sábado, 31 de janeiro de 2009
Mais seis confissões
Todo mundo sabe quase tudo de mim, já que esse blogue é completamente confessional. Só que fiquei muito feliz com a indicação, e preciso dar seguimento ao selo.
1. Ler e escrever para mim não são só entretenimento; mas salvação.
2. Me considero solitária, mas gostaria de ter um milhão de amigos, por mais que isso soe piegas e inverossímil.
3. Tenho a maior dificuldade com máquinas. Hoje passei duas horas para fazer um depósito no caixa eletrônico. Pedi ajuda a estranhos.
4. O que me faz sentir que estou na vida são a literatura, meus livros e meus alunos.
5. Pai, mãe, minha irmã, meu sobrinho são meu mundo mágico, lúdico.
6. Desde criança assisto à novela das oito. Comecei com O astro.
Gosto demais de ler blogues. Por isso ficou difícil eleger. Optei por aqueles que são obrigatórios abrir, todos os dias, antes mesmo de tomar café.
www.continhosparacaodormir.blogspot.com (Maria Sampaio)
www.contosempre.zip.net (Carlos Barbosa)
www.embrulhonoestomago.blogspot.com (Viviane Costa)
www.enredosetramas.blogspot.com (Janaína Amado)
www.estranhamentos.zip.net (M.)
www.licuri.wordpress.com (Marcus Gusmão)
www.mariamuadie.blogspot.com (Marta Galrão)
www.mmeka.wordpress.com (Kátia Borges)
www.nilsonpedro.wordpress.com ("Blag", de Nilson Pedro)
www.nonleia.blogspot.com (Mayrant Gallo)
www.vestigiosdasenhoritab.blogspot.com (Renata Belmonte)
www.xeudizer.blogspot.com (Bernardo Guimarães)
Imagem: meme-selo. "Indicação" de M.(Estranhamentos) e Carlos Barbosa (contosempre).
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
Noturno
EIS A MINHA ALMA
Eis a minha alma - nos últimos dias -,
Diante da fria intempérie do teu dorso.
Eis a minha alma - em curso, sozinha.
É o que te dou, o que te dei, tão minha:
A alma - terna, líquida, eterna, inquieta,
E a poesia: ávida pétala pendida, tão nua.
Imagem: "Lua da alma", por Sérgio Boeira.
(www.flickr.com)
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
"O cocho" ou "Das maldades caridosas"
Depois de tantos anos posso dizer que minha irmã é minha grande memória. Ela está presente em todos os momentos de minha infância, e sem sua forte presença eu não teria o que contar.
Nunca tive muito chamego com a noite - sinônimo de insônia, solidão. Escutar gente roncando enquanto você olha para o telhado, não é lá coisa que preste. E eu adorava quando em algumas noites minha irmã, inspiradíssima, começava a me contar causos engraçados. A noite se espichava, graças a Deus, pra eu poder ouvir todas as histórias e dar mil gargalhadas. Como sempre fui crédula, ela explorava bastante essa minha característica e exagerava no que contava para que minha risada fosse pra valer. As risadas eram tão escandalosas que mãe e pai, do outro quarto, se incomodavam. Pai ameaçava, de cinco em cinco minutos:
- Meninas, parem, está tarde: eu vou aí.
Esse eu vou aí, ameaça que nunca se concretizou, jamais saiu de meus ouvidos. Tal frase ficou em suspensão no tempo como uma carícia, um sinal de ternura envolto na alegria trazida pelas histórias de minha irmã.
Lembro-me bem de uma noite, na qual ela extinguindo todo o seu arsenal de invenção, e dizendo que iria dormir, implorei, pelo amor de Deus, contasse mais um causo, por favor. Então ela puxou da cachola uma invencionice que lhe rendeu prejuízos.
Me contou, num tom conspiratório, que quando éramos crianças, enquanto eu dormia no meu berço toda confortável, ela dormia era num cocho. Perguntei imediatamente:
- O que é um cocho?
- Um cocho? Ah um cocho é aquele lugar onde os cavalos e bois bebem água.
Que dó de minha irmã! Nem consegui rir. Ela gostou da piedade e continuou:
- Pois é; enquanto mãe agasalhava você toda no berço, eu de lá do cocho recebia era a coberta nos peitos, que ela jogava: eu que me embrulhasse sozinha!
