sexta-feira, 27 de julho de 2012

seis personagens em busca de um poema



PASTINHA, PRIQUITINHA, TITIA, SABURI, LALU E LOURO


Gosto dos loucos que jogam pedra e correm atrás das pessoas; gosto dos loucos varridos, com a língua solta e os parafusos destrambelhados. Pastinha, Priquitinha, Lalu, Louro, Titia, Saburi: todos eles loucos de pedra das ruas de minha infância. Titia vestia roupa de plástico e usava pulseiras de canudo, corria atrás de menino sem-que- fazer; Lalu gritava pelas ruas igual a uma condenada, com sete pedras na mão; Saburi vivia dando papel de loteria pra todos nós finalmente ficarmos ricos, e quando surtava corria atrás de tudo que é gente grande. Pastinha, com sua pasta ensebada debaixo do braço um dia deu uma carreira em mim e em minha irmã na beira do rio. Priquitinha insistia com todo mundo o seu velho mantra católico "Maria veve" , repetindo isso exaustivamente pelas ruas como a fazer entender que viu mesmo Maria, ser celestial que ele de fato era. Todos esses loucos foram capturados, levados para a Colônia em Feira de Santana, amarrados e desaparecidos para sempre.





quinta-feira, 26 de julho de 2012

Para Sandra

Conheci Sandra Pereira aqui na blogosfera. Não a conheço pessoalmente. Mas nossas almas se conhecem de antanho, de quando o mundo começou. Tanto tempo assim explica o fato de ela me presentear com um belo livro pelo correio, e esse livro me tocar profundamente o espírito. Só quando uma pessoa conhece outra assim, essas coisas acontecem. Abaixo o livro e o email de agradecimento.



Oi, Sandra, venho aqui lhe agradecer o grande presente que você me deu. Falo de "O fio das missangas", de Mia Couto. O livro é simplesmente encantador, e o senti tocar fundo dentro de mim. Cada conto, cada expressão poética, cada expressão bem humorada dialogaram com meu espírito. Saí sublinhando tanta coisa! Gostei tanto de "O homem cadente": delicadeza maior com as coisas do mundo visível e do invisível! Me senti uma "aero-anjo", tal como Zuzé.Todos os contos me tocaram muito, mas como esquecer "o adiado avô"? A sutileza das descobertas em "Mana Celulina, a esferográvida"? E a gordinha Isadorangela? "A infinita fiandeira" é um tratado poético-filosófico da arte! Se pudesse falaria sobre cada conto, mas sou menor diante deles. 
Tocou demais em mim os doidos de Mia Couto. Puxa vida, aquele que criou o aparelho televisivo para ver jogos. A outra que enterrou a televisão do amado junto dele. E o menino que queria morrer, "ir em caixa daquelas" !!
Obrigada, Sandra, por sua delicadeza, por me conhecer tão bem ao me presentear com um livro raro em beleza, lirismo e humanidade.
Abraço carinhoso,

Ângela.

domingo, 22 de julho de 2012

Zé Lope

Como esquecer Zé Lope? Impossível. Este morreu e continua no mundo dos vivos. Dos vivos que foram retratados por ele. O homem era retratista, gente; um retratista genial. Tinha mania de psicólogo na hora de tirar nosso retrato três por quatro para a matrícula do colégio: o cabelo precisava estar solto. Além do cabelo solto, era necessário uma seriedade enorme nossa, solenemente sentadas na cadeira tosca com um pano branco atrás. O pior é que íamos sempre em bando tirar fotos, e uma atiçava a outra para rir. O homem ficava nervoso e começava a cantar; digo, a falar: falava cantando, pois que tinha pedaço da língua cortada por Mané Besta, o doido mais lerdo e valente que já conheci.  Foi discutir com Mané Besta e deu no que deu: Mané Besta saiu no lucro e nós saímos perdendo, pois que ouvir Zé Lope falar era algo irritante. Ele era irritante, e sua fala cantada ainda mais nos irritava. Nunca vi pessoa mais compenetrada e rigorosa como aquela na arte de fotografar. E o resultado era sempre medíocre e mentiroso.
Ele tirou uma foto minha e não era eu. Foi entregar e eu não queria aceitar, pois que aquela menina horrorosa, com cabelo horrível, não era eu. Ele ficou nervoso e acabou falando aquela barbaridade cantada nunca esquecida por mim: mais ou menos que ele não tinha culpa de eu ter o cabelo que a barata roeu.
O homem era desaforado.
Não há como esquecer os desaforados.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A cidade dos invisíveis


