segunda-feira, 29 de outubro de 2007
Procura-se
Não consigo me lembrar qual foi a primeira pessoa que não me amou, o primeiro gesto de rejeição, o primeiro desdém. Muito menos consigo me lembrar de meu primeiro ódio, meu primeiro esgar, ou minha raiva mais irada possível. De minha vida mais antiga só trago imagens inconclusas, todas elas em lusco-fusco, nostálgicas, nunca com sentimentos claros. Ora é o macaquito preto de bolinhas brancas que eu e minha irmã vestíamos quando nos mudamos da roça para a cidade, ora sou eu em minha primeira declamação de poesia da escola: aquele negócio de "quando era pequenina do tamanho de um botão, trazia papai no bolso e mamãe no coração..." etc. Mas raiva, raiva mesmo, não lembro de ter sentido na infância. Acho que fui neutralizada de qualquer raiva em razão de não me lembrar da primeira pessoa que não me amou. Quem seria essa pessoa? Em quais circunstâncias? Não há resposta, não há. O que ficou foi um abismo, um buraco, onde há muita raiva e muito amor dentro: os dois na mesma dimensão, com a mesma fúria: redemoinho que me leva para lá e para cá, num bruto estado de solidão. E que dá vontade de bater na cara, de esmagar alguém até ficar roxo o lugar da batida. Esse "alguém" tem rostos emprestados, sei que não não são esses os rostos que quero bater. Mas como achar a primeira pessoa que não me amou para dar uns bons tapas na cara? Sempre apanhei, nunca bati. Deve ser muito bom dar, além de uns sonoros tapas, um murro na barriga,um beliscão no braço... Nunca fiz isso. Apenas imaginei. E me calei. Lembro que teve uma época em que eu tinha um facão imaginário: através desse facão muitas cabeças foram cortadas. Era só eu encontrar uma pessoa com uma prosa ruim, a cabeça ia ao chão. Isso me aliviava. Mas agora o facão sumiu.O que fazer? Chega de amar, chega, chega! Procuro a primeira pessoa que não me amou, e aí acertaremos as contas.
domingo, 28 de outubro de 2007
Domingo, com Cecília
A casa está enorme, fechada, eu sozinha dentro dela. Vou buscar Cecília Meireles:
"Por mais que sacuda os cabelos,
por mais que sacuda os vestidos,
a poeira dos caminhos jaz em mim."
Este é "Poeira", um dos "Poemas escritos na Índia". Lá, onde ela também escreveu: "Quando é a noite,/ O vento não vem./ E o menino dorme tão bem!"
Fico por aqui, fecho o livro, enquanto vou abrir a janela do quarto e apagar a lâmpada. Faço isso, mas a luz que vem de lá de fora não consegue clarear sozinha, sem a ajuda da lâmpada, o quarto e eu dentro dele. Deixo as duas luzes, portanto, acesas. São cinco horas de uma tarde estúpida de domingo. Os domingos não deveriam existir, todos já sabem disso. Os domingos só servem para a gente morrer mais um pouco. E ficar com raiva ao saber que muitos estão adorando esse dia, ao som de um fundo aberto de carro, perto da praia...
Só dá para fazer uma coisa aos domingos: dormir. Mas como tudo tem limite (mãe me disse esse clichê a vida toda), o sono acabou. O que vou fazer agora? Por isso pego de novo o livro de Cecília - minha irmã de alma. E ela volta a dizer, na "canção do menino que dorme", que mesmo que "o vento não vem", "o menino dorme tão bem!"
É, Cecília, preciso fazer como esse menino. Na verdade não dormi bem o dia inteiro. Pois se não lembrei de nenhum sonho? Todos fugiram quando acordei. Dormir e não sonhar é algo inútil, nós duas sabemos. Você que teve tantos sonhos, até publicou um livro com esse nome!
"Em sonho vireis delicadamente
e sem motivo algum
direis palavras amáveis
que vos surpreenderiam
se vos fossem contadas."
(...)
"Jamais saberei o que sonháveis
enquanto eu sonhava com as vossas gentilezas.
Jamais sabereis que tais gentilezas foram sonhadas."
Oh, Cecília, sofremos das mesmas dores: essas que o amor deixa como ausências dentro de casa, feito teias de aranha cansadas e dias de domingo mal-dormidos.
"Por mais que sacuda os cabelos,
por mais que sacuda os vestidos,
a poeira dos caminhos jaz em mim."
