domingo, 29 de novembro de 2009
Os deliciosos cacófatos de Bandeira
SAUDAÇÃO A VINÍCIUS DE MORAES
Marcus Vinícius
Cruz de Moraes,
Eu não sabia
Que no teu nome
Tu carregavas
A tua cruz
De fogo e lavas.
Cruz da poesia?
Cruz do renome?
Marcus Vinícius
Que em tuas puras,
Tuas selvagens
Raras imagens
Da mais pungente
Melancolia
Ficaste ardente
Para jamais;
Quais são teus vícios,
Vinícius, quais,
Para os purgares
Nas consulares
Assinaturas?
Marcus Vinícius,
Eu já te tinha
(E te ofereço
esta tetinha)
Como um dos marcos
De maior preço
Do bom lirismo
Da pátria minha.
Mas não sabia
Que fosses Marcus
Pelo batismo.
Hoje que o sei,
Te gritarei
Num poema bem,
Bem, não! no mais
Pantafaçudo
Que já compus:
- Marcus Vinícius
Cruz de Moraes
(Mello também),
De cruz a cruz
Eu te saúdo!
MÁRCIA
Se tomares como Norma
Reto caminho na vida
Viverás da melhor forma:
Terás bom nome, conforto
E ventura garantida,
Pois chegarás a bom porto
Como ela (ou sem moela!)
Márcia bela.
*Grifos meus. In: BANDEIRA, Manuel. Mafuá do malungo.
Imagem: www.google.com.br
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Cena 1
Toda noite sonho com as mesmas ruas, as mesmas árvores, e a nossa antiga casa. Só nos sonhos ela resta inteira, sem qualquer reforma. E quando acordo nas manhãs penso estar na minha cama, aquele berção que usei até os dezesseis anos. Sinto ainda o cheiro da grade que separava esse berção da cama de minha irmã. A coberta de chinil cor de abóbora sei ainda da textura nas minha mãos.
Toda manhã, portanto, é a mesma coisa: acordo lá, como uma menina velha. Alguns segundos são o suficiente pra eu perceber: não existe berção mais, nem casa mais, nem mais nada. E naquele tempo nem era tão bom assim: odiava aquele berço, odiava dormir na frente, tinha tanto medo de defunto. Minha irmã ria vitoriosa, pois era SUA a parede para virar a cara pra dormir, espantando assim todos os defuntos do mundo. Eu não, na frente não havia escapatória; então virava a cara para a grade. Por isso até hoje aquele cheiro no nariz. Cheiro forte de madeira de lei, que ajudava a me livrar dos mortos e a tentar dormir em paz. Minha irmã ao acordar saltava a grade com barulho. Aquilo me irritava demais. E como eu odiava aquela proteção que lhe deram: a parede!, tão almejada por mim. Ela dizia que tinha sorte e eu azar.
Não sei onde tudo começa de verdade. Mas minha vida começou naquela casa. Tinha seis anos quando nos mudamos pra lá. Era uma casa estiradona, com um corredor imenso, e apenas dois quartos. Minha memória guarda tudo com perfeccionismo. Até as manchas de umidade na parede do corredor, que não tinha tinta que tirasse, até isso. O cimento vermelho e gelado. O barulho da enceradeira. Os crótons nas latas forradas de jornal.
Os banheiros separados: chuveiro num cômodo e vaso sanitário num outro cômodo. Pra lavar o rosto? Uma bacia pequena, branca. Lembro dessa salinha onde ficavam todos esses apetrechos de higiene: era também de cimento vermelho, trazia no chão umas partes quebradas que faziam dali um lugar ideal pra jogar giribita. Assim, as pedras feitas com caco de telha não deslizavam muito e podíamos ampará-las com dedos adestrados e felizes.
Nas noites recupero aquela escadinha do quintal que dava para o rio. Recupero também o quintal. E uma pedra meio inclinada onde minha irmã sentou numa tarde de sábado para morrer. E as janelas cheias de grades (das salas) que se viravam para o pé de carambola. Ali mãe colocava uma bacia enorme para nos dar banho. Na janela as roupas que ela escolhia pra gente usar. Perto da bacia, o tonel verde - cemitério de coisas inúteis. Era lá dentro que mãe jogava as coisas que o rio iria levar na próxima enchente. Foi lá que ela jogou, escondido de mim, todas as minhas revistas em quadrinhos. Corta!
