domingo, 29 de maio de 2011

a tampa


"Puseram-me uma tampa -
Todo o céu.
Puseram-me uma tampa.
(....................)"
(Álvaro de Campos)

Dia desses acordei no meio da noite na mais terrível escuridão. Senti-me tampada, como no poema acima. Entrei em desespero e gritei para mim: "e se morri?" "meu Deus, e se morri?" Saltei da cama num pulo, e de repente me lembrei de que talvez eu estivesse no meu quarto, e me lembrei de buscar acender a luz. Suava, suava. Só me acalmei ao conseguir encontrar o interruptor e me perceber no claro. Aliviada, murmurei: "então não foi ainda a hora, não morri". Deve ser assim morrer? Deve ser como acordar dentro de um lugar escuro, sem saída? Deve ser como despertar debaixo da terra?" Álvaro de Campos sentencia, sabiamente, num outro poema: "Nosso medo da morte é o de sermos enterrados vivos."
Ele está certo. O medo da morte é o medo de se continuar vivo dentro da morte. E daí é que provém o entalamento, a tampa, a sensação cruel de acordar com uma tampa; ser tampado; sentir-se encurralado no escuro, sem qualquer saída.
Abraça-me, meu filho, somos dois entes visíveis, e nos perdemos um do outro. Abraça-me, acolha-me nas entranhas onde te perdeste de mim, dê-me um lugar tranquilo, iluminado, um parque, para que eu possa livrar-me desse peso excessivo de vida sentenciada, dessa condição de viva que um dia, inexoravelmente, morrerá.

sábado, 28 de maio de 2011

maconha


Nunca fumei maconha por falta de completa aptidão com fumaça. Aos dez anos minha irmã fazia cigarro de papel e se esmerava naquele fumaceiro todo. Aos onze começou a namorar o maconheiro da cidade. Mas nunca, nunca ela botou ou botaria um baseado na boca. Em contrapartida, eu sempre detestei cigarro de papel, cigarro de qualquer tipo. Mas se não fosse o horror à fumaça, provaria numa boa um baseado. Gosto demais do cheiro, mas o problema é a fumaça entrando pela garganta, acho que eu sufocaria. Mas como não querer provar o proibido? Como não querer transgredir? Lembro de mim aos vinte anos querendo transgredir, namorando um motoqueiro-bancário-maconheiro e indo com a turma da erva para o campo de aviação, nas rodadas de fumaça e pink floid no toca-fitas do voiage. Nessa época eu já trabalhava no cartório e isso aumentava o meu prazer em estar ali. Nesse tempo eu não questionava muita coisa não, só queria fazer coisa considerada errada. Mas nunca fumei um beque. Seria, no fundo, medo?
Essa pergunta me coloca, creio com força, no cerne da questão.
Me coloca no seio da sociedade; me perdoem o chavão, mas pra falar em sociedade não é possível deixar de fora o chavão. Porque o chavão é a cara da sociedade; porque o lugar-comum é a cara da sociedade; porque a repetição, o gregarismo, é a cara da sociedade. Em suma, a repetição emburrece o mundo, e por isso a sociedade é burra, não pensa. E, por que não pensa, proíbe. E porque proíbe, dilacera, estraga o mundo.
O que acreditei até os vinte anos, e é o que a sociedade ensina, é que a maconha é a primeira das grandes drogas; que fumando o cara fica doidão e começa a quebrar tudo em casa, etc, etc, etc. Por isso o medo. O medo de ficar doidão. Daí vem os cacetetes, vem a polícia, vem o delegado. Vem os pais, os professores, os diretores. Vem todo mundo. E muitos deles sabem a verdade, pois que fumam e dormem tão bem, pois que fumam e amam tão bem. Ah se o cafezinho fosse proibido.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

felicidade


Sinto felicidade sim, mas ela vem sempre dolorosa, como se a cutucassem com um alfinete. Olho para a felicidade e decoro seu rosto, sua maneira de sorrir, decoro, para ter lucidez completa diante dela. Sei, portanto, que ela existe, não é delírio. Mas ela vem sempre muito delicada, vem sempre pronta a morrer. É mister (e usar essa palavra é estar de acordo com ela, pois que antiga), é mister estar atento à sua luz vez em vez emitida, tal qual vagalume em noite cerrada; não perder, por distração, sua epifania dilacerada em alegria, não perder. Não se distraia, amigo, não se distraia nesses breves insights doados por algum deus distraído. Esteja completamente lúcido, como se você fosse morrer. Detenha o tempo, antes que fuja, e sinta no instante e em memória essa íntima perfeição das coisas.