Este é "Poeira", um dos "Poemas escritos na Índia". Lá, onde ela também escreveu: "Quando é a noite,/ O vento não vem./ E o menino dorme tão bem!"
Fico por aqui, fecho o livro, enquanto vou abrir a janela do quarto e apagar a lâmpada. Faço isso, mas a luz que vem de lá de fora não consegue clarear sozinha, sem a ajuda da lâmpada, o quarto e eu dentro dele. Deixo as duas luzes, portanto, acesas. São cinco horas de uma tarde estúpida de domingo. Os domingos não deveriam existir, todos já sabem disso. Os domingos só servem para a gente morrer mais um pouco. E ficar com raiva ao saber que muitos estão adorando esse dia, ao som de um fundo aberto de carro, perto da praia...
Só dá para fazer uma coisa aos domingos: dormir. Mas como tudo tem limite (mãe me disse esse clichê a vida toda), o sono acabou. O que vou fazer agora? Por isso pego de novo o livro de Cecília - minha irmã de alma. E ela volta a dizer, na "canção do menino que dorme", que mesmo que "o vento não vem", "o menino dorme tão bem!"
É, Cecília, preciso fazer como esse menino. Na verdade não dormi bem o dia inteiro. Pois se não lembrei de nenhum sonho? Todos fugiram quando acordei. Dormir e não sonhar é algo inútil, nós duas sabemos. Você que teve tantos sonhos, até publicou um livro com esse nome!
"Em sonho vireis delicadamente
e sem motivo algum
direis palavras amáveis
que vos surpreenderiam
se vos fossem contadas."
(...)
"Jamais saberei o que sonháveis
enquanto eu sonhava com as vossas gentilezas.
Jamais sabereis que tais gentilezas foram sonhadas."
Oh, Cecília, sofremos das mesmas dores: essas que o amor deixa como ausências dentro de casa, feito teias de aranha cansadas e dias de domingo mal-dormidos.
terça-feira, 23 de outubro de 2007
Sílvia Clotildes
Em frente a este computador tem um mural com várias fotos: meu sobrinho, vestido de "Senhor Incrível", Drummond de Andrade falando que "...a hora mais bela surge da mais triste", eu e minha afilhada Mariane (linda) na porta da "Casa do Olodum", Cecília Meireles em meio a muitas flores, Iemanjá, uma fota panorâmica de minha cidade natal, e um bilhete muito, mas muito antigo...
O bilhete começa assim: "Amiga A. Desejo muitas felicidades e que a partir dos seus catorze anos você tenha uma vida cheia de alegria e amizade a todos." A seguir fala muitas outras coisas, como "às vezes eu lhe abuso, aliás sempre; mas amigo de verdade tem que compreender o outro", etc. Depois assina seu nome: "Sílvia Clotildes", e desenha em frente uma flor azul com vários ramos verdes espevitados.
Esse bilhete para mim é um símbolo. Por isso nunca o retiro do mural.
Esta é a minha amiga Sílvia, lembram-se? Aquela, que me dava cascudos na escola, que me batia, e que minha irmã batia nela para descontar. Minha primeira amiga. Quando nos conhecemos tínhamos seis anos de idade. Íamos juntas para a escola. Sentávamos juntas. Ela explorava de mim para pegar merenda para ela. Conversávamos. Brincávamos. Ela me batia. Eu nunca revidava: não tinha coragem e força para isso. Crescemos juntas. Ela me dizia sobre as coisas do mundo que eu não acreditava. Dizia que não existia papai noel, nem cegonha, muito menos existiu arca de Noé e o próprio Noé. Muito menos Deus. Eu nunca acreditei nessas mentiras dela. E continuava sua amiga, a despeito de seu gênio terrível e mentiroso. Nunca me esqueci do vestido que ela usava no dia em que nos conhecemos na sala de aula: um vestido cheio de flores. Logo fizemos amizade. E quando a professora pediu que desenhássemos uma casa e eu fiz a minha com telhados coloridos, ela me recriminou: "ei besta, telhado não é dessa cor não, é marrom". Eu não acreditei nisso. E pintei o meu telhado colorido. Todos esses desencontros, porém, nunca impediram que nossa amizade continuasse. Ela habitualmente antenada com as coisas da vida, eu sempre alheia, no mundo da lua, mas juntas. Acho que uma amparava a outra na dificuldade de podermos ser amigas diante de diferenças tão cruéis.
