
Sinto-me bastante comovida com o desaparecimento de alguns objetos. Remando contra, minha casa os acolhe. Acolhe meus bolachões, agora meus cds, que já estão virando algo do outro mundo. O que considero mesmo do outro mundo é o desparecimento das coisas. Para que eu vou ficar com um fone no ouvido se eu posso ligar o meu som e ouvir, deitada no sofá, a minha musiquinha? Para falar a verdade nem o controle remoto do som eu uso. Preciso, isso sim, é usar meus sentidos, tocar nas coisas: comprar o cd, abri-lo e colocá-lo pra funcionar, com minhas mãos, minhas mãos, e meu corpo em pé, em movimento. Nesse ínterim nostálgico, que falta me faz escutar os bolachões na minha radiola quebrada, sem agulha. O chiado é componente indispensável de um momento da vida que se inscrevia na voz de Legião Urbana, Lulu Santos, Caetano e Roberto. Mas guardo meus vinis, guardo-os; acharei um dia uma agulha nesse palheiro infernal que virou o nosso mundo tecnológico frio e desumano.
Não tenho nada contra o data-show, mas por favor, nas minhas aulas deixem-me usar meu lindo e mágico retroprojetor. Enquanto lemos poemas sentam-se nele, na transparência vista através de sua luz difusa, algumas mariposas, besouros, seres completamente embriagados. Sem contar que a sala ganha um escurinho de cinema e todos nós adentramos numa intimidade de alma, feérica, mística. Percebi que meus alunos já não gostam da claridade, assim como quem já se permite conhecer os mistérios do mundo. Então a luz do retroprojetor alia-se à penumbra intimista dos poemas, e todos acabamos nos encontrando naquele lugar onde há acolhimento, descanso e algo muito próximo à felicidade.
Até agora resisti a esse negócio de telefone colado ao corpo. Como disse lindamente Kátia Borges num poema, "eu venho de um tempo imóvel"; por isso não consigo entender como as pessoas são felizes com um celular pendurado no ouvido, falando em todos os lugares: na fila de supermercado, nos escritórios, no elevador. O celular é uma das piores pestes da humanidade: algo pequeno, indiscreto, inoportuno, e que faz a gente estar disponível em todos os momentos para o mundo. Como fugir, depois do celular? Muitos dizem: é só deixar desligado. Ora, desligado por desligado é melhor não tê-lo. Mas o mundo, como um grande algoz, está aí lhe cobrando um celular: você precisa ser encontrado, pois você precisa preencher formulários, ir a uma reunião extraordinária, enfim, você precisa estar a postos,
semper parata como falam as bandeirantes.
Outro dia estava assistindo a um documentário sobre
La dolce vita, de Fellini, e foi dito o quanto Marcello Mastroianni gostava de um telefone. Por isso em todos os cenários do referido filme tem um telefone à espreita. E o personagem Marcello Rubini fala mesmo, toda hora ele vai em busca do aparelho - que está sempre pendurado numa parede, imóvel, preto. Mastroianni alcançou o celular, já que morreu em 1996. Mas será que a fixação dele por telefone continuou ou continuaria com o celular? Tenho certeza que não. Primeiro porque aquele telefone antigo de colocar moedas tem um aparato estético, e que nos atinge inconscientemente. Não era, portanto, só o gesto de estar conectado ao mundo enquanto gravava; tenho certeza que Mastroianni era maior que isso em sua relação àquele aparelho que necessitava de um certo esforço de quem o usava, ao "puxar" os números; sem esquecer o sonzinho arrastado dos números circulando: tudo isso é algo maior, mais belo. Não tem comparação, pois, com os sons que trazem os celulares: gato miando, cachorro latindo, fiu-fiu e toda espécie de dejeto musical.
Ah, o quanto tenho sofrido ultimamente com o desaparecimento dos orelhões. Já repararam que eles não existem mais? E quando existem estão mortos, quebrados, detonados? Ora, o mundo pergunta, para que orelhão se todos têm celular? Eu não tenho, respondo com força. Até quando?, o mundo grita, num eco medonho e autoritário. Respondo apegando-me a Deus e pedindo-Lhe, numa oração infantil, que me livre dos celulares; primeiro consertando todos os orelhões; depois desmanchando essa pressa cruel que o mundo tem de nos usar como máquinas e de nos perturbar. Além do mais, meu Deus (e agora isso aqui já é uma oração adulta), ajude o homem a desistir de, além de desaparecer, diminuir os objetos: daqui a pouco em que tocaremos? O nada terá a textura do ar?
Imagem: "cena antiga". (www.google.com.br)