quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

sonho


Onde pai andará, nesse instante?
Com auréolas de rei, abrindo cancelas
Na sua roça de milho, eterna?

Buscando as sandálias, ao entardecer,
Como tanto fazia antes?
Fechando as janelas, com a chegada da noite?

O que de hábito permaneceu, à distância,
Nesses dezoito anos de ausência,
Para que continuasse tão perto?

Decerto o chão de nossa casa
Com o vermelho cimento encerado
Fazendo espelho aos seus pés

Decerto essa frágil permanência
do outro lado, onde tudo reverbera
em aquiescência e abandono

Decerto o mundo, mesmo,
Com seus vestígios de sonho
Trazendo-o como dono; de tudo.

sem poesia (à guisa de confissão)


O que tenho para dizer hoje não tem poesia, nem salvação. Nem uma gota de lirismo; e nenhuma gota de humor. Não é assunto para post, não é assunto para a vida. É assunto talvez para fantasmas, fantasmas eivados de maldade. Assistiram "Viridiana"? O mundo não está preparado para a doação. As pessoas têm cheiro de enxofre. As pessoas são visguentas, tem miasmas repugnantes, são hipócritas. Moro numa cidade em que o mal total da humanidade se concentrou. Nem vou dizer o nome dela porque terei a tentação de fazer um trocadilho, e este não terá a menor inventividade. Toda a concentração dos sem caráter, sem palavra, sem respeito está aqui. Ah se Gregório de Matos ainda vivesse! Eu o convidaria a passar uns dias na minha casa; e juntos poderíamos botar fogo nas ventas desses viventes. Há poesia no que digo? Nenhuma. Só Lampião e Corisco dariam cabo dessa demanda. Quem sabe depois disso nasceria um cordel.


Imagem: cena (terrível) do filme "Viridiana" (1961), de Luis Buñuel.

domingo, 22 de janeiro de 2012

mobília


Registro interno de solidão:
tenho 32 cadeiras.
Receberei um dia 32 visitas?
32 pessoas um dia aqui se sentarão?
Há de diversas formas: de balanço, de varanda, de jantar. Cadeira artesanal, espreguiçadeira, banquinhos.
Há uma parecida com aquelas da sala de jantar de lá de casa: aquelas que beliscavam nossas bundas.
Se faço coleção?
Se é uma estranha mania?
Registro interno de solidão:
Tenho quatro grandes mesas.
E dois bules de café.
Tenho muitos talheres.
Uma casa enorme para ouvi-los tilintar.
Mãe comia de colher, às escondidas de pai.
E de colher me ensinou a comer.
Pai era civilizado: sabia andar em Salvador,
sabia escrever bem, lia Dona Flor,
usava roupa de casimira e paletó.
Mãe não: suas roupas eram sempre estampadas
costuradas por suas mãos
com cheiro de cebola.
Registro interno de solidão:
Tenho um guarda-roupa antigo.
Nele contém uns dez vestidos estampados.
Envelheço como mãe, e nela me misturo
aos seus traços entalhados,
às rugas mais fundas, mais velhas,
e juntas nos parecemos, engraçado,
à nossa antiga geladeira.

sábado, 21 de janeiro de 2012

os homens


Os humanos me decepcionam, sempre.
Gostaria de com eles me entender, em sânscrito,
ou em língua indígena. No entanto,
não nos entendemos nunca, e eu acho absurda
sua mania higiênica e asséptica
de limpar, todos os dias, o umbigo
e nele plantar rosas de vidro
sem perfume.

Os humanos me entediam, de fato,
E eu os acho imbecis como um automóvel
andando na rua.
Para que existem tantos, meu Deus?
pergunta meu coração vazio.
Meu coração que só entende de um frio
absoluto; de uma ternura esmagada;
rosto que rompeu a máscara.


Imagem: Cena do filme Vanilla Sky (2001).

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

exílio


Sei que desse mundo não venho, nem ficarei
por muitos anos, sob o assombro aprisionada.
E que amigos moram em suas próprias casas
como se nunca estivessem em viagem.

Sei que é longe o hospício pra onde me levam
com tantas folhas mortas na entrada,
E de uma escada me olha o filho que não veio
no segundo mês que o esperava.

Sei de tudo, meu amor, e mais ainda
que a vida, estranha porta que se abre,
é vaga.
E na varanda, uma velha hera
se estilhaça.

sábado, 7 de janeiro de 2012

o que fazer


O que fazer com seres
sem ternura?
Com suas duras mãos
sem flores?
Sua faca em riste,
matando sem agulhas?

O que fazer, meu Deus,
dos desertos, terrenos secos
perto dos olhos?
Sem uma gota de vento
do mais doce, dentro de si?
Aeronaves de pedra,
são ausências, sempre, que ferem.

O que fazer com eles?


Imagem: "O Dr.Gachet", uma das últimas obras de Van Gogh, de 1890. (www.google.com.br)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

alturas


Menino preto, sua pele é das alturas
das nuvens que me guardam em dias de chuva.
Embaixo delas é natural que eu sonha
com peixes velozes e mares profundos.