Fiquei horrorizada. E, como não conhecia um cocho, pedi pra que ela o descrevesse. No dia em que a gente viajar eu lhe mostro um, garantiu, com uma firmeza desconcertante.
Na primeira viagem feita em família, quando um cocho despontou no meio do mato ela me cutucou atrás, no carro, e falou baixinho: Olha o que é um cocho.
Quase morro de pena de minha irmã!
Não me contive, e fui tirar satisfações com mãe. Como é que tu fazia isso com a própria filha? Botava ela pra dormir num cocho? Mãe, perplexa: O quê?
Detalhei tudo; quando vi, mãe estava chorando. Chamou minha irmã e, entre soluços, lhe perguntou que história era aquela de cocho. Minha irmã, com a cara pra cima, não sabia o que dizer. E mãe chorava, lembrando todo cuidado que teve - igualzinho - com suas duas meninas. Foi um drama. A risada ficou perdida, e minha irmã foi se desculpar dizendo que, ao inventar aquela história, apenas queria me agradar porque eu estava sem sono e lhe implorara mais um causo.
Imagem: "Cocho vazio".(www.flickr.com)
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
Abismo e sonho
Ontem confessei a meus alunos algo muito precioso, imagem de minha infância: eu lendo Meu pé de laranja Lima e chorando muito com os sofrimentos de Zezé; logo depois relendo o mesmo livro e chorando muito; a seguir, lendo mais uma vez e chorando chorando chorando. É tal cena, brinquei com os alunos, a revelação de uma aptidão ao masoquismo? Não, claro que não. O que acontecia já era a movimentação da vida me gratificando com a literatura. Eu tinha nove anos, sabia dos desconcertos do mundo; e Zezé sofrendo estabelecia comigo uma cumplicidade, uma comunhão de destinos. Oh, não sou diferente, não estou sozinha: outra criança também sofre como eu. Por isso o apego ao livro, a repetição da leitura e do choro. A gratificação proveniente das páginas dos romances me fazia lúcida, mas me insuflava vida; pois ver quase "tudo" não significa parar de sonhar.
A gratificação que a literatura traz tem um preço alto: o preço do mergulho na vida, conseqüentemente na dor. Há uma edificação aí, um ganho, uma perda, um soluço, um alívio, uma alegria. Há o grande e sofrido prazer, como diria Harold Bloom em seu desperto delírio. Sofre-se e é feliz, algo que parece contraditório, mas que leitores reincidentes entendem. A literatura nos dá a visão, a vivência, a possibilidade de entrarmos no mistério: largueza de abismo e sonho.
Imagem: "Drama e mistério". Por Miguel Angel Avi.(www.flickr.com)
sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
Sobre a arte do abandono
Realmente é uma experiência virtual triste: você bate na porta de um e-amigo (como diz Marcus) e dá de cara com o mudou-se, ou foi embora mesmo. Pensei que minha irmã tivesse superado a crise de não terminar o que inicia, de não dar aviamento, de deixar as coisas pelo meio do caminho. Na infância eram os brinquedos: arrumava-os pra brincar e depois de alguns minutos desistia e deixava-os onde estavam, ou seja, no meio da sala. Depois mocinha aprendeu a fazer crochê: começava um pano e não acabava - a moleza dava no couro e ela adiava pra quando Deus fosse servido. Adulta, comprava mil e um livros para fazer um determinado concurso, começava a estudar no maior fôlego para no terceiro dia abandonar tudo. Instigada por mim começou a fazer terapia; na quarta sessão não voltou mais. Disse que não gosta de nada que se torna obrigação. Acabou o blogue por que os colegas de trabalho todo dia cobravam texto novo. Aí ela pensou: Vão ver texto novo é agora: nada! E plac, apagou tudo. Fiquei choramingando "Puxa menina, seu blogue..."; e ela "Que mané blogue!"
