quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Bate-papo num final de tarde

O que escrever num final de tarde de quarta-feira? Tudo, menos sobre a falta de assunto, que já tem tradição na crônica brasileira. E o pior é que há muito assunto nas mãos. Há assunto demais, eis o problema grave. Como retirar tudo de dentro de mim para gravar no mundo? É falta de modéstia isto? Creio que não, pois o que tenho dentro de mim não é lá grande coisa, mas precisa sair, eu preciso limpar o terreno. É algo parecido com varrer aquele grande terreiro onde eu brincava com minha irmã, aos dois anos, na frente de lá de casa. Varrer bem varridinho para depois brincar, pular macaco (amarelinha) até dar dor de facão. Quando criança adorava girar, girar, girar, até ficar tonta e cair. A sensação de vertigem sempre me acompanhou como sedução, vontade de ir ao outro mundo e saber como é. Por isso amei tanto. Por isso de mim tenho essas notícias - palavras que se arrastam no meu ouvido e voam nas teclas do computador. Ah minha Drummondina... Onde estás agora? Você que eu cuidava como se cuida de um filho, sujando minhas mãos de vermelho quando ia trocar a sua fita... Você que sabia de minhas ambições de um dia me tornar escritora. Não é tão fácil como eu pensava, Drummondina. A "Manuela" de Mário de Andrade teve mais sorte que você, que eu. Tenho alguns poemas engavetados, tristes, buscando passear em letras impressas. Tenho essas croniquetas aqui, que se estivessem sido escritas em você, querida Drummondina, ninguém iria ler. Mas tenho alguns dez ou onze leitores assíduos que lêem essas besteiras que escrevo e comentam, isso porque estamos em dois mil e sete e eu finalmente aderi ao computador.
Escrever é mesmo buscar a vertigem, como eu fazia na infância: girar, girar, girar, ficar tonta e cair. É a mesma sensação de amar, amar, amar, e

domingo, 25 de novembro de 2007

Para a posteridade


Duas meninas lindas, com o mesmo tipo de vestido. Pressinto que vocês já devem saber quem é a Aeronauta aí.
Minha mãe encerava a casa com uma cera vermelha e um escovão. Ficava lustrando. E adorava forrar latas e enfeitá-las com plantas. Cenário ideal para tirar retrato das duas meninas. Nesse dia tenho a vaga lembrança de que brincávamos na varanda, perto do quintal. Mãe nos chamou, correndo: Mozart, o retratista, estava passando na rua, vamos aproveitar, disse ela, para tirarmos um retrato... Qual o lugar? Aqui, no corredor, junto dessa planta. Ah, eu com medo do retratista, com medo do retrato, com medo de tudo que era do mundo! Minha irmã, linda, sorria e estalava os dedos, sua mania preferida; enquanto o que eu desejava mesmo era entrar na parede e fugir daquele retrato e daquela máquina que tinha um bojo branco enorme olhando para o meu rosto. Os cabelos assanhados, vim correndo, mãe tinha pressa e o retratista não poderia esperar. O jeito era encarar para ficar livre logo: juntei minhas mãos em situação de desespero e resignação... Era para a posteridade, poderia estar pensando minha mãe...