Seu braço magérrimo me acolhe, e é alheio
Seu beijo trágico são marés em desespero
E eu desço, cada vez mais fundo, cada vez mais longe
do que se pode lembrar que um dia foi inteiro.

Retalho-me em seixos, eu que nunca fui pedra.
E me deixo ir ao antepassado de mim.
Etérea, intermitente, como as velhas noites
que todos os cemitérios guardam na terra.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

memórias de uma escrevente de cartório


Com a máquina de escrever não havia possibilidade de errar. A lei era do retrocesso jamais. Ah se naquela época existisse o famoso delete. Assim não seria preciso eu ir em busca do socorro último, aquele da invencionice. O juiz geralmente ditava a audiência rápido, eu tinha que acompanhar sua velocidade. O meu braço doía de tanto puxar aquele carro (uma espécie de alça) da máquina, para lá e para cá. Então, quando não conseguia acompanhar todo o discurso dele, eu inventava. Nada, acredito, que pudesse comprometer a lisura da audiência. Pois que nenhum juiz com quem trabalhei jamais percebeu tais invencionices; lá estava minha voz misturada com a dele. Era o jeito que eu encontrava. Cheguei a pensar que isso era arte exclusiva minha, mas tive a oportunidade de conversar com outras escreventes e elas me disseram que também utilizavam o mesmíssimo recurso.
Já disse que nessas ocasiões retrocesso nunca. Mas havia um outro mecanismo de socorro: o famoso "digo". Então, em meio a um equívoco datilográfico, o jeito era usar a tal muleta. Exemplo: "A comarca do muncpio, digo, município..." E assim, em tardes de muita atribulação de minha alma, era possível encontrar nas audiências batidas por mim uns duzentos "digo".
Nessa época eu era bastante infeliz, para quem só tinha vinte e três anos. A fim de compensar uma vida repleta de advogados, escrivães, oficiais de justiça e, pior, juízes, eu comia muito. Já que não tinha mais tempo de ler (a não ser clandestinamente, em meio ao trabalho sempre vigiado), eu comia. Descobri que uma vizinha vendia merendas no expediente. Fiz logo uma conta. Comia e pagava por mês. Sem contar que ao chegar em casa limpava a despensa. Engordei dez quilos. Aí foi que minha infelicidade aumentou a olhos vistos.
Não guardo sequer uma boa lembrança dessa época. A maior tristeza minha estava ilustrada na calça que não fechava, com o zíper a perambular no meio do caminho; jogava uma blusa por cima e disfarçava a gafe. E lá ia eu trotando a infelicidade pelas ruas.
Disse que não tenho sequer uma boa lembrança dessa época, mas estou querendo encontrar uma que seja. Onde, onde? Eu tinha que acordar cedo, a pior coisa do mundo. Trabalhava até meio dia e de meio dia para a tarde também. Onde, onde está essa boa lembrança que não acho? Talvez na minha idade, cheia de sonhos de um dia sair dali. Projetava minha vida adiante, como todo jovem sabe muito bem fazer. Eu fazia isso com mestria, no meio do expediente, totalmente aérea, como uma funcionária nada exemplar. Só que apenas transgredia liricamente, e nos raros minutos em que o escrivão e o juiz me deixavam em paz. Mas esses raros minutos agora dançam no teclado do computador como festa, e me agigantam como se eu tivesse sido, naqueles instantes tão pequenos, nada menos que Bartleby.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

família à antiga (numa continuação ao post anterior)