Imagem: "Abandono". In: www.flickr.com
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
Como publicar um livro
Aproveitando o assunto do post anterior, me questiono: o que fazer para publicar um livro? É a pergunta que sempre morou em mim, desde os doze anos, ao começar a escrever. A resposta é complicadíssima. Aqui em Salvador pode se tornar simples se você tiver duas coisas: dinheiro e/ou amigos influentes. Se você tiver dinheiro, você publica seu livro em uma semana no mais tardar. E se tiver amigos, um grupo que lhe indique a um editor fechado, aí então você está na crista da onda, ou melhor, na crista da publicação. Caso não tenha nem um nem outro (nem dinheiro nem amigos influentes), a opção é escrever em blogues. Quem não tem computador, pode optar por lan house, pegar trinta minutos, pagar um real e escrever CORRENDO seu poema, ou seu conto, ou qualquer coisa.
Ah, havia me esquecido dos editais de cultura, dos prêmios literários. Nessa cidade tem, entre outros, o Braskem; mas se você já publicou um livro, mesmo que tenha sido publicaçãozinha doméstica, já era. Pode guardar seus sonhos na gaveta porque eles querem autores i-né-di-tos. Outro prêmio é aquele conhecido, do Banco Capital. Já participei dele duas vezes pra depois ficar sabendo que tive perto de ganhar, mas não ganhei. Recebi até carta de consolação. Depois dessas duas vezes nunca mais quis brincar nesse jogo. Lá eu quero saber de chegar perto de novo e não ganhar?
Então, e agora? Graças a Deus não li um livro que corria lá em casa, da estante ao tonel verde (conhecido como "cemitério de livros"), chamado "Como fazer amigos e influenciar pessoas". Desde pequena nunca quis saber disso: influenciar pessoas? Para quê? Para conseguir publicar um livro?
A coisa complica mais ainda se o livro que você tem na gaveta é de poesia. Porque se é um romance, ou livro de contos, você pode mandar para uma editora conhecida e... Claro, é possível. Mas poesia... "Poesia não sai", falaria qualquer livreiro, nem digo editor.
Oh, deve haver um santo dos "poetas bissextos em publicação". Deve haver.
Imagem: www.flickr.com
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
Os amarelinhos
A alegria de enxergar seu nome impresso numa capa de livro pela primeira vez é algo para nunca esquecer. Principalmente quando temos vinte e dois anos. Recebi pelo correio e quando abri o pacote foi uma coisa extraordinária, virei criança. Era uma manhã de sábado, e saí pulando pelas ruas, tal qual Clarice, quando menina, pelas pontes do Recife. A capa toda amarela..., e a amiga que a desenhou logo batizou os mil exemplares, que eu iria receber pelo correio, de "os amarelinhos da rayovac". Era promessa de livro pra não acabar nunca mais. Poderia fazer lançamento na região toda, por trezentos anos seguidos, e os livros não acabariam. Como de fato ainda não acabaram, e não acabarão.
Toda semana chegava uma leva que, coitado de pai, tinha de pagar para sair do correio. Assim que eu ia lá e retirava uma caixa, já recebia o aviso de outras chegando. Mãe não agüentava mais, dizia que aquele monte de caixa dentro de casa só iria atrair escorpião. Minha irmã ria com aquele aluvião de amarelinhos, invadindo quartos, despensa, banheiro, sótão, etc. E dinheiro que é bom - com a saída dos ditos cujos para mãos de leitores pagantes -, nada.
Foi aí que eu descobri como é esse negócio mesmo de publicar livros. É uma felicidade intensa e solitária. Mas é uma felicidade, e intensa. Que importa se não compraram todos os mil exemplares (oh, que audácia)! Que importa se os vendi para quem nem os abriu! Que importa se eles continuam dormindo no mais fatigante silêncio... Que importa! E que importa se fiquei viciada, querendo mais e mais mil exemplares, e guardando mais e mais caixas? Que importa?
Ah, mesmo que um livro nunca seja lido, nunca seja aberto, nunca tenha sido tocado, a sua existência enquanto forma, materialização, já vale toda uma vida humana.
Imagem: "os menores livros do mundo", por Emir Filho.(www.flickr.com)
domingo, 18 de janeiro de 2009
Divagações...