terça-feira, 10 de maio de 2011

apontamentos


Já vesti sabugo de milho. Foi quando eu era criança e vivia na roça. A vizinha que morava em frente fazia as roupas dos bonecos em sua máquina de mão. Lembro-me de mim brincando sozinha no milharal. E de um boneco com cara de gente, com sentimentos de gente. Nem imaginava ainda a existência de Visconde de Sabugosa, mas este já vivia ali nas minhas mãos de Deus. A maternidade como signo eterno também ali se cristalizava, nas mãos que entendiam aqueles bonecos tão feios. Lembro-me também de um sentimento absurdo de solidão, que àquela época não tinha ainda a fisionomia que hoje tem, mas que já se transmitia em mim em forma de medo. Meus seis anos alimentavam um medo enorme de homem fardado. Macabéa já em mim se instalava com uma força trágica. Tantos personagens me habitavam. Isso talvez explique meu medo do fole que mãe usava para passar ferro. Um dia meti meu pé no fole e um prego entrou bem no meio do meu pé. Estranho é sentir felicidade com a dor; pois foi essa a minha estréia no universo do amor, dos sentimentos ambíguos; pra mim esse acontecimento tem a equivalência de, pela primeira vez, abrir um livro. Um prego no pé desencadeando, portanto, sangue, choro e alegria. A dor traz a promessa do carinho, eu já sabia de muitas coisas, como todas as crianças pressentem. A magnitude terrível do amor é uma delas.
Depois, aos dez anos, pai ditava sua biografia para mim que a escrevia num caderno velho, pautado, fino. Não tive o menor cuidado com o caderno, que se perdeu para sempre, mas lembro-me com nitidez a sofreguidão e a felicidade com que pai a ditava, o sentimento de heroísmo que vinha em suas palavras, aquela certeza indubitável que todos têm de que suas vidas dão um livro. Pai sempre foi para mim a imagem do literário: lia todas as noites e a sua boca se mexia, produzindo murmúrios. Ele não lia com os olhos, lia com sons saindo dos lábios. Eu ouvia do quarto os murmúrios, que me acalentavam perante o medo do escuro e dos defuntos, medo de não conseguir dormir, de enfrentar as noites em claro. O livro que ele lia, pois, era já para mim uma ponte para outro mundo.
Mas nem sempre foi assim: um dia enfrentei o vazio, a perda, o oco, o que chamam de nada.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

esses dois sentimentos


Para entrar na barca de Caronte é necessário estar plenamente nu. Nudez absoluta de tudo que pesa, tanto no corpo quanto na psique. Por isso Menipo e seu riso couberam tão bem lá: ambos transmitiam a leveza necessária para que a travessia pudesse ser feita.
E esse sentimento de solidão? Pesará demais na barca? Como rir, Menipo, da solidão?
E esse sentimento de desamparo, proveniente do amor profundo?
Decerto pesarei demais na barca. E serei convidada a lançar no rio Aqueronte essa sensação pálida e pesada do desconforto maior de estar viva. Pois lá nesse momento já estarei, claro, morta. Mas sei que esses dois sentimentos não se desgrudarão tão fácil de meus ossos, de meu crânio disforme, de meu esqueleto obscurecido.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Celeste


Os mortos envelhecem?
A morta mais antiga de que tenho conhecimento é Celeste.
Esse nome soa na minha memória com a mesma dor em que o ouvi pela primeira vez.
Tinha eu nove ou dez anos, e soube a história dessa infeliz criatura. Celeste tinha minha idade de então, e um dia começou a sentir dores nas pernas. O pai, enfermeiro, nem imaginou que o destino da menina já começava ali a botar em prática seu fel, próprio de todos os destinos humanos. A menina ia para a aula de educação física e lá não conseguia movimentar-se. A professora, como sempre irascível, gritava e lhe prometia uma caderneta cheinha de faltas caso não fizesse o exercício direito. E Celeste, que sempre foi branca como as nuvens do céu, deu-se a ficar pálida, de uma palidez que só os moribundos sabem com profundidade.
Não a conheci, é fato, apenas ouvi essa história contada por sua irmã mais nova, Aninha. Aninha, de nossa idade, nos contava a história sempre, e nós a ouvíamos com a mesma dor e revolta, essa que nunca conseguirá mudar os ditames do mundo.
Celeste foi piorando, piorando, e o pai levou-a para São Paulo. De lá, a menina voltou corada e gorda. A cidade começou a dormir mais aliviada, afinal a cidade sofria com tudo aquilo. A menina era nova demais, não merecia, os jovens merecem pele corada, saúde, vida. E era isso que Celeste exibia agora.
Oh vã, traiçoeira, sarcástica, astuta vida.
A menina, de corada e gorda, de repente ganhou de novo a palidez. E foi definhando, coitada, num ritmo acelerado. E pior: sabia que iria morrer, e gritava ao pai, seu grande amor, que não a deixasse ir, que ela era jovem, que ela tinha medo de morrer. E gritava isso na janela, e as pessoas que passavam ouviam, e todo mundo parava para assistir àquele drama, aquele drama sem remissão. E o pai e a mãe na janela chorando com ela, abraçando-se a ela, sem deter a morte que a espreitava, zombeteira, do outro lado da rua, já tão perto de casa.
E logo Celeste morreu. De leucemia, doença que ficou gravada na minha memória como o maior mal da humanidade.
Eu era criança, Celeste já havia morrido, eu não a conheci.
Mas essa noite sonhei que ela estava completamente envelhecida.
Disse para mim que assim estava porque morreu há muitos anos, muitos anos...
Ao falar, sua voz quase não saía de tão longe, exibindo-se pra mim em fotografia amarelecida, rosto a se desfigurar e a se perder, para sempre, no vácuo.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Livrai-me


Livrai-me, meu Deus, de ter que encarar uma declaração de imposto de renda! Arranjai-me, meu Deus, sempre um contador livre de última hora! Livrai-me, Senhor, livrai-me de todas as reuniões do mundo, livrai-me!, por todas as velas e incensos e oferendas, livrai-me, meu Deus! Livrai-me, ainda, dos extratos, das filas de banco, das filas de supermercado, dos ônibus abarrotados, livrai-me, meu Deus, do meu sapato quebrar no meio da rua, de gente aborrecida, de gente que não consegue chorar, de gente que está sempre pronta a fazer um parecer, a fazer parte de um conselho, a bater o martelo! Livrai-me Deus, e afirmo que esse pedido não faz parte de mera retórica, é pedido dos mais urgentes, dos mais dolorosos, dos mais verdadeiros!, pois que esse mundo é cheio de papelucho inútil, de requerimentos antilíricos, e é tudo tão difícil, tão difícil, que eu sempre prefiro acordar com uma grande chuva, uma chuva de acabar mundo, e ficar na cama a sonhar os sonhos dos loucos, aqueles que moram nos hospícios, andando leves pelos corredores, a falar a língua dos mortos.