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O lirismo de meu pai

A imagem de meu pai é a imagem do lirismo. Sorriso terno, bigodinho a la anos sessenta, calçados vulcabrás e calça estilo social. Usava óculos e me chamava de "papai". A minha irmã ele chamava de "pai". Via, nessa diferença de apelidos mimosos, mais carinho por mim: óbvio, "papai" é mais carinhoso que "pai". Depois cresci e comecei a desconfiar: achava que "pai" demonstrava algo mais sólido, mais seguro, mais firme. E "papai", não-confiança. Coisas de semântica amorosa, ciúmes e intrigas de amor. Triângulo que cedo se formou entre mim, ele e minha irmã. Minha irmã sempre ganhou na esperteza: fazia cálculos, estratégias, e conseguia dele tudo o que queria. Eu não, nunca soube nada de técnica, medidas, era impulsiva, levava o coração na frente sem pensar antes, e só resultava em burradas.... Resultado: em todas as fotos antigas minha irmã está ao seu lado. Em todas as minhas lembranças minha irmã está ao seu lado, sempre sorridente, a chata, grudando nos dois braços dele. O que me restava mesmo eram o carinho e os beliscões de mãe. Mas cadê o lirismo?
Ah, o lirismo... Meu pai gostava de ler. Gostava de poesia. E no meu primeiro dia de aula comprou para mim um caderno de desenho e uma caixa de lápis de cor. Quando comecei a escrever poesia, ele mostrava para todo mundo. Porém, nessa mesma época, minha irmã quis aprender a dirigir. Que orgulho também para esse pai! Ter uma filha que dirigia carros, que sabia resolver coisas em bancos, que lhe ajudava no sindicato, que sabia falar para pessoas estranhas. Claro, essa filha não era eu. Eu era a filha que sabia escrever poesia, e que aos vinte e dois anos publicou seu primeiro livro. Ah, que orgulho também! Mas nesse tempo já era, talvez, tarde. Ela me roubou ele na infância, em algum momento completamente esquecido por mim. As fotos nada dizem, só mostram: eu com mãe, ela com pai. Sempre. Nas festas, nos batizados, nas fotografias oficiais que ficavam penduradas na parede da sala... Uma das minhas últimas lembranças de infância de nós dois juntos foi ele me trazendo no colo, aos seis anos, depois de eu ter dançado a noite inteira numa festa. Vinha suada, no seu ombro, pelas ruas, quase dormindo... Um colo tão bom, tão terno, que nesta parte da lembrança minha irmã não aparece. Sei que ela também vinha da festa, mas não me lembro como, a interesseira. Ah, era um colo tão bom, tão límpido, tão amoroso, tão reconfortante, tão lírico...

domingo, 18 de novembro de 2007

Nuvens de outro mundo

Se há um dia em que deixo completamente de existir, esse dia é domingo. Olho para a cama, a cama olha para a mim, só assim para passar o dia de domingo: dormindo. Há um ímã benfazejo entre a cama e meu sono, a cama e meu corpo, a cama e a minha íntima vontade de não viver. Ir para a praia tomar banho de mar? "É um porrete...", como disse Vinícius no "Poema enjoadinho", em outro contexto, claro. Ir para a casa de algum amigo ou amiga, para assistir a filmes e fofocar? Melhor meus sonhos, enquanto durmo, e, ao acordar, pensar em como seriam as pessoas de outro mundo. Ou as pessoas da década de vinte, trinta e quarenta: com aquelas roupas antigas com cheiro de naftalina e uma nostalgia de um tempo que não vivi. Seria bom num domingo desses ir para a década de quarenta e lá encontrar H. Ouviríamos Albenzio Perrone cantando uma valsa no rádio,e depois passearíamos pela praça deserta. Quem sabe à tarde um filmezinho no Cine Sempre-Viva? Não, eu não tenho a vida que gostaria, é sempre outra a vida que a gente tem, não é verdade? Sabe, Ivan, sou uma máquina, mas uma máquina chorona, você que ainda não me conhece de longas datas pode não saber disso. Outros, que já passeiam nessa aeronava há mais tempo, sabem. Ah, gostei de ser tema de seu segundo post (http://ivandmitri.wordpress.com): fiquei importante por um dia, e (que ironia) um dia de domingo. Dia que não existo: fecho portas, janelas e cortinas e vou dar um passeio nas nuvens de outro mundo.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Meu amigo do invisível

E não é que um dos meus amigos virtuais, que comentam aqui, descobriu o meu endereço e deixou na portaria um presente de aniversário? Pois é. Não sei quais foram os indícios que deixei nesse blogue para ele conseguir as pistas de minha casa. Sei que ele acertou em cheio o meu gosto: deixou o livro "Da preguiça como método de trabalho", de Mario Quintana. E segundo o porteiro me informou, ele chegou aqui de madrugada. Veio todo de branco, como alguém de outro mundo, acordou o porteiro que estava dormindo em serviço e disse que não era preciso me acordar. Entregou o livro. Dentro, uma dedicatória: "Para Aeronauta, aérea persona, dona dos cabelos emaranhados de poesia e preguiça, este método de mestre. Do amigo Carlos Barbosa. 10.nov.2007".
Abro o livro e Quintana me diz: "Não despertemos o leitor. Os leitores são, por natureza, dorminhocos. Gostam de ler dormindo."
Entendi o enigma... Por isso meu amigo virtual não interfonou: ele queria que eu continuasse dormindo ao receber esse livro maravilhoso, metáfora de tudo.