Janeiro sempre será silencioso. O telefone toca pouco. As pessoas dormem muito. Outras viajam, rumam para o mar, ou para a serra. Eu viajo tanto o ano inteiro que me dei ao luxo de passar as férias em casa. Dormindo. Lendo. Vendo as horas passarem, minuto por minuto, exaurindo cada segundo. Se já conhecia a solidão em outras esferas, agora a conheço como pessoa. A dita dorme no quarto ao lado. Não conversa nada: é muda; tão muda que não usa códigos. Silente, acorda cedo, perambula pela casa, olhando as horas mortas. Usa roupa de outras eras: vestido longo, mas não preto e sisudo... Branco, isso; o vestido que usa - único - é branco, quase translúcido.
Imagem: www.flickr.com
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
Discurso amoroso
Quando comecei a escrever versos, aos doze anos, endoidei completamente: era o tempo inteiro escrevendo, dia e noite; claro, bobagem, muita bobagem. Fazia poesia para o mundo, para os colegas, para a professora, para a cidade, para a rua, para isso e aquilo outro. Abri uma torneira de poesia ruim que não acabava nunca. O pior de tudo é que as pessoas gostavam. Eu tinha uma platéia de queixo caído com tanto "talento", elogiando essa besteirada toda. Preenchi um caderno de mais de trezentas páginas que, graças a mãe e a Deus, o rio levou.
Nessa época amava um menino moreno, quase cabo verde, até bonitinho. Achava que minha poesia o conquistaria. Engraçado, repeti isso a minha vida inteira. Até hoje, ao ficar apaixonada, escrevo versos para o objeto amoroso. Devo escrever muito mal porque nunca consegui conquistar nenhum deles com minha poesia. Alguns chegaram a ficar comovidos e, pior, convencidos; mas um poema meu nunca me rendeu um beijo como recompensa.
Essa explanação explica porque endoidei a escrever versos quando conheci o último amor. Era verso saindo por todos os poros. Quebrantei-me. Escrevi um livro grande - que até hoje está no limbo da gaveta, vivendo de traças. A cada poema que fazia ao meu eleito, mais o dito inchava. Fui engordando o sujeito com dísticos e metáforas, deixando-o completamente impassível diante de tanta lisonja.
É, amor e poesia não combinam mesmo. Por isso hoje escrevo pouco, amo menos ainda.
Imagem: "frida kahlo, fragmentos de um discurso amoroso", por walterbenjamin. In: www.flickr.com
quarta-feira, 14 de janeiro de 2009
profunda e perdida graça
Gosto muito de uma crônica de Cecília* na qual ela propõe uma visita insólita a Drummond. Começa assim:
"Ouvi falar no seu aniversário - ontem ou hoje - e apresso-me em fazer-lhe uma visita. O caso ficará célere nos anais da história literária, pelo menos, pois ambos gozamos da justa fama de avessos a esse gênero de esporte. Trata-se, porém, de uma visita diferente, invisível e pelo ar, maneira certa de encontrá-lo, dada a sua latifundiária ocupação de "Fazendeiro" do referido".(grifo meu)
Visita invisível: algo mesmo próprio a esses dois poetas. Drummond, o eterno fazendeiro do ar, um dia escreveu: "Do lado esquerdo carrego meus mortos./ Por isso caminho um pouco de banda"*: demonstração lírica do conhecimento de todos os mundos invisíveis que habitam o que somos...
Agora no ar, no invisível, imito Cecília e te proponho uma visita. Nela nada falaremos. Tu, sentado numa poltrona sobre uma rua de calçamento antigo, flutuando no espaço (e eu do outro lado), me olhará com uma profunda e perdida graça: dessa que as palavras jamais se alimentam, jamais se alimentarão... E que só o silêncio conhece, com sua aura de ternura e esquecimento.
*MEIRELES, Cecília. Visita a Carlos Drummond. In:_______. Escolha seu sonho. 21a. edição. Rio de Janeiro: Record, 1998.
*ANDRADE, Carlos Drummond de. Cemitérios: IV - De bolso. In:_______. Fazendeiro do ar. Rio de Janeiro: Record, 1993.
Imagem: "Montanhas, nuvens e o ar", por tomnetoself. In: www.flickr.com
segunda-feira, 12 de janeiro de 2009
Há
Há de restar algo para que a vida seja celebrada. Abrir a janela e colocar um pano de crochê e um jarro de flor, como fazemos na nossa terra para esperar a procissão. Vou providenciar então um pano de crochê diáfano, e agora mesmo um jarro de flor. Às quatro horas da tarde a procissão passa, as mulheres cantam avé avé avé maria, o andor tremula sob os passos dos carregadores, todos vestidos a rigor.
