcançar o ar, em toque íntimo, num encontro impossível.
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