Uma das coisas de que precisa alguém que escreve é ser corajoso. Isso eu li ontem, numa entrevista com o escritor Sérgio Sant'Anna. Ora, se você tem medo de escrever o que pensa, então é melhor não escrever. O que você pensa não quer dizer que é o certo (afinal, o que é o certo?). Somos sempre nosso próprio equívoco, pois que estamos vivos, na errância de um mundo e de nós mesmos, que não conhecemos. Há pessoas, claro, que nasceram nas décadas de 1970 e 1980, são filhos de pais separados e não são exclusivamente egoístas. Isso é óbvio. O egoísmo é algo inerente ao homem, em qualquer década, sob quaisquer condições. Entretanto, conheço vários nascidos nessas décadas mencionadas que até se assumem egoístas com bastante gosto, como a melhor coisa do mundo. Meninos mimados demais, pois que o mimo (na cabeça dos pais) foi a compensação que encontraram para o esfacelamento familiar. Não sou contra a separação, tanto que também me separei. A única diferença é que não tive filhos. Se tivesse, seria mais um egoistazinho no mundo, pois que provavelmente o mimaria pelas perdas que teria numa infância com os pais separados. Tudo isso é determinismo? Que seja. O homem vive num condicionamento tal, que dificilmente conseguirá se livrar da repetição. A própria sociedade determinará tal condicionamento, e nós, seres patéticos, viveremos sem nem saber que somos e estamos condicionados.
Outra coisa que é óbvia: claro que uma criança sofre com a separação dos pais, vendo e ouvindo brigas, assistindo à difícil e complexa relação entre duas pessoas que ela ama. Sofri muito com as brigas entre meus pais, brigas feias, ressentimentos que batiam no peito e doíam como pedras pontiagudas. Mas diante de tudo isso o que eu mais tinha medo era que eles se separassem. Rezava todos os dias para que isso não acontecesse. Tenho certeza de que se eles tivessem se separado, hoje teria sequelas terríveis. É o que sinto, é a minha particularidade. Não quer dizer que todos sentiriam a mesma coisa diante de tal situação. E que também não é egoísmo de minha parte esperar que meus pais não se separassem. É egoísmo. Mas quem bota filho no mundo precisa ser magnânimo com ele, com a sua vida. E meus pais, nesse quesito, foram bastante magnânimos. Pensaram em mim e em minha irmã e aguentaram firme, deram adeus à chance aparentemente fácil de um divórcio, ficaram juntos, mesmo infelizes. Ora, há felicidade no mundo? Não. Mas amor acredito que há.
Se era amor o que meus pais sentiam um pelo outro não sei. Mas tenho certeza de que era amor o que ambos sentiam por mim e por minha irmã. Isso é notório. Como esquecer, portanto, mesmo sob os conflitos entre os dois, nossos passeios de fusca no domingo? Nossas visitas aos avós? Como esquecer os resmungos dos dois, sob a ternura de um acolhimento às filhas, a construção de uma ilusão familiar? Hoje devo tudo a essa ilusão. O fato de saber que meus pais estavam dormindo no quarto ao lado, perto de mim, me deram a segurança, a proteção perante um mundo que me metia muito medo. Isso não só porque pai tinha um revólver guardado em cima do guarda-roupa (a fim de simbolicamente "guardar" a família), mas porque eu tinha minhas duas referências de amor e cuidado perto de mim. Todas essas coisas me garantiram uma sólida memória afetiva, construindo-me humana; e essa humanidade se estende ao que há de mais insuportável no mundo: tentar conviver com pessoas que só pensam, exclusivamente, em si.


Imagem retirada do google.

domingo, 1 de janeiro de 2012

ode aos egoístas


Bem aventurados os egoístas, porque eles são os donos da terra, do mar e do ar. Eles girarão o arco-íris pendurado no próprio umbigo e não cairão. Eles possuem a asa delta presa ao corpo, adestrado sempre para sua sobrevivência. Eles colocarão fogo no mundo para aquecer-se no inverno. Eles eles eles. Nunca, jamais imaginarão de que se trata uma palavra linda, que ficou piegas por adquirir ares religiosos: "compaixão". Etimologicamente essa palavra significa "sentir com o outro". Para quê? Os egoístas, claro, não estão interessados nisso, querem apenas sentir o que lhes dizem respeito, em particular.
Creio que o egoísmo é uma doença visceral, sem cura. Todos a têm, só que muitos a alimentam em doses cruéis. O que será de nós, então, muitos nascidos no final da década de 1960, que aprendemos na escola e em casa a dividir a merenda, a dividir o brinquedo, a dividir a leitura? Conviver com as novas gerações para nós é muito difícil. O jovem egoísta inteligente dirá que pedirmos o não egoísmo dele já é uma maneira de egoísmo nossa. É a perigosa retórica que lhe habita a língua e o cérebro. Resta-nos aceitá-lo assim ou desistir, pois que essa doença em doses cruéis é intolerável.
Talvez tão malfadada doença tenha reavivado fortemente com a degradação total da família; alguns desses "conhecidos" são os filhos do divórcio, nascidos nas décadas de 1970 e 1980, que conviveram com o egoísmo exacerbado dos pais diante da separação "de bens", na qual os filhos ganhavam tudo materialmente em troca de uma possível condescendência emocional, a "aceitação" de uma família esfacelada. Muitos desses filhos do divórcio odeiam os pais; porém, acabam reproduzindo, em todos os atos, as figuras paterna e/ou materna. Em contrapartida, nunca saberão, de fato, o que significam palavras como cumplicidade, renúncia, doação. Eles, os egoístas, geralmente adoram essas palavras, mas quando estão diretamente ligadas a eles: quando somos seus cúmplices, quando renunciamos nossas vontades em prol das vontades deles e quando doamos tudo o que temos e o que não temos para o seu bem estar.
Se eu tivesse parido um filho na década de 1980, mais particularmente em 1987, aos vinte anos, hoje estaria com um troglodita desse dentro de casa. Filho do divórcio, da separação, do aniquilamento, esse menino se acharia Nero. Consequentemente me mataria; mas (pior) me mataria de maneira metafórica, arrebatando todo o amor intenso que tenho dentro de mim até a última gota, deixando-me árida como um cacto.


*A imagem acima, retirado do google, bem representa os indíviduos aclamados nesse texto: geralmente são joviais, aparentemente indefesos, encantadores.