Há de restar algo para que a vida seja celebrada. Há de restar. E nesse algo os amigos todos lhe surpreendem com as luzes apagadas e um parabéns pra você. Uma vela tremula num bolo de chocolate, as palmas são muitas, a vela vai apagar, cuidado. Você sorri, os abraços lhe apertam, há um mistério e um amor. Não, nem tudo é solidão: nas luzes que se acenderam você viu muitos rostos - não eram simulacros - sorrindo, sorrindo, cantando.
Há de restar... A vida se repetindo, dia após dia, como refrão. Há de restar...
Imagem: "Festa de São Lázaro", por Roberto Faria. In: www.flickr.com
domingo, 11 de janeiro de 2009
retorno
"O Aeronauta" (Cecília Meireles)* começa assim seu canto "Quatro":
Agora chego e estremeço.
E olho e pergunto.
E estranho o aroma da terra,
as cores fortes do mundo
e a face humana.
É a volta do aeronauta às coisas terrenas. Nada ali lhe pertence mais. Seu corpo precisa de peso para que o chão o acolha, seus dentes precisam sorrir para os incautos desconhecidos: antigos amigos, parentes adormecidos e peças de roupa que um dia foram suas. Tudo deixou de ser o que era. Agora tudo se reveste em árida terra sem poética que a salve, janelas desmanchando mistérios.
Para ter certeza disso, o aeronauta ceciliano resolve voltar à sua antiga casa:
As portas dos meus armários,
que guardam dentro? Esqueci-me.
De que me servem?
Por mais que tudo examine,
vejo bem que já não tenho
laços e heranças.
Ah aeronauta ceciliano... Se te contasse em segredo que também vejo isso de mim... Nada mais prende minha alma, que agora ronda no espaço - sem armários e sem heranças. Estou solta, solta, solta no ar; e lá nas nuvens, repetindo teus versos, digo ao primeiro ente que me acolhe:
Perdoai-me chegar tão leve,
eu, passageiro
dos céus, de límpido vento.
*MEIRELES, Cecília. O aeronauta. In:_______. Poesias completas de Cecília Meireles. Doze noturnos da Holanda e outros poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
Imagem: "Nascer do sol nos ares", por Diva. In: www.flickr.com
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
Briga
Por falar em briga, lembrei de uma - antológica - contada por minha irmã:
Linda e Aldinete. Aliás, Aldinete e Linda.
Aldinete era a "maioral" da escola: batia em todo mundo, até nos meninos marmanjos.
Linda, uma menina boazinha, mas que falava mal de Aldinete... sem ver que Aldinete a ouvia, nas suas costas. Só deu tempo uma voz forte soar:
- Lá fora te pego. (Claro, voz de Aldinete)
Depois desse momento, a aula não foi mais a mesma para Linda. Como enfrentar Aldinete lá fora?
Pois bem. A aula terminou e Aldinete partiu na frente igual a um avião. Esperou todo mundo sair, e cadê Linda?
A última da escola. Enfim saiu.
Naquele tempo, pra começar uma briga era necessário um preâmbulo, as preliminares... Aí Aldinete disse:
- Me dê um tapa!
Linda prontamente respondeu:
- Eu só lhe dou um tapa se você me der um beliscão.
Aldinete torceu o beliscão no braço gordo de Linda. E esperou. Nada.
- Me belisque! - gritou Aldinete.
- Eu só lhe belisco se você me der um cascudo.
Croc! Fortíssimo.
- Me dê outro! (Aldinete já estava vermelha de ódio)
- Eu só lhe dou um cascudo se você me der um empurrão!
Veio de lá um empurrão tão grande que a coitada caiu no bueiro. Aldinete pediu pelo amor de Deus pra ela revidar. Só que...
- Eu só olhe dou um empurrão se você me der um tapa na cara!
O tabefe maior do mundo foi parar na cara da outra...
Aí, como aquilo tudo já estava lhe cansando, Aldinete arrumou a pasta e saiu, com uma voz decepcionada:
- Ah, você não é de briga não!
