terça-feira, 23 de julho de 2013

"Temos todo o tempo do mundo"

Éramos bem jovens, numa festa de 15 anos. Lá fora os convivas, sem comida. Lá dentro, no salão, a debutante principal com seu séquito, a família, os amigos mais próximos, e as comidas. Um bolo gigante com o número 15 roubava a cena, e quem lá dentro entrava para poder sair custaria, no mínimo, o amassamento da roupa, do cabelo e do corpo: na porta de entrada havia um empurra empurra dos diachos. Nunca vi um salão social tão pequeno e com uma entrada menor ainda. Um espreme espreme de zoada de corpo se amassando uns contra os outros, enquanto que os convidados, raros, lá fora, nas mesas enfeitadas, esperavam os garçons começarem a chegar de lá de dentro; claro, se passassem vivos pelo espremedor. Eu estava no espaço dos convivas: mesas brancas, com flores rosas. Mesas vazias. E morrendo de fome. Mas morrendo de fome mesmo. Foi por esse tempo que aprendi que devemos ir a festas já alimentados. Nossa turma toda sentada na mesma mesa, jovens e famintos. Chegou uma hora em que todos se aventuraram a enfrentar a porta. Ou enfrentariam ou desmaiariam de fome. Eu não, eu disse que não iria não. Ele, Ele ali ao meu lado, tão feio mas tão feio, morrendo de amor por mim. Disse, no seu terno heroísmo mineiro: - Fique aqui quietinha, vou lá dentro e volto rápido; vou pegar um pratim procê. Lembro bem, tocava alto Legião Urbana: "... Temos todo o tempo do mundo/ nosso suor sagrado é bem velho que esse sangue amargo.... " Lá vem ele, sua volta custou o tempo de rodarem quatro músicas de Legião. Mas enfim, ele apontou de lá quase maltrapilho, despenteado; parecia vir da guerra. E vinha da guerra com as mãos vazias, como sempre acontece. Antes de eu dizer qualquer coisa, ele tirou de dentro do bolso da camisa uma uva verde, gorda, grande, e me deu. A uva não esmagou, conseguiu passar intacta pela porta espremedor. Ele disse: - Apenas consegui pegar essa uva. Tinha muita gente se esmurrando na mesa dos comes. Nem os garçons conseguem chegar lá. - Como você conseguiu passar na porta sem essa uva estourar? - Eu a protegi com a mão o tempo todo, segurando-a dentro do bolso - falou suado e descabelado. Talvez tenha sido essa a mais delicada declaração de amor que recebi de um homem.

terça-feira, 16 de julho de 2013

a poesia



Minha religião sempre foi a poesia.
Para que eu ir buscá-la em padres, pastores, espíritas
inveterados de verdades incríveis?
Os poetas sempre souberam de tudo,
Freud continua certo, por isso ganha meu respeito.
Cantos? Orações? Benditos? Senta e levanta?
Ajoelha-se? Sacrifica-se?
Oh, Cristo, minha maior lembrança Tua
é nas Bodas de Caná:
Tu e Tua mãe festejando;
Tu transformando
água em vinho em demasia.
Cristo é alegria, assim como o poema:
profundo, triste, a salvar pessoas.
Encontro-O em Cecília, em Bandeira,
em Drummond...
Nas pessoas terrenas que habitam
os templos, ouço-O diminuto,
lugar comum, que é atributo
de quem não tem mundo interior.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

amor sozinho



Ele não me quer de maneira alguma.
Nem que eu o amarre, nem que eu ameace
cortar-lhe os pulsos
nem que eu lhe dê as estrelas.
Talvez ele nem goste de estrelas.
E até de vinho, que todos gostam, ele gosta
mas em pequenas doses
porque a embriaguez pode levá-lo a mim
a quem ele não quer
como quem não quer, do além, ouvir vozes.