domingo, 11 de novembro de 2007

Doloroso silêncio

Aos quinze, dezesseis anos adorava ler e reler as cartas trocadas por Manuel Bandeira e Mário de Andrade. O livro era uma ediçãozinha de bolso da ediouro ("Mário de Andrade: Cartas a Manuel Bandeira"), com uma letra minúscula, coisa para a gente ler de lupa. Mas naquele tempo nem usava óculos ainda, por isso poderia ler e reler quando quisesse. Na leitura dessas cartas fiquei sabendo que Mário batizou sua máquina de escrever de "Manuela" - claro, em homenagem ao seu querido amigo Manuel Bandeira. Puxa, adorei aquela idéia. E só pensava no dia em que poderia fazer o mesmo: comprar uma máquina e batizá-la com um nome assim, bastante singular, no qual eu homenagearia um escritor querido.
Apenas aos dezoito anos tive dinheiro suficiente para comprar minha primeira máquina. Uma máquina verde, portátil. Eu já havia feito curso de datilografia, datilografava com todos os dedos, rapidamente. Fiquei imitando Clarice Lispector, que dizia escrever com a máquina no colo enquanto olhava os filhos. Eu não tinha filhos, mas escrevia em qualquer lugar, usando o mesmo artifício clariceano - na sala, no quarto, na cozinha, no quintal, etc. Naquela época andava apaixonada demais por Carlos Drummond de Andrade e não pensei duas vezes: escrevi na própria máquina o nome "Drummondina" e colei na parte da frente da fulana. Pronto, minha máquina agora tinha um nome singular.
Com essa máquina escrevi muita besteira - achando que estava fazendo coisa grande, começando minha vida de escritora. Eu me sentia o máximo, datilografando literatice, tentando preencher minha vida vazia de péssima literatura feita por mim. Com bons sentimentos, o que é o pior. Ah, aqueles sentimentos eram bons demais para se fazer boa literatura. Para onde foram esses textos só o grande rio de minha terra poderá dizer, e pelas mãos de mãe, que fez essa caridade. Eu andava na época tentando imitar Cecília Meireles, era um horror, saía cada coisa de doer.
Mais tarde dei de cara com um livro magistral, emprestado por um amigo: "Cartas a um jovem poeta", de Rilke. Após ler e perceber que não poderia ficar com ele (nunca fui de roubar livros), pensei numa tarefa extraordinária: datilografar o livro todo. Eu precisava ter aquele livro para ler em todas as ocasiões de minha vida. E a tarefa foi maravilhosa: bati rápido, terminei logo. Depois fiz uma capa e com minha própria letra desenhei com um hidrocor verde: "Cartas a um jovem poeta - Rainer Maria Rilke". Lembro que quando me apaixonei de verdade, pela primeira vez, emprestei esse livro datilografado àquele que acreditava ser o homem de meu destino. Nem sei se ele leu. Me entregou depois de muito tempo, após eu ter insistido bastante pela devolução, sem me dizer uma palavra. Foi o primeiro doloroso silêncio de amor da minha vida.

sábado, 10 de novembro de 2007

Nasci...

Nasci numa madrugada de 10 de novembro. Para que dizer o ano? Para vocês descobrirem minha idade? Não, basta, tenho mil anos. É o que sinto, sem nenhuma pretensão de sabedoria. Ter mil anos significa a sensação de estar na vida há muito tempo, milenarmente. E isso não me dá sabedoria nenhuma, muito pelo contrário. Dá uma espécie de gastura (essa palavra é engraçada).
Mãe veio passar esse 10 de novembro comigo, como todos os anos ela faz. E eu pergunto, mais uma vez para ela, sobre o tal do nascimento. E ela diz: "seu pai estava no jogo, e quando ele chegou, de madrugada, por pouco você já teria nascido". Ela nunca esquece de frisar que pai madrugava no jogo enquanto ela já sentia as primeiras dores do parto. E foi bem na hora que ele chegou do jogo que eu cheguei também, de outro lugar. Grande achado metafórico, já fiz até poema com esse acontecimento.
Enfim, cheguei. Chorando muito, claro. Muito, muito, muito. Acho que não queria vir não. Como disse um amigo meu, eu vim para a vida contrariada, pois estava muito bem lá numa biblioteca do outro mundo, e me mandaram na marra. Como não passar a vida toda chorando por causa disso? Lá a biblioteca era sortida, tinha livros para eu ler por toda a eternidade, e eu só iria fazer isso, só isso... Para que vir para o mundo para fazer outras coisas?
Mas aqui estou, até hoje, e ainda preciso repetir: "graças a Deus", como todos fazem, afinal não sou de quebrar corrente. Aqui também tem bibliotecas, só não posso ficar nelas o tempo todo. Aqui não é nenhuma Pasárgada, mas "é uma aventura de tal modo inconseqüente", que quando estou triste, "mas triste de não ter jeito", esqueço que tudo existe, e adormeço...