Na adolescência também vivenciamos muitas coisas juntas. Ela,claro, invariavelmente adiantada. Namorou cedo, enquanto que eu ficava com inveja. Aliás, foi a inveja que sempre temperou nossa amizade. Quando crianças, se mãe comprasse um sapato para mim, ela também precisava ter um igual, e vice-versa. Quando já crescidas, a inveja continuou transparente: se eu ou ela comprássemos um disco novo, a outra tinha que comprar um também, igualzinho. Aceitávamos nossas invejas mútuas numa boa.
Eu saí de nossa terra, para fazer faculdade, aos vinte e cinco anos. Ela lá ficou. Não quis dessa vez ser fiel à inveja, algo tão peculiar à nossa amizade. Atualmente tem três filhos, e eu não tive inveja, não quis fazer o mesmo. Mas continuamos amigas. Falamos tudo, uma na cara da outra. Amizade límpida, sem máscaras. Sustenta-se no mundo de maneira gratuita, sem cobranças. Sem explicações.
O bilhete começa assim: "Amiga A. Desejo muitas felicidades e que a partir dos seus catorze anos você tenha uma vida cheia de alegria e amizade a todos." A seguir fala muitas outras coisas, como "às vezes eu lhe abuso, aliás sempre; mas amigo de verdade tem que compreender o outro", etc. Depois assina seu nome: "Sílvia Clotildes", e desenha em frente uma flor azul com vários ramos verdes espevitados.
Esse bilhete para mim é um símbolo. Por isso nunca o retiro do mural.
Esta é a minha amiga Sílvia, lembram-se? Aquela, que me dava cascudos na escola, que me batia, e que minha irmã batia nela para descontar. Minha primeira amiga. Quando nos conhecemos tínhamos seis anos de idade. Íamos juntas para a escola. Sentávamos juntas. Ela explorava de mim para pegar merenda para ela. Conversávamos. Brincávamos. Ela me batia. Eu nunca revidava: não tinha coragem e força para isso. Crescemos juntas. Ela me dizia sobre as coisas do mundo que eu não acreditava. Dizia que não existia papai noel, nem cegonha, muito menos existiu arca de Noé e o próprio Noé. Muito menos Deus. Eu nunca acreditei nessas mentiras dela. E continuava sua amiga, a despeito de seu gênio terrível e mentiroso. Nunca me esqueci do vestido que ela usava no dia em que nos conhecemos na sala de aula: um vestido cheio de flores. Logo fizemos amizade. E quando a professora pediu que desenhássemos uma casa e eu fiz a minha com telhados coloridos, ela me recriminou: "ei besta, telhado não é dessa cor não, é marrom". Eu não acreditei nisso. E pintei o meu telhado colorido. Todos esses desencontros, porém, nunca impediram que nossa amizade continuasse. Ela habitualmente antenada com as coisas da vida, eu sempre alheia, no mundo da lua, mas juntas. Acho que uma amparava a outra na dificuldade de podermos ser amigas diante de diferenças tão cruéis.
Na adolescência também vivenciamos muitas coisas juntas. Ela,claro, invariavelmente adiantada. Namorou cedo, enquanto que eu ficava com inveja. Aliás, foi a inveja que sempre temperou nossa amizade. Quando crianças, se mãe comprasse um sapato para mim, ela também precisava ter um igual, e vice-versa. Quando já crescidas, a inveja continuou transparente: se eu ou ela comprássemos um disco novo, a outra tinha que comprar um também, igualzinho. Aceitávamos nossas invejas mútuas numa boa.
Eu saí de nossa terra, para fazer faculdade, aos vinte e cinco anos. Ela lá ficou. Não quis dessa vez ser fiel à inveja, algo tão peculiar à nossa amizade. Atualmente tem três filhos, e eu não tive inveja, não quis fazer o mesmo. Mas continuamos amigas. Falamos tudo, uma na cara da outra. Amizade límpida, sem máscaras. Sustenta-se no mundo de maneira gratuita, sem cobranças. Sem explicações.