Imagem:www.flickr.com
Confissão
Ontem eu estava lendo uma pequena autobiografia de Borges*, quando dei de cara com esse trecho singular:
"As pessoas têm sido inexplicavelmente boas comigo. Não tenho inimigos e, se certas pessoas se disfarçaram como tais, elas têm sido demasiado gentis para me causar dor. Todas as vezes que leio algo que escreveram contra mim, não só compartilho o sentimento, como penso que eu mesmo poderia fazer muito melhor o trabalho. Talvez eu devesse aconselhar os aspirantes a inimigos que me enviem suas queixas de antemão, com a certeza absoluta de que receberão toda a minha ajuda e apoio. Secretamente, até desejei escrever, sob pseudônimo, uma longa invectiva contra mim mesmo. Ah! As cruas verdades que guardo em meu interior!" (pp.156-157)
Quem fala é um homem, na época, já famoso, e com setenta e poucos anos, caminhando em direção à completa serenidade da vida; como ele mesmo arremata: "Em minha idade, deve-se ter consciência dos próprios limites, pois esse conhecimento talvez possa levar à felicidade." (p.157)
Tudo isso assinalo hoje, dia 06 de janeiro, para dizer que estou muito longe de alcançar tal magnitude. Tenho a grande idiotia de querer ser amada por todos. Tenho mania de perseguição e sinto falta de inimigos declarados; é, inimigos que se revelam, com a cara fechada, chamando para uma briguinha lá fora, mostrando o muque, como só as crianças sabem fazer. Porque o mais terrível mesmo é o ressentimento, o silêncio, a palavra anônima, o abandono, a dor de uma ausência ferida.
*BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges: Um ensaio autobiográfico. São Paulo: Globo, 2000.
Imagem: "Borges", por cláudio aguirre. In: www.flickr.com
segunda-feira, 5 de janeiro de 2009
Maísa
O poema abaixo, de Manuel Bandeira*, é em homenagem à Menina da Ilha.
MAÍSA
Um dia pensei um poema para Maísa
"Maísa não é isso
Maísa não é aquilo
Como e então que Maísa me comove me sacode me bulerversa me hipnotiza?
Muito simplesmente
Maísa não é isso mas Maísa tem aquilo
Maísa não é aquilo mas Maísa tem isto
Os olhos de Maísa são dois não sei quê dois não sei como diga dois Oceanos
Não-Pacíficos
A boca de Maísa é isto isso e aquilo
Quem fala mais em Maísa a boca ou ou os olhos?
Os olhos e a boca de Maísa se entendem os olhos dizem uma coisa e a boca
de Maísa se condói se contrai se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão.
A boca de Maísa escanteia e os olhos de Maísa ficam sérios meu Deus como
os olhos de Maísa podem ser sérios e como
a boca de Maísa pode ser amarga!
Boca da noite (mas de repente alvorece num sorriso infantil inefável)"
Cacei imagens delirantes
Maísa podia não gostar
Cassei o poema.
Maísa reapareceu depois de longa ausência
Maísa emagreceu
Está melhor assim?
Nem melhor nem pior
Maísa não é um corpo
Maísa são dois olhos e uma boca
Essa é a Maísa da televisão
A Maísa que canta
A outra eu não conheço não
Não conheço de todo
Mas mando um beijo para ela.
*BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Record, s/d, p. 257.
Imagem:www.google.com.br
borgeana
Há três dias acordo com a nítida impressão de que estou lá em casa. Certa de ouvir o tilintar das xícaras na cozinha, e já sentindo o familiar cheiro de café, abro os olhos com uma preguiça danada. Mas ao abrir, vejo uma outra cena. Nela, mãe viajou para "a casa de mamãe", ou seja, foi visitar minha avó. Minha irmã pegou o ônibus para Itaberaba, depois de muito praguejar sobre a má sorte de trabalhar no hospital, ganhar aquele miserê e passar as férias praticamente no quintal de casa. Pai... ah, pai... essa é a mais triste notícia: foi para São Paulo, e já faz muito tempo... O pior é seu silêncio: nunca mais mandou notícias, não sabemos seu paradeiro, como está, com quem está.
Enfim, me vejo completamente só.
O que fazer? Continuar procurando rastros de minha pretensa mãe biológica?
Fuçar todos os papéis escritos por mãe e pai?