Ele não me quer de maneira alguma.
Com ou sem anel, com ou sem pulseiras,
com ou sem roupas.
Ele nunca será Fellini,
portanto não abraçará Gelsomina.
Enquanto durmo sonhando acordar Heloísa
para ser amada por Graciliano,
ele prefere amar quem nunca será eu
nem em filme, nem em literatura.
Portanto, estou mais para Orides Fontela
sozinha e amarga, a vociferar contra os ventos.

Ou Sylvia Plath, mesmo sem aquela lindeza
aquela lindeza que não lhe garantiu ser amada.
Enfim,
escrever poesia é o meu destino
ambíguo e sem rumo
porque amor, nem de amigo.


Imagem: "amor sozinho". In: www.google.com.br

sábado, 13 de julho de 2013

arquitetura



Não acreditou que eu soubesse seu nome completo.
Eu disse que sim, sabia.
Me pediu que então eu o declamasse
Para ele.
E assim o fiz,
Firme:
Com a pompa de quem inaugura
Uma república
Como quem faz do nome do outro
A moradia mais lúdica

Como quem constrói uma casa
Para lá morrer.



Imagem: escritório de Hilda Hilst na sua Casa do Sol.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

retirado de um folhetim



Ela entrou na fila com o vinho. Só que teve o cuidado de perguntar à vendedora se aquele era suave. Era tinto, mas era suave? A moça não soube explicar e perguntou ao empacotador, que respondeu que não, era seco. Ela voltou lá e pegou o vinho mais caro, e que tinha escrito em letras vermelhas: "suave". Entardecia, e ela também comprou preservativos, e aproveitou a última loja aberta do shopping para comprar lingerie: calcinha e sutiã vermelhos.
Chegando em casa, imediatamente colocou o vinho na geladeira. E o preservativo no criado-mudo.
E foi tomar o banho mais demorado e mais minucioso de sua vida. Cuidou de si com a maior das delicadezas, inscrevendo promessas no seu corpo em cada enxague do sabão.
E lembrou, claro, de Roberto Carlos e Djavan, enquanto se perfumava: perfumou-se do dedo do pé ao pescoço, quase se sufocou com tanto cheiro.
Ele estava pra chegar.
Ele ia chegar.
Ele chegou.
Porém, o vinho continuou fechado na geladeira, o preservativo no criado-mudo e a lingerie escondida sob sua roupa. E no dia seguinte a empregada, ao abrir a geladeira para pegar a manteiga, disse-lhe com realismo e tristeza:
- E a senhora comprou o vinho... E não abriu. Vai perder.
E ela, para se conformar, lembrou que Roberto Carlos também já perdeu muita coisa. E que Djavan está com mal de parkinson. Ela que sempre odiou a competição com as dores alheias, estava ali buscando uma salvação impossível.
E também como era masoquista! Foi à geladeira e abriu-a. E olhou o vinho fechado, recolocando-o no lugar. Mas não tirou a lingerie que ainda continuava vestida, e  não tocou no preservativo.
Ela sempre soube desse desfecho, era seu eterno retorno: insistência com o Destino.
História repetida, dolorosa e antiga. Vinho envelhecido, nunca tomado.


(Salvador, 23/02/2010)

quinta-feira, 11 de julho de 2013

INTEIRA



Busco um homem que me veja inteira:
vísceras, fígado, costelas, peitos,
como num açougue o freguês vê direito
aquilo que compra, com acuidade
sabendo que achou o que é precioso.
Não como um garimpeiro, cessando a bateia
para encontrar o diamante:
Luz manifesta de tudo que é perfeito, e brilha.

Busco um homem, insisto, que me veja inteira:
garganta, dentes e gengivas,
laringe e língua. E que me vire de lado e de frente
constatando, fremente, que valho a pena
no tato, no paladar, no olfato,
e principalmente na alma:
minha alma no seu prato.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

dois poemas para teu nome


DOIS POEMAS PARA TEU NOME

1.

Sei teu nome de cor, teu nome completo
aberto feito uma flor, uma flor silvestre
doce e perversa, ácida e inerte.
Nenhum vento balança teu nome
enorme, parado no mundo, como terrível musgo
grudado nas funduras de um palácio de bronze.