Imagem: Rua da ilha, 1990.
quarta-feira, 25 de novembro de 2009
por que ler os clássicos
Não sei quem foi o primeiro dono desse exemplar. Comprei-o no sebo. Estava num balaio, que trazia em cima a seguinte inscrição: "3 por 1 real". O seu primeiro dono possivelmente é morto há muito tempo, pois que essa edição é de 1949. Não sei quem passou por essas páginas, por onde passei hoje numa velocidade estarrecedora. Não jantei. Não tomei banho. Minhas mãos ficaram congeladas no livro. Esse é um dos seus feitiços, dentre tantos, maiores que a história que carrega. E veio forrado de um plástico cor de rosa, talvez por seu primeiro e único dono. A cada toque o plástico ia desfalecendo nos meus dedos. Porém, o afeto foi muito, e o forro da capa resistiu mais de que sua totalidade. O cheiro de passado nele é forte, e na página 62 tem o número 10 escrito a lápis de um jeito desajeitado, parecendo feito por dedos incipientes de uma criança. Talvez fosse o filho do dono ou da dona do livro. São muitas histórias a especular. Todas provenientes de uma maior, contada por um estilo que enfeitiça, juntamente com as páginas antigas, amarelas e seu cheiro forte de passado...
"(...) E como se o céu comprazesse e comungasse com esta grande felicidade dos dois, um raio de sol atravessou a floresta, esverdeando cada folha e acendendo cintilações nos cinzentos troncos das vetustas árvores. A claridade dominava tudo e o riacho iluminado revelava, por fim, seu misterioso percurso no seio da floresta." (p. 133)
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Inútil
O mundo celestial é perversamente silencioso. Olhamos para os santos nos altares e eles nos devolvem o olhar, inertes. Os anjos dão suas gargalhadas, acredito, mas essas não ecoam no lado de cá. Existe uma parede forrada que nos separa do mundo angelical, dos seus burburinhos, de suas festas; que nos separa dos mistérios e possíveis alegrias do mundo divino. Aqui ele é mudo, perversamente mudo. Tento entoar ladainhas, mantras, música clássica, mas me vejo fazendo espetáculo morto, para mim mesma, numa espécie de arremedo ridículo do que sou. Ai, como extrair de dentro de mim o silêncio bendito, contrito, extraordinário... Não, não há solução. Olho para todos os santos e eles me olham, parados. Meu espírito deve ser um fio cortado; como estabelecer conexão com esse silêncio tão bem pensado... por Deus?
Aguardo a resposta. Minha fé é grosseira, espessa, pronta para polimento. Mas eu não tenho esses instrumentos de ponta, próprios para refinar matéria em estado bruto. Aliás, verdade seja dita, eu não tenho nada. Na minha casa, que não é minha, meu corpo é a única testemunha: dorme, come, lê, e, com o tédio mais dilacerado do mundo, chama por Deus numa língua vã, cheia de sons, inútil.
Imagem: "Anjo da colina", por Thiago Nehring.
(www.flickr.com)
sábado, 21 de novembro de 2009
mais esta cena
Descubro agora, atravessando a longa passarela no centro da cidade, que foi tudo invenção. Um escritor (não lembro o nome) disse ser todo inconsciente folhetinesco. Diria que meu consciente, pobre consciente, é dotado de uma parca vocação para criar enredos. Até hoje nada de muito importante aconteceu na minha vida, nenhum fato grandioso, nenhum heroísmo. Nada acontece mesmo na nossa vida, "não há experiências, só ilusões", isso foi outro escritor quem disse. Piglia. Ricardo Piglia. Respirando artificialmente o ar que os carros deixam sob meu nariz, atravesso a passarela urrando um eureca melancólico diante da descoberta mais óbvia, e tenaz. Aqui, sobre a rua em movimento, percebo contornos precisos de todas as mentiras criadas. Com uma sacola de livros nos braços, vejo que tudo na minha vida foi tentativa de fazer literatura; invencionice barata, literatice pra compensar a infelicidade. Botei sorrisos mágicos em olhos vazios, opacos, cinzentos, por conta de graus e graus de miopia e astigmatismo voluptuosos. Repeti a cena milhões de vezes, tentando ser linear e simultânea, aproveitando signos de todos os silêncios presenciados. Deles fiz o que quis, estúpida como um arlequim; quase grotesca - com tanta delicadeza inventada, impulsionada a vivê-la.
Atravessando a sem graça passarela no centro da cidade, com uma sacola de livros nos braços, crio mais esta cena.
Imagem: "Ilusão", por Nuno Ferreira.