Ficar, à noite, com a luz acesa do quarto, lendo até raiar o dia, aproveitando assim a ausência de minha irmã?
"Não, não, não!" A realidade, amarga, me acorda.
E me mostra a equivocada data na folhinha: 2009.
Imagem: "L'entrée du labyrinthe", por Galaad. In: www.flickr.com
sábado, 3 de janeiro de 2009
Aberto para balanço
Este é o segundo ano do blogue. Fazendo um balanço, percebo que não tive perdas. Afinal a minha aposta de sair da psicoterapia e continuar a minha terapia aqui, está dando certo. Cansei de ficar cara a cara com um "profissional-homem" e dizer, toda semana, minhas perplexidades. Ganho muito mais ao dizer para o mundo, sem precisar mostrar minha cara. Era isso: na psicoterapia o que mais odiava era falar e ao mesmo tempo ser vista. O outro olhando o fundo de meu olho; o outro com olho de cachorro doido. O duplo sempre incomoda: é melhor o múltiplo, como é o caso de quem passa por aqui e lê minhas inquietações sem precisar ter olho perfurando outro olho. Aqui somente a alma circunda diante do invisível. É o suficiente. O mundo virtual, na figura dos amigos que aqui comentam, faz de mim uma persona. Eu que sempre achei ser só fumaça. Fumaça de fogão de lenha. Fumacê, como diria Maria Sampaio. Porque fumaça de fogão de lenha não é fumaça discreta, é fumaça de fazer tossir, de enevoar o mundo. O fato de eu ser chorona legitima a metáfora. Aqui nesse blogue me dou ao luxo de ser fumacê, fumaceiro, menina dengosa, ser eu, ora bolas (como diria Quintana). Afinal deixei de pagar a psicoterapia, e minha alma precisa conversar, precisa palrar, precisa tagarelar; pois que o silêncio já é fundo demais, e a memória larga, e a casa vazia.
Imagem: "Freud e Jung". In: www.flickr.com
quinta-feira, 1 de janeiro de 2009
Para quem bateu na porta
Oi, meu amigo, fiquei muito emocionada com sua visita aqui em casa hoje. Primeiro porque você obedeceu ao ritual de amizade de cidade pequena: não precisou telefonar para bater na porta. Segundo, porque você se preocupou comigo, achou que eu estava alimentando tristezas para dar bom caldo literário e veio ver se era de fato isso.
Viu e comprovou que não: pouquíssimos poemas, e a tristeza na mesma medida - aquela vital, que nos permite reconhecer a existência.
Viu e comprovou que não: pouquíssimos poemas, e a tristeza na mesma medida - aquela vital, que nos permite reconhecer a existência.
Gargalhada boa
Nessa primeira manhã do ano, minha irmã me ligou. Ficamos, como sempre, trinta minutos ao telefone. Rindo de nossas misérias. Como foi seu "ano"? Ela, Ah, meu ano aqui em casa foi assim: três bestas vestidas de branco, no maior tédio. O meu, respondo, foi vestida de camisola verde, aquela que mãe me deu no Natal. Ela Ah menina, de tarde me pesei estava com 63 quilos, vi que tinha engordado sem comer nada; então pensei: agora vou engordar comendo: comi um peru inteiro e bebi um barril de cerveja. Quiá, quiá, quiá! Minhas unhas, você não sabe, estão acabadas, depois que Edicarla [a secretária dela] foi embora, não agüento mais graxerar. Eu: E meus cabelos? Estão a coisa mais triste do mundo. Quiá, quiá, quiá!
Eis, pois, uma competição telefônica de misérias engraçadas.
2009 escuta com uma cara de bem-aventurança, cara de quem acabou de tomar posse; parecendo aqueles políticos envernizados, se preparando para discursar na Câmara. Eu e minha irmã conhecemos bem os políticos, nossas esperanças de um tempo melhor são proporcionais ao que já vivemos: não há desperdício de ilusões. O que há mesmo - como sempre houve nessas horas - é vontade de rir. Em todas as solenidades formais, desde crianças, íamos para rir. Rir do tom empolado da vida. Rir de nós mesmas, dos outros, do mundo.
Eta gargalhada boa.
Imagem: "Gargalhadas sem esforço", de Psyco Spell Man. In: www.flickr.com
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