terça-feira, 6 de novembro de 2007

"Notívaga"

Sempre fui insone. Enquanto o mundo dormia, eu escrevia poemas. Minha irmã reclamava da luz acesa. Eu apagava a luz e rabiscava meus garranchos na penumbra do quarto. No outro dia as palavras estavam todas atropeladas umas nas outras, e eu ia passar a limpo. Como escrevi nessa época, meu Deus! Tanto papel hoje perdido, outros recuperados, muitos engolidos pelo rio (mãe jogou muita coisa fora nas enchentes que vieram depois que saí de lá de casa).
Lembro quando descobri a palavra "notívago": pronto, achei o que eu era - "notívaga". Nunca tive sono de verdade. Perambulava por outro mundo enquanto todos da casa e da cidade dormiam. Gostava de escrever e de ler à noite. Era o que dava sentido à minha tão insignificante vida. Sempre senti isso: a inutilidade, o ser inútil. Só as palavras coloriam a existência - essa foi a descoberta que fiz, inconscientemente,aos seis anos, quando aprendi a ler. Depois fui tomando consciência de que só ler era preciso. E escrever, para não morrer.
Será que é esse o meu contato com Deus? Deus é a literatura? Pois só nela vejo uma possível salvação. Só através dela saio da inutilidade, e consigo ir além de mim, além de toda a mediocridade, além de toda essa vida sem graça.
Ah, livro que me assombrava: "Alice no País das Maravilhas". Sofri tanto com esse livro, com aquele coelho de relógio sumindo e a menina indo atrás... Ah, sofri muito. Aquelas coisas todas absurdas acontecendo com Alice era carga demais para uma menina de sete anos ler. Eu tinha pesadelos. Lembro que a edição que pai comprou (o exemplar era de minha irmã) trazia uma capa rosa, e de tanto o livro passar de lá para cá, de cá para lá, a capa vivia amassada. Isso mais transfigurava a história terrível que existia ali dentro.
Será que foi tudo isso que fez com que eu perdesse o sono? E visse que a vida era mesmo a história de Alice? E que as maravilhas eram sempre coisas absurdas acontecendo, a todo instante? Mas que havia uma solução boa, triste, engraçada, reconfortante, salvadora: a de poder ler tais histórias, mesmo tendo pesadelos depois...?

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Se vocês não tiverem preguiça de ler...

Francis Ponge bem estava certo quando proferiu: "Não se sai da árvore com meios de árvore" (In: "O partido das coisas"). Claro, só podemos "sair" da árvore pela linguagem; ou seja, só podemos saber da árvore nomeando-a, definindo-a pela linguagem humana, pelo ponto de vista humano...
G.H., personagem de Clarice Lispector (In: "A paixão segundo G.H."), descobriu, ao comer a massa branca da barata:"... a vida é dividida em qualidades e espécies, e a lei é que a barata só será amada e comida por outra barata", "pois a lei é que eu viva com a matéria de uma pessoa e não de uma barata". Então não havia despojamento naquele ato: uma mulher, comendo a massa branca de uma barata a fim de transcender sei lá o quê... Não há como. Assim é que G.H. descobre que ela não era santa, e ao comer a massa branca da digníssima "ortópero onívoro" (como define o "Aurélio"), estava mesmo era "querendo o acréscimo". Enfim, cada qual com sua espécie e suas limitações, e suas vontades de bem-aventuranças...
Todo esse preâmbulo é consequência de elucubrações "existencialistas" que tive hoje pela manhã na "sala de terapia". Eureca! Descobrimos o fio da meada...
Se um ser humano é um abismo, o outro ao seu lado também é. Se um vivente (como diz minha avó) é nojento, o outro também é. Se sua amiga muitas vezes lhe chateia, você também muitas vezes chateia a sua amiga, mesmo achando que não, mesmo que involuntariamente. Concluindo, em termos rasteiros: todo mundo é da mesma laia, não tem jeito! Não dá para presentear sem pensar na cara de felicidade de quem receberá o presente - e que será a nossa parca gratificação. Nosso ego precisa ser amaciado, dengado, mal-educado que é. Isso porque somos da espécie humana. Posso sair dela?
Impossível.
Então, como não sofrer com o inferno que é o outro?
Talvez enxergando o próprio inferno que eu sou.(Resposta auto-ajuda, assumo.)
Eu sou mimada, peço amor a todo mundo, quero que todo mundo goste de mim, quero que todo mundo me admire, me elogie, quero que todo mundo me ame!!! Quando isso não acontece, adoeço. Adoeço pela falta de amor, não durmo direito, e choro choro choro... Não o dia todo, pontualmente, como na infância, mas choro. E é um choro sentido, convulsivo, vitimada que fui pelo desamor.
Como consertar esse estrago?
- Não querendo ser amada? Mentira, quero ser amada.
- Dando presente e esperando a reação de gratificação do outro, do amor do outro? Sim. O que posso fazer se não consigo ser santa, sair do acréscimo, sair da matéria grossa e rude de que fui feita? Como sair da limitada espécie da qual sou uma fiel representante?
Italo Calvino, ao elencar valores que só a literatura poderá nos legar nesse milênio (In: "Seis propostas para o próximo milênio"), nos diz da leveza. Aliás, é a "Leveza" a primeira proposta. E entre tantos trechos belíssimos que poderia citar aqui, fico com duas passagens. Diz ele: "A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório", e lembra Paul Valéry: "É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma". A outra passagem é quando é conjecturado retirar o peso da tristeza chamando-a de melancolia - a "gravidade sem peso": uma certa "relação particular entre melancolia e humor"... Explana a seguir:

"(...) Assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo (...) e põe em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de relações que a constituem."

Pronto, Calvino disse tudo que eu queria dizer e que o psicólogo sugeriu, ao tentar reconsiderar a minha declaração de não conseguir sair da limitação da espécie, da condição do peso. Ele falou, fechando a sessão: "sim, não é possível, mas comece a ver tudo isso com mais leveza..."
A leveza é o 'humour', uma certa compreensão engraçada sobre o outro, sobre o mundo, e que não significa sair por aí fazendo piadinhas, mas contemplar a existência como um grande "como se", e rir de você mesmo, tentar trafegar pela vida como um pássaro, e não como uma pluma, como ensinou Valéry. (A rima final faz parte dos rituais de bons fechamentos que finalizam, nos ínterins das "representações", o "como se": encerrando as cortinas, fechando o livro, indo para outro blogue, desligando o computador...)
... E se eu continuo querendo gratificação? Claro, um comentário depois de ser lido é sempre bom, mas só se vocês gostarem do texto... E se não gostarem também, pois preciso pôr em prática essas elucubrações todas.

domingo, 4 de novembro de 2007

A pretensa suicida

A primeira vez que tive contato com uma pretensa suicida, faz muito tempo. Ela tinha doze anos e já namorava um rapaz de dezoito que levava nas costas a fama de ser o maconheiro da cidade. Esses são os primeiros dados. Os seguintes virão depois. Na casa em que ela morava com os pais e a irmã, havia uma varanda que dava para o quintal. No muro da varanda a mãe delas plantou uns crótons enormes, cada folha era do tamanho - quase - das duas meninas. Folhas verdes com riscos amarelos, um negócio sinistro, ameaçando o mundo. A mãe logo alertou, quando os crótons cresceram: "Cuidado, nem cheguem perto, esses crótons são veneno vivo!" A expressão "veneno vivo" funcionou, porque as duas nem se recostavam na varanda. E quando isso acontecia, tratavam logo de um bom banho para não restar no corpo nenhum resquício do tal veneno.
Agora voltemos aos primeiros dados: a menina tinha doze anos e namorava o dito maconheiro da cidade, como já mencionei. A mãe mostrou as garras: batia na menina, chamava o dito cujo de "cão do inferno" e de "esqueleto humano" (porque o homem era muito magro), fazia escândalos no meio da rua ao encontrar os dois juntos, e dentro de casa era surra, muita surra na coitada. Aquilo foi desgostando a menina. Mas desgostando mesmo. Tanto que ela planejou tudo. A varanda. Os crótons. Era sábado. A mãe iria para o rio lavar pratos. Depois iria para a rua visitar uma tal comadre. Era o dia certo. E, para facilitar, ainda tinha uma pedra no quintal ao lado dos crótons. Uma pedra acolhedora, boa de sentar para esperar a morte. O que ela fez? Comeu a maior folha que tinha, a mais verde, a mais viva, comeu toda, só deixando o talo. Depois sentou-se na pedra. E lá ficou esperando, com a barriga cheia, a tal da Indesejada, ou melhor, nesse caso, da Desejada. Esperou sentada a tarde inteira, inteira...

Ah, minha irmã, como foi boa essa mentira de mãe! Por causa dessa mentira - a despeito de você, até hoje, ainda sentir a língua formigar em razão do cróton comido - podemos comemorar, neste dia de domingo, mais um aniversário seu!