terça-feira, 16 de outubro de 2007
Ah, o amor
Pego à toa na estante um livro de Roland Barthes, e vejo algo que ele anotou, entre parênteses, ao começar a falar sobre a poética experiência da fotografia: "(a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões)". Está sublinhado a lápis por mim. O livro traz na folha de rosto, como sempre, o nome da proprietária (eu), e a data: 20.05.05. Páro aqui, hoje não vou além, apesar de ver que o livro está todo sublinhado com paixão. Essa frase, nesse momento, me captura totalmente. E volto a escrevê-la, como se murmurasse, falasse baixinho para eu não conseguir ouvir: "(a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões)". E me lembro que você vai viajar, e que eu vou ficar alguns dias sem remédio. Não foi isso que o psicólogo prescreveu?: "abstinência total de amor". E você me deixará sozinha em casa bem na hora em que se iniciará o tratamento, a análise propriamente dita. Golpes de pequenas solidões. "Abstinência de amor", o psicólogo vibrou com a armação do destino: "... na hora certa, você precisa disso, falta de amor total para poder se curar". Meu Deus. Abstinência de amor. Agora é que me dou conta da frase do psicólogo e dessa viagem sua, tão chata. Como sobreviver sem esse remédio que você tanto me dá, e que me fez adoecer na infância? Que me deixou a seqüela do chororô? Que me fez chorar até porque minha irmã rasgou a bandeira nacional no dia sete de setembro, em plena escola? Na minha cabeça ela ia ser presa por causa disso... E ela rasgava com gosto, a cada chorada minha, num sadismo engraçado. Ah, minha irmã de novo, que me ensinou o amor pelo avesso... Minha irmã que conhece o mundo desde menina, e que se habitou a viver nele como moradora incondicional. "Abstinência total de amor". E minha mãe, que pouco viajava, e quando o fazia era comigo ao seu lado, um aconchego tão grande, apesar de, verdade seja dita, nunca ter deixado de me beliscar no braço. Pai viajava muito, eu não gostava, o lucro era porque na volta, dentro de sua maleta de mão, vinha sempre um livro para mim. "Abstinência total de amor". Eu indo para o trabalho, sozinha. Eu voltando para casa, sozinha. Eu deitada no divã falando falando falando, e o psicólogo anotando anotando anotando... Já estou sentindo a presença de Kafka... E não posso chorar agora.
domingo, 14 de outubro de 2007
O segredo que a vida exala
Este meu nome de batismo aqui - "Aeronauta" - vem da poesia. Da poesia de Cecília Meireles. De um personagem que se parece comigo. E que um dia descobre que não é feliz nem triste, humilde nem orgulhoso, pois não é terrestre:
"(...)
Agora sei que este corpo,
insuficiente, em que assiste
remota fala,
mui docemente se perde
nos ares, como o segredo
que a vida exala.
(...)"
Essa impressão eu tive cedo. Muito cedo. Sei que era o crepúsculo de um sábado chuvoso, estávamos reunidos na mesa de nossa casa na rua da conceição: eu, mãe, pai, minha irmã, um candeeiro e o destino. E a chuva lá fora vinha com um vento que assanhava o fogo do candeeiro. Ali corroía uma atmosfera pesada. Quantos anos eu tinha? Cinco? Seis? Mil? Nessa atmosfera o vento vinha dizer que minha tia havia morrido. O nome dela era Corina. E ela morreu tendo o seu último filho. Que coisa! No dia em que alguém nasce do outro, esse outro morre. Como se a vida fosse a morte e a morte a vida. Não, naquele momento jamais teria tal impressão filosófica, claro. Lembro que tive, isso sim, uma sensação de estranhamento, deslocamento, escuridão. Fomos todos para o povoado onde se encontrava o corpo de minha tia. Chovia forte. Na sala apertada, gente que não acabava mais. Mas minha lembrança está focada mesmo numa cama de pernas estranhas, uma pessoa deitada envolvida num lençol branco, enorme. O aroma, que o vento fazia questão agora de enfatizar, era de um incenso de igreja. E o som era de uma cantoria terrivelmente melancólica e chorosa, proveniente da reza sofrida. Me levaram correndo para o quarto ao lado. Nessa hora só lembro de minha mãe me acompanhando, mais ninguém. E de lá do quarto dava para eu ouvir, bem nítido, o som abafado da dor, e sentir o cheiro forte do incenso, e ver, como numa imagem de sonho, uma efígie sobre a porta onde eu me encontrava. Essa efígie me acompanha até hoje. Não sei o que ela significava, se ela existiu de fato. O que sei é que aquilo tudo doía muito em mim...
