Dizem que sempre estamos a poucos milímetros da esquizofrenia. Basta querer correr pro mato. Sempre quero correr pro mato, só que onde moro o mato não é confiável. Onde moro a vida é de uma dificuldade pavorosa. Não conseguimos ser invisíveis para os passantes: todos nos olham, nos avaliam, vêem nossos intestinos. Se fosse só isso. Há muitos, mas muitos carros de som gritando pela cidade inteira, desde as sete da manhã. Tem um correio que não funciona regularmente: as faturas chegam com dois meses de atraso. Tem uma mortificação no ar, os paralelepípedos gemem um choro doloroso, e que não chega a comover. Minha rua, no crepúsculo, lembra as penumbras perturbadoras de Hitchcock, e eu quase vejo, cotidianamente nessa hora, a multidão de pássaros bicando o teto das casas. Também tem muito parecença com a cidade retratada em "A peste", de Camus: "um lugar neutro", "(...) uma cidade sem pombos"; por aqui tem árvores, mas "não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas":"(...) aqui as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos". Eu mesma vivo num tédio assombroso, beirando a esquizofrenia, porque não consigo criar hábitos. Todos por aqui têm hábitos, como em qualquer parte do mundo. Mas a diferença é que em outras partes do mundo as pessoas são vivas, e aqui não. Já foi estatisticamente comprovado que aqui há mais mortos que vivos. Não os enxergam só quem não usa uma discreta lupa invisível, ou nunca tiveram um soluço de mais de vinte minutos, sem cessar. São muitos mortos, todos de sobrecasaca, uns falam de um cinema antigo que houve por aqui, outros de um jornal, todos choram um tempo inexistente e feérico. Contam, os tais mortos, que a maldição do lugar envolve o desaparecimento do cinema. "Os que se acham vivos", dizem os mortos, "são mortos de fato"; e acrescentam: "nessa nossa frase não há metáfora". "Estão mortos e pensam que vivem, nessa vidinha de merda tomando cerveja e olhando os passantes", confirmam eles.
Tais vivos-mortos têm uma curiosidade mórbida pelos que chegam; principalmente aqueles que não querem ser mortos e entrar na triste estatística da cidade. Só que a azaração do olhar é tão cruel e miasmática, que nós que aqui chegamos cumprimos de imediato outro destino: o endoidamento, a gastura no juízo, e a vontade obsessiva de criar uma sociedade por aqui inexistente: a sociedade dos loucos, dos loucos de pedra, senhores de vestimenta desigual e palavreado estrangeiro, e sair pelas ruas como saltimbancos, rindo de tudo, dançando e tocando Nino Rota em filme de Fellini.
Imagem: cena de "La estrada", de Fellini (1954).