Dizem que sempre estamos a poucos milímetros da esquizofrenia. Basta querer correr pro mato. Sempre quero correr pro mato, só que onde moro o mato não é confiável. Onde moro a vida é de uma dificuldade pavorosa. Não conseguimos ser invisíveis para os passantes: todos nos olham, nos avaliam, vêem nossos intestinos. Se fosse só isso. Há muitos, mas muitos carros de som gritando pela cidade inteira, desde as sete da manhã. Tem um correio que não funciona regularmente: as faturas chegam com dois meses de atraso. Tem uma mortificação no ar, os paralelepípedos gemem um choro doloroso, e que não chega a comover. Minha rua, no crepúsculo, lembra as penumbras perturbadoras de  Hitchcock, e eu quase vejo, cotidianamente nessa hora, a multidão de pássaros bicando o teto das casas. Também tem muito parecença com a cidade retratada em "A peste", de Camus: "um lugar neutro", "(...) uma cidade sem pombos"; por aqui tem árvores, mas "não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas":"(...) aqui as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos". Eu mesma vivo num tédio assombroso, beirando a esquizofrenia, porque não consigo criar hábitos. Todos por aqui têm hábitos, como em qualquer parte do mundo. Mas a diferença é que em outras partes do mundo as pessoas são vivas, e aqui não. Já foi estatisticamente comprovado que aqui há mais mortos que vivos. Não os enxergam só quem não usa uma discreta lupa invisível, ou nunca tiveram um soluço de mais de vinte minutos, sem cessar. São muitos mortos, todos de sobrecasaca, uns falam de um cinema antigo que houve por aqui, outros de um jornal, todos choram um tempo inexistente e feérico. Contam, os tais mortos, que a maldição do lugar envolve o desaparecimento do cinema. "Os que se acham vivos", dizem os mortos, "são mortos de fato"; e acrescentam: "nessa nossa frase não há metáfora". "Estão mortos e pensam que vivem, nessa vidinha de merda tomando cerveja e olhando os passantes", confirmam eles.
 Tais vivos-mortos têm uma curiosidade mórbida pelos que chegam; principalmente aqueles que não querem ser mortos e entrar na triste estatística da cidade. Só que a azaração do olhar é tão cruel e miasmática, que nós que aqui chegamos cumprimos de imediato outro destino: o endoidamento, a gastura no juízo, e a vontade obsessiva de criar uma sociedade por aqui inexistente: a sociedade dos loucos, dos loucos de pedra, senhores de vestimenta desigual e palavreado estrangeiro, e sair pelas ruas como saltimbancos, rindo de tudo, dançando e tocando Nino Rota em filme de Fellini.


Imagem: cena de "La estrada", de Fellini (1954).

terça-feira, 17 de julho de 2012

Ele

Havia um problema com o ano do nascimento dele, mas que era perfeitamente explicado pelas eleições. Os candidatos a prefeito, vereador, etc, queriam o seu voto, então foi obrigado a aumentar mais um ano na sua identificação para o mundo. Um ano mais velho no papel. Assim, ele dizia ter nascido em 1937 e a certidão dizia 1938. Essa história introdutória é parecida com a de muitos nordestinos, "por aí aos montes" como sentenciou Clarice Lispector. O poder quer o seu voto, não importa se o 'elemento' (como "eles" chamam)  passa por um processo de ressignificação de sujeito.
Não sei se ele - com o ano de nascimento mudado - passou por tal processo de "ressignificação": palavra refinada e artificial demais para a sua simplicidade de mateiro. Não sei também se no fundo lhe agradava ser mais moço no papel.  Ele vai vaidoso, por certo; gostava de uma camisa de casimira, gostava dos cabarés e das mulheres, e da voz nostálgica de Silvinho e de Vicente Celestino. Ele gostava de música, de poesia, dos repentes e dos repentistas. Ele nos levava para as noitadas de repentistas na roça. Ele era bastante sentimental: sempre recitava, com os olhos marejados, "Meus oito anos" de Casimiro de Abreu. E cantava todinha, em todas as partes, a música "Triste Partida", de Luiz Gonzaga. Cantava "Triste Partida" sempre chorando e dizendo que "era assim mesmo": ele passara por quase tudo aquilo, pois que 'a coisa ficou feia' e ele também um dia partiu para São Paulo.
Esse texto aqui talvez apenas interesse a minha irmã, sua eterna apaixonada; e a mim, que ora o homenageio no seu septuagésimo quinto aniversário. Não consigo imaginá-lo com essa idade, ele que se foi moço e belo, aos cinquenta e seis anos. Lembro que em todos os dezessete de julho nós lhe dávamos um presente,  acompanhado de um cartão. Os cartões desapareceram do mundo e os presentes são coisas por demais sólidas, pesadas. Portanto, hoje envio para ele, como presente que ambiciona ser leve, essas palavras, e inscritas no ar, ao vento dessa manhã.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