(www.flickr.com)
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
De volta
A vida gosta pouco de literatura. E tudo que não é literatura me aborrece (peço licença a Kafka e não coloco aspas). Por isso ando muito aborrecida nesses dias. Tirando uma ou outra página lida, roubada às escondidas, nessa semana pouco existi. Quero a minha vida clandestina: no meu quarto, à frente do computador, juntando letras, tirando o espanto de dentro, esparramando o choro; indo à estante, conversando com meus mortos. Sozinha, deixando a vida do outro lado da porta, com sua roupa de serventuária da Justiça. Fora os projetos escritos e suas terminologias, fora as reuniões, fora as conversas em forma de requerimento. Quero os meus livros, os meus livros. E os amigos, que falam a mesma língua.
Imagem: www.flickr.com
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
ciranda
Vida sem exagero é coisa sem graça. Vida sem metáfora é leitura de jornal. E a dor da gente não sai no jornal, sabiamente arrematou Chico. Desde pequena, portanto, invento minha vida. Por isso Dona Celé, nossa vizinha beata da infância, me contava histórias tenebrosas de santos - pra que eu tomasse tento e parasse de mentir. As folhas das carambolas lá do quintal sempre foram dinheiro, cédulas vivas e verdes, para comprar o mingau das bonecas. Tinha tanto dinheiro nessa época. E minhas bonecas, além do mingau, muitas roupas. Que mãe costurava, acreditando em tudo.
Como viver sem imagens, sem escavar o imaginário e de lá tirar uma casa, toda feita de chocolate? Ah, tantas casas tenho. Invento vestidos vermelhos, culpas que não nasceram, verdades inatingíveis e ocultas. Aqui tudo é de brinquedo, ainda guardo muitas cédulas, e meu pé de carambola nunca morre. Não, não se assuste, entre na brincadeira; é uma ciranda tão linda, é uma ciranda tão bela, é uma ciranda eterna...
Imagem: "Ciranda", por galeria TiD.
(Imagem: www.flickr.com)
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
rastros
O vestido vermelho
bate nos joelhos, tem babados nos ombros e na cintura.
Os adornos que nele moram se movimentam sem vento, à espera sinuosa de uma longa festa; e meus cabelos negros descem, encorpando-o no espaço, numa dança etérea, furiosa e bela.
Nas laterais um laço; nas barras, rendas passionais de outros séculos.
Visto-o todos os dias, e, durante as noites, desapareço com ele no tempo, sonho em névoa, neblina que se esgarça nos sapatos.
Nele, portanto, rastros de milenar encontro.
Imagem: "Vestido vermelho", por andrebizoti.
(www.flickr.com)
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
parasita
O diabo é a peste da culpa. Parasita que vive em mim desde tempos imemoriais, tempos que trago na pele, em camadas mais e mais subjacentes. Cheguei ao estado patético de esquecimento das atrocidades cometidas. Como matei? Quem enforquei? A quem humilhei? Como procedi à morte sob tortura? Qual praga minhas vítimas rogaram? Qual foi o olhar mais fatal que me dirigiram? Sei que cometi todos as transgressões humanas, e da maneira mais torpe, insana, cruel. A providência maior jogou um véu sobre minha memória, e tal véu é minha condenação. Por isso vivo em celas, compartimentos minúsculos, mordendo a boca, com estremecimentos convulsos, de minuto a minuto.
Imagem: "Camadas", por Mario Bezerra.
(www.flickr.com)
domingo, 1 de novembro de 2009
estranhamente firme
Não que eu esteja engordando, mas aqui dentro, aqui, sinto-me com mais peso, e isso não me incomoda. Pelo contrário: parece-me que colocaram um apoio nas pernas, assim como fazem numa mesa que vacila. Sinto-me sólida, acho que é isso, sólida, firme, estranhamente firme. Decidida a permanecer, a olhar, a ficar. A nuvem evanescente, a líquida fragilidade de brisa, a lírica e extenuante fadiga - tudo, tudo condensou-se. O chão - mais compacto, o ar na medida certa, você na mesma altura que eu. Posso olhar o seu olho sem esticar o pescoço. Braços finalmente fortes, posso lhe mostrar o corpo, sem vergonha ou medo. Nem preciso encolher a barriga, ostento as pernas, o olho vesgo, os pés tortos, a composição íntima de minha mais extrema imperfeição. Sinto-me, sei não, uma casa pronta, inteira, cheia de varandas, janelas, painéis, teto desenhado com guirlandas de igrejas.
Imagem: "lá dentro, aqui fora", por dreamland.
(www.clickr.com)
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