
Toda noite sonho com as mesmas ruas, as mesmas árvores, e a nossa antiga casa. Só nos sonhos ela resta inteira, sem qualquer reforma. E quando acordo nas manhãs penso estar na minha cama, aquele berção que usei até os dezesseis anos. Sinto ainda o cheiro da grade que separava esse berção da cama de minha irmã. A coberta de chinil cor de abóbora sei ainda da textura nas minha mãos.
Toda manhã, portanto, é a mesma coisa: acordo lá, como uma menina velha. Alguns segundos são o suficiente pra eu perceber: não existe berção mais, nem casa mais, nem mais nada. E naquele tempo nem era tão bom assim: odiava aquele berço, odiava dormir na frente, tinha tanto medo de defunto. Minha irmã ria vitoriosa, pois era SUA a parede para virar a cara pra dormir, espantando assim todos os defuntos do mundo. Eu não, na frente não havia escapatória; então virava a cara para a grade. Por isso até hoje aquele cheiro no nariz. Cheiro forte de madeira de lei, que ajudava a me livrar dos mortos e a tentar dormir em paz. Minha irmã ao acordar saltava a grade com barulho. Aquilo me irritava demais. E como eu odiava aquela proteção que lhe deram: a parede!, tão almejada por mim. Ela dizia que tinha sorte e eu azar.
Não sei onde tudo começa de verdade. Mas minha vida começou naquela casa. Tinha seis anos quando nos mudamos pra lá. Era uma casa estiradona, com um corredor imenso, e apenas dois quartos. Minha memória guarda tudo com perfeccionismo. Até as manchas de umidade na parede do corredor, que não tinha tinta que tirasse, até isso. O cimento vermelho e gelado. O barulho da enceradeira. Os crótons nas latas forradas de jornal.
Os banheiros separados: chuveiro num cômodo e vaso sanitário num outro cômodo. Pra lavar o rosto? Uma bacia pequena, branca. Lembro dessa salinha onde ficavam todos esses apetrechos de higiene: era também de cimento vermelho, trazia no chão umas partes quebradas que faziam dali um lugar ideal pra jogar giribita. Assim, as pedras feitas com caco de telha não deslizavam muito e podíamos ampará-las com dedos adestrados e felizes.
Nas noites recupero aquela escadinha do quintal que dava para o rio. Recupero também o quintal. E uma pedra meio inclinada onde minha irmã sentou numa tarde de sábado para morrer. E as janelas cheias de grades (das salas) que se viravam para o pé de carambola. Ali mãe colocava uma bacia enorme para nos dar banho. Na janela as roupas que ela escolhia pra gente usar. Perto da bacia, o tonel verde - cemitério de coisas inúteis. Era lá dentro que mãe jogava as coisas que o rio iria levar na próxima enchente. Foi lá que ela jogou, escondido de mim, todas as minhas revistas em quadrinhos. Corta!
Imagem: Rua da ilha, 1990.