sábado, 31 de dezembro de 2011

elucubrações bestas


Finalmente o último dia desse ano purgativo. Já vai tarde. Não vou me despedir dele, quero vê-lo pelas costas. Esse negócio de que se chorei ou se sorri o importante é que emoções eu vivi é bestagem. Esse ano foi a pedra de Sísifo com alguns momentos de alívio e bem-aventurança quando eu descansava um pouco o lombo ao apreciar, da montanha, o vale. O pior é que os astrólogos estão dizendo que o ano que chega hoje será energeticamente ruim por conta de um cinco, falam até em fim de mundo. Ora, se for o fim do mundo é melhor. Pois aí acaba logo tanta problematização humana.
Estou agora numa cidade que não é minha nem nunca será. Dentro de uma casa aconchegante, mas que também não é minha. Com uma vida estável, mas que também não é minha; pertence ao destino, aos deuses, ao que chamam de acaso ou não. O sentimento de propriedade não me pertence, talvez por isso eu não seja de fato uma burguesa; não esteja agora contabilizando dinheiro para comprar uma casa e um carro. Tudo que é meu está no ar. Para forçar uma poesia, sou o próprio ar. Ou seja, mesmo parecendo despretensiosa, sou a própria pretensão. O que é o ser humano senão isso, nesse mundinho besta?
Ora, a despretensão seria não dizer nada. Seria o silêncio. Ou não? Silenciar também é uma pretensão; de sabedoria. O suposto sábio é mudo? Ai, ai, não temos escapatória. Se estamos aqui nessa dimensão de terra, é porque não somos lá essas coisas. Se temos como destino o nosso próprio desaparecimento, não somos coisa que preste. Não se avexe, isso aqui é só elucubração de quem não tem o que fazer no último dia do ano. Jogo agora para os pombos invisíveis, numa praça larga, essas palavras que o vento leva.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

a cantilena de sempre


É verdade que apenas um número é acrescentado no calendário; mas já fizeram tanto fuzuê com isso que a data não é qualquer data. E não é mesmo. E quem diz isso é uma pessoa que já passou muitos reveillons dentro de casa, sozinha, só para mostrar que esse dia é como outro qualquer. Mas infelizmente não é. Nosso imaginário já foi tocado, agora já era. Há uma expectativa, queira ou não, com as contagens de segundos, aquela baboseira toda. Mesmo dormindo, creio que na passagem entramos em expectativa. E sempre dá um friozinho na barriga ao se tentar imaginar o que o "ano novo" nos traz. Já passei duas vezes pela carta do Enforcado, duas vezes pela carta dos Enamorados, uma vez pela Roda da Fortuna. Não sei qual a minha carta desse ano que está chegando, aliás, que começou no dia de meu aniversário, mas precisa ser a Temperança. Já chega, meu Deus, de tanto desespero, de tanto ranger de dentes, de tanta fúria. Preciso aprender a ser suave, a acolher com leveza o universo. Por que não aprendo a lição de Cecília? Oh, minha santa de olhos verdes, ensina-me a acolher as dores com as mesmas mãos que tocam, com amor, os livros.
Parece que não aprendo nada com o passar dos anos, do mesmo modo que dentro de mim parece que continuo com a mesma idade.Incrível como o nosso tempo mais interno é imóvel, perene, impermeável.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"semper parata"


Aos seis anos fui fadinha, designação para o primeiro patamar do bandeirantismo. (Sim, fui bandeirante dos seis aos catorze anos.) E como às fadinhas só era destinado o "trabalho" de brincar de boneca, eis que numa tarde de sol brincava de boneca no casarão das bandeirantes. Os brinquedos pertenciam à associação. O que eu não sabia era que aquela boneca em especial tinha dona: uma menina rica da cidade grande que a emprestou para a casa, na sua estação de férias no interior. Só soube disso depois que, sem querer, quebrei, num carinho exagerado, a cabeça da boneca. Todos os adultos que ali estavam, gritaram em uníssono: "A boneca de Fulana!" Um constrangimento doloroso marcou o ambiente, e eu senti, pela primeira vez, que havia cometido um erro, um grave erro. Fui tomada por um acesso de remorso, espécie de peso que me acompanhou dias e dias. Mesmo chorando aquilo não passava. O que a menina rica da cidade grande iria pensar de mim, eu que quebrei sua linda boneca? Até hoje esse sentimento de fatalidade, como consequência dos exageros de minha ternura diante do que não é meu e nunca será, me acompanha. Continuo quebrando, por causa de meu excesso de amor, as coisas alheias. E, ao quebrar, o formigamento no juízo continua me perseguindo, com a imagem de todos aqueles olhos e bocas me denunciando: "Oh, a boneca de Fulana!"
Eta eco maldito que me faz pedir perdão mil vezes ao mundo, sem qualquer chance de absolvição.


Imagem: símbolo do bandeirantismo."Semper parata", lema das bandeirantes, significa "estar sempre preparada".

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

reverência


Todos os dias um trator passa sobre minha alma. É assim: ele vem, pesado, e me esmaga. Nem no Natal ele deu uma trégua. Disse assim: no Natal não se nasce, se morre. Minha alma é translúcida, o trator é a morte. Imenso como um transatlântico. Diante dele me curvo, obediente, como um elefante de circo.



Imagem: filme "A hora da estrela".

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

a água mais morna


No inventário, trinta diários.
Aos quinze anos, dentro de um aquário,
escrevia com a água mais morna
os dias sem glória.
Nas linhas, o obituário da cidade,
Clamar os dias com sol e sem sol,
com chuva e sem chuva.
Sem saber, fotografava o insípido,
o que não se destrói com as traças,
o que é vivo, nem se curva - para o fim.
Uma menina sem mim, o que eu era.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Canção do dia de sempre


Tinha quinze anos e colei na porta de meu guarda-roupa esse poema. Continua lá.

