terça-feira, 30 de junho de 2009

flores


As rosas são a perfeição que assombra. Prefiro as margaridas, as flores que nascem nas pedras, no meio do mato, no calçamento partido; e que resistem, sem quaisquer cuidados, ao vento e à chuva e ao sol. Tirando-as de lá, sobrevivem até o fastio, simples e eternas que são. Não precisam de água gelada, açúcar, ar, essas coisas todas que as rosas, enfeitando uma sala, exigem dentro do vaso. Suas folhas são de um verde esgarçado, rústico, próprio de quem não se guarda do tempo; próprias de quem se entrega sem doação.



Imagem: "Flor do mato", por Eduardo Deboni.
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sexta-feira, 26 de junho de 2009

Epígrafe


Todo mundo tem seu inferno. Passa por ele. Fogo nas ventas, fogo na alma, garfada nas entranhas. É, todo mundo tem seu inferno. Panela fervente nas costelas, Deus e o Diabo rindo por perto. Não adianta reclamar, tentar abrir as portas da casa, as portas da alma, as portas do sei lá o quê. Não há, não há caminho, não vês? Uns choram, outros dançam, outros passeiam, outros amam. O mundo inteiro chacoalha seu escárnio, enquanto estão lá teus dedos, estrebuchando na panela, fritando unha por unha. E teus dentes se cerram, provando uma força ínfima diante da labareda nos intestinos. O vento mostrando a que veio: dando uma abanadinha miserável na dor, soprando, soprando, docemente, como convém ao vento, só isso.



Imagem: "Inferno/Hell", por ul Marga.
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quinta-feira, 25 de junho de 2009

Do tamanho do céu


Contam que a família descobriu a doidice quando deram com ela matando uma galinha e colocando-a, inteirinha, com pena e tudo, dentro da panela. Só aí a filharada se deu conta de que ela não poderia estar certa. Mas para todo mundo isso não era novidade não. Uma pessoa que só ficava na janela, olhando a rua, e que ninguém conhecia de corpo inteiro, só dos braços pra cima, não poderia ser normal. Diga-se, pra início de conversa, ô povim estranho aquele. O pai, oficial de justiça, sempre andando pra lá e pra cá na rua, segurando um pauzinho torneado, mandado fazer na serraria. Ninguém jamais entendeu por que aquele pauzinho na mão do dito, pra lá e pra cá, na cadência de seus passos de serventuário da justiça. Magrelo de ver as costelas. A filharada também, magrelos todos. O mais estranho é que eram estudiosos, tiravam primeiro lugar nas matérias, calados, nada de conversar as coisas com os outros. Moravam na rua da glória, numa casa de porta e janela. Janela na qual a mãe se prostrava a olhar a rua, com a cara pro ar, sem nunca de lá ter saído pra canto nenhum. Diziam que o marido era ciumento. Mas quá, ciúme daquilo, as pessoas na rua gargalhavam. Ciúme ou não, ninguém nunca ouviu a voz dessa senhora de boca fechada e cabelos ralos. Só a família, certamente. Porque não é de se acreditar que dentro de casa ela não abria a boca, não reagia.
Era o que o povo na rua comentava, que alguém da família dizia alguma coisa que fosse sobre eles mesmos. Pois de onde surgiu aquela história da galinha? De lá de dentro, claro. E isso não é coisa alegre pra um filho ou uma filha presenciar: uma galinha inteira, com pena e tudo, indo pra panela levada pela mãe.
Mas o que depois foi dito e batido na cidade era que ela já vinha, há muito tempo, comendo galinha inteira, sem depenar. Pois de uma hora para outra a mulher deu pra sentir umas dores estranhas na barriga. As dores, segundo contaram, eram provenientes de um peixe-cometa passando para lá e para cá no estômago. Desse dia em diante a janela ficou vazia. A filharada nem tchum, tirando primeiro lugar na escola e passando em todas as provas, sem notícia da mãe. O pai, com seu pauzinho torneado na mão, assoviando na rua em hora de trabalho. E o peixe-cometa acabou virando peixe-boi. A mulher não estava se aguentando mais, contavam. Porém os filhos continuaram nada demonstrando, como sempre calados e estranhos, e tirando nota boa na escola. Até deu-se o final de tudo, quando viram no cemitério velho uma mão segurando a galinha sapecada, ainda carcarejando, e a outra uma panela de alumínio, brilhando de nova. Do lado, aguardando, uma fogueira do tamanho do céu e uma lata de querosene.