em preto e branco


Insisto que um dia partirei de trem; nunca, nunca de avião, nunca de ônibus, nunca de táxi. Partirei como nos  filmes antigos: na estação ferroviária, em pleno inverno, com sobretudo e chapéu de plumas. Entrarei na minha cabine e fumarei um cigarro, enquanto espero o cavaleiro à minha frente. Sonharei forte, como só se sonha na década de 50, com o trem apitando em  preto e branco.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

sobre os mistérios

Da série: Freud bem que poderia me ajudar...

Sonho sempre com elevadores indo para o mais alto dos céus; ou com escadas rolantes perigosas que rolam a torto e a direito os pés que se arriscam a nelas tentar pisar. Ontem sonhei dentro de um edifício macabro, onde tinha mais elevadores que espaços; um deles me levou para o vigésimo primeiro andar, em círculos. Lá, dentro de um caixa eletrônico, me esperava uma prova: nela eu precisava discorrer sobre um livro que nunca li. A atmosfera era de fim de mundo.

terça-feira, 10 de julho de 2012

às vesperas


Não esquecer que eu existo é a minha condenação. Meu corpo funciona, acorda, vive. Até quando?
Desde que fui refém num assalto ao Banco do Brasil, vivo sabendo o que é estar às vésperas. Como as pessoas esquecem que, rápido como um trovão, a bala pode sair da metralhadora?
Nessa semana atravessei o mar no ferry boat. Já tinha feito isso duas outras vezes. Só que dessa vez foi diferente: eu olhava a todo instante para o rosto das pessoas esperando o momento da correria. Um novo titanic? Vivo assim, espantada, espreitando a hora.
Seja dentro de um ônibus, sentada na sala, dormindo na minha cama, Ela me olha. É alta, como só uma tia pode ser alta; é magra, com os ossos de fora. É bela, a desgramada.
Um dia, saindo da livraria Cultura, com as mãos cheias de filmes e livros, uma amiga querida me perguntou para quem eu iria deixar - quando chegasse a hora, como para todos chegam - para quem eu iria deixar aquele manancial de provisões espirituais.
Para quem eu irei deixar.
É uma tarde de terça-feira, e eu aqui, aqui sempre às vésperas.


Imagem: cena do filme "L'avventura" (1960), de Michelangelo Antonioni.

terça-feira, 3 de julho de 2012

festa de aniversário

No dia 04 de julho de 2007 nasceu Aeronauta.
Na minha família nunca houve costume de festejar aniversário. Pai dizia que isso era coisa de rico.
O máximo de festa que já tive, em se tratando de aniversário, foi aos 14 anos. Uma festa verde, penitência que mãe pagou para sua filha mais nova (já contei aqui).
Depois disso, nada. Tenho horror a negócio de vela, chegou a hora de apagar a velinha, essa bestajada toda.
Mas não sei por que meus aniversários são lembrados por mim.
E também sempre lembro do aniversário da Aeronauta.
Ela irá fazer amanhã cinco anos de idade.
Jovem demais. E nem sei se pra ela serve o clichê: "tem uma vida toda pela frente". Isso só depende do blogspot: o desaparecimento desse é a morte certa da Aeronauta. Não salvei em nenhum lugar seus escritos.

A Aeronauta sou eu, agora arremedo Flaubert, sem qualquer glamour.