Canção do dia de sempre
Mario Quintana

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

sábado, 17 de dezembro de 2011

de tudo que não se encontra


Tem momentos em que a literatura não nos acolhe; nem a música; nem o cinema; nem o amigo; nem Deus. Tem um momento em que tudo foge: o vento, o frio, o calor, a fome, a sede, a vontade. Você quer a mão que um dia esteve do seu lado, mas ela não chega. Você quer o escuro, o claro relampeja. Você não quer o Natal, o Natal lhe estampa na cara que esse mundo não é seu, afinal a santa ceia na sua casa nunca existiu. Você tem raiva de ser generosa, você quer estraçalhar sua roupa, você quer ficar nua no espaço, você não quer mais matar ninguém, afinal todos irão morrer. Muito menos você deseja qualquer prato de sopa, nem o abraço do mendigo, nem olhar para o céu, não quer mais crer na humanidade. Você se contorce em dor, seu corpo se decompõe, você é só trecho em branco de um sonho. E você nem desaparece, você continua, e toma pílulas e pílulas para dormir. Você compra seu sono em cápsulas, o que seria de você sem uma farmácia. Você, em calado silêncio arranca os cabelos, grita, uiva, e a noite de sábado, para quê?, não escuta, e nem precisaria. Você se livra do que Pandora não conseguiu, joga a esperança fora, antes de matá-la com perfeição. Você já não mais espera. Apenas olha.


Imagem: Cena do filme "Flores partidas" (2005), direção Jim Jarmusch.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

de novo


É mesmo perseguição, Noel está vindo de novo. Um monte deles, todos gorduchos e felizes, pregados em portas de doces lares e de prósperas lojas. Junto com ele, milhares de árvores cheias de bolas coloridas, e o azáfama de pessoas comprando sapatos e roupas. Natal para mim sempre foi sinônimo de solidão. Só quando criança, embalada pelo interesse nos presentes do velho Noel, me animava; me animava até receber o que queria; no dia seguinte voltava a ser tudo igual de novo. Natal é solidão, e Jesus Cristo soube profundamente dessa verdade. No interior da década de sessenta nascer merecia fogos de artifício. Quando nasci pai soltou milhares. Talvez vem daí minha aversão a festas, a bombas, a alegrias destemperadas. Com certeza me assustei com aquela estupidez na porta de casa, com o entra e sai de vizinhas curiosas em conhecerem minha cara, com tanta euforia sobre algo tão rotineiro e solitário. Nascer é profundamente solitário, assim como viver e morrer, e isso que estou falando é puro truísmo, todo mundo sabe, mas não custa nada repetir. Não custa nada repetir quando o Natal de novo se aproxima, quando todo mundo se apruma num vestido novo e num sapato da moda; quando as pessoas se apegam tristemente à repetição das festas para se sentirem, coitadas, um pouco felizes, soterrando para o mais fundo de si a verdade mais dolorosa e íntima, a que estão inapelavamente sozinhas.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

planeta vazio


Tudo é distante, inalcançável. Estico meu braço e não te alcanço. Meu braço se quebra nessa busca. Meus dois braços estão quebrados. Aquieto-me num movimento contrário: sob a chuva, numa casa sem telhado, sento-me em sete cadeiras, rodeada por uma mesa grande, uma mesa redonda, uma mesa parecida com a terra. Nesse planeta vazio me instalo, para sempre.


Imagem: Cena do filme "Melancholia" (2011), de Lars von Trier.

domingo, 4 de dezembro de 2011

"Este livro"


Sim, fiz de minha vida literatura. Tudo o que vivi e vivo vem de algum livro. Por isso nota-se em transparência nebulosa essa minha contínua propensão ao sonho, a suspender sempre e sempre a incredulidade, a ir de olhos fechados. Tudo, até uma cadeira amarela que ponho na sala vem de uma lembrança esquecida, lembrada de uma página. Tudo, tudo o que sou, não é o que sou, é o que li; por isso essa dificuldade em aceitar a verdade, a verdade do que eu poderia ser. Sou de fato o que li nos romances, nos contos, nos poemas. As pessoas que de mim se aproximam, se adensam em cores e perfumes fortes, em madeleines, em imagens, em sinestesias mentirosas, tudo criado por meu corpo simbólico, reverberando no mundo.

descoberta do mundo


Os finais de tarde de domingo são reflexos de um mar vazio: as águas foram para os lagos, para os rios distantes; ficou no lugar um vasto oco, profundo, profundo, e o mundo inteiro caberia nele, numa espécie de naufrágio coletivo. Mas há gente feliz nesse momento: saindo do cinema, tomando um guaraná, uma coca zero, uma coca litro. Enquanto que do lá de cá a vida é besta mesmo. A vida é besta, meu Deus, e esse crepúsculo confirma que tudo existe em estado de suspensão, tudo flutua, mas não se denuncia; somente as nuvens são sinceras: somente elas jamais disseram o contrário.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

uma sombra


A impressão é que eu sempre chego tarde. Quando eu chego, todos já se foram. O salão está vazio, e não há nenhuma cadeira. O salão é amplo, e meu eco não se repete para fora. A impressão é que chego por último, e todos foram embora. A casa é imensa, abandonada, e faz pouco me esperavam na cozinha. Tilintavam panelas, à minha espera. Não, nunca chego na hora. E andando, pelos vácuos que escapam, abraço o que não se encontra, na forma nítida de uma sombra.