Imagem: "Fogo", por Daniel Lavenere.
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terça-feira, 23 de junho de 2009

feito um balão


chapéu de crochê... alguém se lembra aí de ter visto alguma criança com chapéu de crochê? era eu, cor vermelha, combinando com a roupa de chita de colchão, da mais ruinzinha. caipira de noite junina tem que ser autêntica. mãe sempre amou essas autenticidades. isso porque depois ela obrigava a gente a vestir as roupas de chita de colchão, da mais ruinzinha, nos dias comuns. com o chapéu de crochê. em dias comuns, indo para a banca, estudar, parecendo duas matutas. aliás, éramos duas matutas autênticas. minha irmã era uma matuta ladina. achou um caminho pelo rio, e com muito trabalho conseguiu, em duas horas, me ajudar a criar coragem para pular as pedras cheinhas de limo. escorrega aqui, cai lá, molona que você é, ela me xingava. nós duas, enfeitadas de são joão em pleno novembro. mas ninguém viu, no rio só as lavadeiras lavando prato acocoradas não tinham tempo de ver vestimenta de quem passava. chegando na banca, minha irmã ria de sua astúcia. está vendo?, ela dizia, ninguém viu a gente com essas roupas horrorosas. na volta, do mesminho jeito, pulando pedras, uma hora e meia pulando pedras, eu já ficando craque. chegando em casa abri a boca, língua grande gabando o que não podia: mãe, tu não sabe, a gente descobriu um caminho pelo rio, ninguém viu nossas roupas. ah é?, ela gritou, pois agora vá lá na praça sozinha e volte, dê um passeio pela praça. e lá fui eu, desfilando no sol quente, em pleno novembro, com meu chapéu de crochê e minha chita de colchão. nem sabia jamais que esse chapéu e esse vestido não se acabariam. estão aqui em minhas mãos, no cocuruto de meu juízo, ambos feito um balão; balão que não se queima, nem ao menos queima o mundo.


imagem: "balões de são joão", por julio leite.
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segunda-feira, 22 de junho de 2009

heranças


Na nossa família todos os afetos foram exagerados: muito remédio quando estávamos doentes; muita preocupação com a escola: livros, fardas, bolsas; espionagem completa para não andarmos em más companhias; nada de comida forte como feijoada, sarapatel, vatapá, para nossos intestinos frágeis não serem debilitados tão cedo, e uma infinidade de outros cuidados, prova de afeto e amor de uma mãe e de um pai prontos para criarem duas filhas preciosas. Que coisa!, todo o amor do mundo nos foi dado sem necessitar de um abraço e de um beijo. Não me lembro de um beijo de mãe e de pai estalando nas minhas bochechas em qualquer época do ano, aniversário ou natal. Sequer um abraço. Como seria um abraço de mãe, com aquelas mãos grossas e cheirando a cebola, que me beliscavam na hora de comer para que eu não morresse de inanição? E pai? O abraço dele seria morno, completamente doado, sem nenhuma timidez? Ele próprio me diria agora: Não, minha filha, gente da roça não sabe fazer essas coisas. Gente da roça aprende que amar é alimentar, vestir, criar filhos para serem pessoas de bem. Quanto a mãe eu não sei o que ela diria hoje, pois que aprendeu a beijar e a abraçar o neto como se tivesse praticado isso a vida toda. Mas conosco o abraço é sem jeito, deslocado. Eu e minha irmã aprendemos muito bem a lição: nosso abraço é sempre frouxo, besta. Beijar? Quando ficamos muito tempo distantes, só aquele fingimento de beijo dos dois lados, sem graaaça, morrendo de vergonha uma da outra.
Meu Deus, eu não sei abraçar. Quando alguém abre os braços pra mim, meus nervos da coluna travam, fico dura igual a um espantalho. O resultado é mesmo um abraço alijado. E beijar, eu sei? Será que sei dar um beijo num amigo bem no centro das bochechas? Acho que não. Meu beijo é fingido, nunca beijei de verdade. Nunca apertei os lábios com gosto e apliquei o beijo bem no centro do seu rosto. Fiquei pelas periferias, covardemente beijando o ar. Porém meu afeto, não duvide das heranças, é sempre exagerado.