2.

Teu nome completo é um poema:
Verso de um epigrama, ou dor de uma elegia.
É uma lenda enorme, uma canção, inscrição
no Oráculo de Delfos:
Destino sem remissão;
mas uma alegria.
Epitáfio, podes gravá-lo em mim,
aqui, nessa veia.



nessa cena

Imensa saudade. E nunca seremos personagens de qualquer nouvelle vague. Jamais serei Jeanne e tu, Bernard; jamais sumiremos de madrugada, fugidos de casa; jamais. Sonho em preto e branco, e a lua prateada mata, e a água do lago, e o meu cabelo solto e tua camisa larga, tudo, tudo naufraga. Imensa saudade: eu nascer de novo, na madrugada, ao te ver, após muitas vezes ter visto sem perceber; mon'amour em Dijon: sinto tua boca descer e me levar ao mundo maior; uma pena não entrares nessa cena. Eu só.



Imagem: Cena do filme Les Amants (1958), de Louis Malle.



quinta-feira, 4 de julho de 2013

Para Maria Sampaio, o texto de número 1000


No dia 4 de julho de 2007 abri essa casa. Tinha medo da terra, assim como continuo tendo, mas resolvi sair um pouco do ar e flanar no mundo. São seis anos de vagabundagem pelas vielas, ruas e avenidas desse lugar chamado internet. E esse é o texto de número 1000. O que significa escrever mil textos num espaço de  seis anos? É verdade que passei algum tempo distante, escrevendo em outros lugares, mas também é verdade que fui fiel a mim mesma, não me deixando à deriva em alguma nuvem e não voltando mais. Por que é muito melhor voar numa nuvem do que tentar ajustar nosso corpo compacto numa cadeira e escrever teclando. É melhor escrever imaginando e o imaginário ser o próprio texto, livre de convenções e traumas: deixar finalmente o inconsciente berrar, sem armadilhas de ego e muito mais do superego. Mas o ego existe na escrita, assim como id e superego. O superego eu trato sempre de domá-lo no texto; tanto que depois de muito tempo sem me identificar por causa da opressão desse maledito superego, um dia fui lá e disse alto para todos ouvirem: meu nome é Ângela Vilma! Portanto, dei pancadas no superego. Assumi que habito um lugar no mundo e não me chamo apenas Aeronauta: porque além de nuvens tolero flanar na Terra.
Na blogosfera, que hoje proclamam estar fora de moda, fiz amigos inesquecíveis. Cito uma, representando todos os outros: Maria Sampaio. Essa mulher, grande mulher, a conheci numa tarde junina quando, dentro de um apartamento em Salvador, sozinha, escrevia sobre lembranças do São João de minha infância. E aí ela surgiu do outro lado, começando uma grande, mas infelizmente breve amizade. "Ô essa menina", como esquecer isso que ela dizia? Ou então: "Vivá!'
Maria Sampaio, alegria de todos nós. Dedico a você, minha querida Maria, esse texto número mil, por que você sempre significará a magia da blogosfera.
Tenho certeza de que hoje você deve estar sentada agora na nuvem mais fofa do céu, olhando para a Terra e rindo, me perguntando se o Santo Antonio que trouxe pra mim de Pádua já  fez o seu trabalho de me arrumar "o" namorado... Isso só te responderei quando nos reencontrarmos.

minha prece


Minha prece mais profunda agora para todos os amantes; eles que nesse momento da noite estendem braços para abraços enormes, gigantescos e abrangentes como a imensidão da própria noite; que se aconchegam um no corpo do outro como folhas num galho de árvore, em tempos de frio; que se amam como feras e como feras se entregam, na doçura de tudo que é intenso e dá medo. Que se monumentalizam na cama, no chão, no tempo, como pessoas que driblam a morte nesse momento único.



Imagem: Cena do filme "Les Amants" (1958) de Louis Malle, com Jeanne Moreau e Jean-Marc Bory.