Não consigo ouvir
A Triste Partida, na voz de Luiz Gonzaga, e não chorar. Visualizo de novo pai cantando essa música com a voz embargada, chorando a sua dor de partir para São Paulo quando eu e minha irmã éramos bebês. A letra dessa música é de Patativa do Assaré, como talvez alguns poucos saibam. É o que dá ser compositor, e, no caso de Patativa, ser poeta e ter seu poema musicado, e cantado por outro. Mas não é isso que importa aqui hoje. Importa pra mim hoje a presença de pai. A presença de pai nos "repentes" na roça, levando a tiracolo eu e minha irmã. Lembro bem de um grande amigo seu, chamado Zé Esposo, mais um nordestino que deixou sua roça e foi morar na capitá de São Paulo, e de lá voltou de óculos escuros, gravador no ombro e sua velha viola na mão. E ia lá pra casa fazer graça na sala, rimando para Deus e o mundo, para quem passava na rua e para quem entrava em casa. A gente ria a noite toda. Pai feliz, orgulhoso. Pai tinha um orgulho danado de ter vindo da roça. Pai era um amante da roça, odiava a cidade, dizia que um dia ainda voltaria para o mato, sem luz e sem geladeira. Mãe, eu e minha irmã gritávamos "não, não, não" - já estávamos contaminadas pela ilusão besta de sermos citadinas. Pai, que não fazia versos, era um poeta da roça, como Patativa do Assaré. Não queria viver ali, naquele meio de gente ingrata; ele queria era a sua roça, seu pé de milho, seu pé de fulô. Mas infelizmente foi ali ficando, ficando, ficando... Uma ou duas vezes na semana ia para a rocinha que comprou, com muita dificuldade; e plantava alguma coisa, que nunca dava. E que permitia que mãe lhe jogasse na cara: "Tá vendo aí, Bino? Pra que roça? Roça só serve para perder dinheiro!" Ele não ouvia, era um apaixonado. Gostava dos tabaréus e de sua parentalha que lá ficou.
Eu era jovem demais para entender isso tudo. Eu era metida a besta. Lembro que no lançamento de meu primeiro livro, ele, entusiasmado com a filha, levou para o lançamento todos os roceiros seus conhecidos e os parentes. Aquele povo todo descendo da camionete, numa felicidade, e eu nem ousadia dei. Metida a biscoito de sebo, escritora da cidade, negligenciei a verdadeira poesia: aquele povo ali que, vestido com roupas diferentes e cheiros diferentes, aplaudia a poetisa besta, filha de Bino, este, orgulhoso da menina ingrata, maquiada de coisa nenhuma. Pai sim era o poeta da noite, e eu nem sabia.
Esse orgulho das origens roceiras, sertanejas; essa alegria de beber água em pote de barro e de conversar com quem verdadeiramente sabia tudo da vida, pai tinha de sobra. Pai era um sertanejo verdadeiro, assim como foi Patativa do Assaré. Falo isso porque há muito poeta por aí tirado a sertanejo e não é não; esses moram em apartamentos e nunca sentiram o verdadeiro cheiro de sovaco, proveniente de um dia inteiro de alguém repousado sobre um cabo de enxada em tardes de sol quente.
Hoje, dia de voto, esse texto é para ele: pai, o único político honesto que conheci. Foi vereador, vice-prefeito e nunca esqueceu seu povo - que o elegeu. Nunca teve dinheiro guardado no banco, e o que mais queria na vida era voltar para sua roça. Morreu na cidade, mas foi enterrado no meio do mato, como pediu, num cemitério de beira de estrada, onde estão seus parentes - todos roceiros. Não atendemos ao seu pedido de voltar para a roça, mas atendemos a esse seu último pedido de voltar à terra de onde veio, de se tornar verdadeiramente terra, o que sempre foi.
Imagem: eu, aos 17 anos, acompanhada por ele e sua ternura, no encerramento de estágio do magistério (1985).