*Este texto surgiu como consequência das impressões líricas e lindas que ficaram em mim após a leitura de um texto inesquecível de Gerana, dedicado a seu irmão. Leiam lá no "Leitora Crítica": "Meu primeiro súbito amor", escrito em 25/10/2008. (http://leitoracritica.blogspot.com)

Imagem: "Abraço", por Ana M2007.
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quarta-feira, 17 de junho de 2009

Estribilho


Drummond já gritou essa angústia antes de mim, oh bem antes, em 1942: "Tenho tanta palavra meiga,/ conheço vozes de bichos,/ sei os beijos mais violentos", porém "estou sozinho no quarto,/ estou sozinho na América". "Companheiros, escutai-me!", reforço o grito, em estribilho. "E nem precisava tanto", repito em tom menor, para que a cidade continue seu movimento, e minha solidão não afete o trânsito às três horas da manhã. Precisava apenas de dois goles de refresco, daqueles de antigamente, preparados numa jarra doméstica. Precisava de um amigo que lesse versos de Bandeira, influindo delicadamente "na vida, no amor, na carne." Precisava de um bocejo de sono, secreto e dialogando com o meu. Tenho um 'carinho louco' formigando na pele, nos dedos, nas unhas; um olhar de ternura reservado em cada canto dos olhos fechados; um abraço cravado e morto no próprio peito.



Imagem: "Solidão", de Robert Portuguá.
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sábado, 13 de junho de 2009

machadiana


Sou uma mulher machadiana, silenciosa e entrada em anos. Minhas mãos não têm mais a suavidade dos vinte, e a conversação que proponho é tímida, reticente, sem qualquer esperança. Ganhei com o tempo um rosto severo, com marcas delimitadas pelo espelho mais cruel. Nele nem o meu sorriso é como era: quando se abre, uma nuvem se aproxima em confidência íntima, eterna. Meu corpo sem filhos ganhou o contorno dos rios já vividos, sinuosos e vastos, e nas frestas de minha pele habitam peixes como se no aquário estivessem. Veias partidas aparecem nas minhas pernas, condenando-me à mais primitiva das belezas, à ternura das mais antigas pedras. Meus cabelos, como plantas aquáticas, crescem, crescem, e fios brancos despontam, pálidos, errantes. Tudo em mim é natureza se transformando, árvore plena carregada de troncos.


Imagem: Sépia, por Maggie2012.
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quinta-feira, 11 de junho de 2009

Onze anos

Meu sobrinho fez o dever de casa: escrever sobre o amor. Deixou aqui nos meus arquivos. Amor aos onze anos, ou aos cem.



O AMOR AO PARCEIRO

O amor é bom, o amor é uma mistura de cores vivas que formam o arco-íris mais bonito de todos. Aquele que só é visto por quem ama. Quando amamos, esquecemos de tudo o que nos cerca. Só pensamos naquele que amamos. Quem ama sente um bem estar sensacional, querendo estar sempre do lado de quem ama.

O amor nos toca uma vez e pode durar para toda a vida e nunca mais ir embora. O amor é a única beleza que existe no coração. O resto é tudo fantasia. O amor é algo indescritível... Algo mágico.

Marcus Vinícius



* Desenho feito por ele, imitando imagem vista.

domingo, 7 de junho de 2009

de todas as genealogias


Tinha 15, eu 20. Tinha 15, eu 17. Outrora 42, eu 26. Estava de passagem, carro cinza, olhos azuis. Ficou, colocou uma aliança no meu dedo no dia das eleições. Eu, 29. Cabelos longos, e uma música entre os dedos: ele levava em si uma moto em plenos anos 90, ouvindo Pink Floyd no gravador portátil. Eu fiquei bêbada com suco de lima e vodca. E tinha 22. 14 Bis cantava no carro velho, uma poeira vermelha subindo, nós dois indo para o poço encantado, fugindo dos pais. As costas dele preservavam espinhas enormes, por causa das caixas de chocolate branco escondidas no carro. Não me devolveu o I Ching que lhe presenteei no aniversário. Ele tinha 30, eu 33. Uma cicatriz na perna, cabelo espetado, unhas enormes nos pés. Casei em um dia de chuva, sem anéis. Uma única vez nos vimos e uma única vez nos separamos. Ele compunha música em espanhol, parecia um cigano. Me levou para a pedra mais alta da cidade e falou em anjos, duendes e zen-budismo. Carlos, seu nome. Ou seria Antônio? Não me lembro. Lembro dos seus dentes brancos, muito brancos, rindo no vento daquela madrugada alta, serrana, e de uma mancha discreta em suas têmporas. Ele tinha 20, eu 30. E era tanta pressa que víamos, e solidão que carregávamos, que nos separamos sem filhos, que nos casamos em maio.



Imagem: "angusto dos anjos", por anacarlasky.
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braços abertos


Amadíssimo, não fales.
A palavra dos homens desencanta.

(Hilda Hilst)

Tivesse eu o poder de perpetuar amores, negociaria silêncios. Silêncios nos corredores das casas, das plantações, dos jardins, para que ninguém ouvisse o cansaço imenso de meus braços abertos, o amor sobrevivendo ácido na ponta dos meus dedos de espantalho, fácil, frágil, escandaloso.


Imagem: "silêncios", por victória garcia m.
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quinta-feira, 4 de junho de 2009

Cada tarde


BORBOLETAS

Tenho, dentro de mim, o amor mais puro,
Das borboletas, talvez, soltas no campo.
Descuidadas, plasmam no sopro essas manhãs
Largas e imensas, embaladas em sons.
São flores voando... consolo ou desencanto?

Jardins suspensos, ventos em mim
Como nessas borboletas o universo.



Imagem: "Borboletas e o ipê amarelo", por Flávio Cruvinel Brandão.
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quarta-feira, 3 de junho de 2009

Ele


Se pudesse defini-lo diria que ele é um doce de minha infância,
muito bem açucarado. As bordas do açúcar caindo dos lados, enchendo a minha boca de água.
Não, ele não é nenhum chocolate amargo, coisa que também adoro;
é algo que, me parece, mais derrete na saliva em êxtase silencioso, calmo.



Imagem: "Molho de carambolas", por Garfada.
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terça-feira, 2 de junho de 2009

invenção mais besta


Nunca, nunca fui com a cara de Santos Dumont. Que invenção mais besta, essa. No primário a professora mandava a gente copiar no caderno a biografia desse homem de chapéu, paletó preto, gravata, terno compenetrado. Copiava, sempre com uma dor fina no peito. Que invenção mais besta, meu Deus. O ar não é feito para gente metida a inteligente inventar coisas. Deixem o ar em paz. Que mania o homem tem de ser inventor. "Quem inventou o avião?" Todos respondiam: "Santos Dumont". Mais tarde ouvi "Não foi ele não". Pra mim sempre foi ele. Ele, elezinho mesmo, o culpado. Pois que se Deus inventou a morte, o homem, por seu turno, inventou as mais terríveis modalidades de morrer. E a mais terrível que eu acho é essa: morrer no ar. Despencar de lá com a maior das agressividades, corpo em retalhos, perplexidades de ventos atônitos vendo todos irem direto para o mais duro dos firmamentos. Isso é lá poesia que se escreve? Por que teve o homem que inventar essa cruel modalidade de morrer? Ah, que o ar, pelo menos, seja leve



Imagem: "Santos Dumont (graffiti)", por Serlunar
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