No outro dia, um grande silêncio, e a cama de pernas estranhas jogada num quintal vazio, devastado, triste...
Ah, mais uma vez, como eu gostaria de ter sido, desde cedo, uma não-aeronauta, como minha irmã! Ela achou aquilo tudo uma grande novidade. E voltou contando para os amiguinhos que nossa tia morta era tão gorda que teve de ser enterrada em dois caixões.
"(...)
Agora sei que este corpo,
insuficiente, em que assiste
remota fala,
mui docemente se perde
nos ares, como o segredo
que a vida exala.
(...)"
Essa impressão eu tive cedo. Muito cedo. Sei que era o crepúsculo de um sábado chuvoso, estávamos reunidos na mesa de nossa casa na rua da conceição: eu, mãe, pai, minha irmã, um candeeiro e o destino. E a chuva lá fora vinha com um vento que assanhava o fogo do candeeiro. Ali corroía uma atmosfera pesada. Quantos anos eu tinha? Cinco? Seis? Mil? Nessa atmosfera o vento vinha dizer que minha tia havia morrido. O nome dela era Corina. E ela morreu tendo o seu último filho. Que coisa! No dia em que alguém nasce do outro, esse outro morre. Como se a vida fosse a morte e a morte a vida. Não, naquele momento jamais teria tal impressão filosófica, claro. Lembro que tive, isso sim, uma sensação de estranhamento, deslocamento, escuridão. Fomos todos para o povoado onde se encontrava o corpo de minha tia. Chovia forte. Na sala apertada, gente que não acabava mais. Mas minha lembrança está focada mesmo numa cama de pernas estranhas, uma pessoa deitada envolvida num lençol branco, enorme. O aroma, que o vento fazia questão agora de enfatizar, era de um incenso de igreja. E o som era de uma cantoria terrivelmente melancólica e chorosa, proveniente da reza sofrida. Me levaram correndo para o quarto ao lado. Nessa hora só lembro de minha mãe me acompanhando, mais ninguém. E de lá do quarto dava para eu ouvir, bem nítido, o som abafado da dor, e sentir o cheiro forte do incenso, e ver, como numa imagem de sonho, uma efígie sobre a porta onde eu me encontrava. Essa efígie me acompanha até hoje. Não sei o que ela significava, se ela existiu de fato. O que sei é que aquilo tudo doía muito em mim...
No outro dia, um grande silêncio, e a cama de pernas estranhas jogada num quintal vazio, devastado, triste...
Ah, mais uma vez, como eu gostaria de ter sido, desde cedo, uma não-aeronauta, como minha irmã! Ela achou aquilo tudo uma grande novidade. E voltou contando para os amiguinhos que nossa tia morta era tão gorda que teve de ser enterrada em dois caixões.
terça-feira, 9 de outubro de 2007
Minha irmã
Pensei em postar esse texto no dia do aniversário dela. Mas ainda está longe: 4 de novembro. Não dá para esperar até esse dia, vou tentar escrever hoje. O que falar dela? Ah, tanta coisa. Primeiro que somos muito diferentes uma da outra. Quando crianças, vestidas iguaizinhas, as pessoas diziam assim: "vocês duas são irmãs? Mas como são diferentes!" Isso quer dizer que as únicas coisas parecidas ali eram nossas roupas: costuradas por mãe, claro, que talvez desejasse que fôssemos gêmeas.
Ah, nós duas... criaturas completamente distintas... Uma gordinha, a outra magra. Uma com cabelo liso, a outra com cabelo crespo. Uma que gostava de brincar de roda e de boneca, a outra que gostava de subir em árvore e de paquerar. Uma que gostava de estudar, a outra que amava brigar na escola. Acho que não é preciso dizer quem é quem aqui. Já dá para perceber que minha irmã era o máximo.
Mas eu não gostava de ser irmã dela. Nem ela gostava de ser minha irmã. Apenas morávamos na mesma casa, e ela me defendia quando Sílvia, minha primeira amiga, me batia. Dando puxões de cabelo em Sílvia ela dizia assim: "em irmã minha ninguém bate, só eu!"
Ela era muito metida e me chamava de besta. Às vezes, na escola, fingia que não me conhecia e nunca me tirava para o seu time. Em casa me dizia por que procedia assim: "você é muito mole!"
Hoje como eu gosto de ser irmã dela. Nós temos um passado em comum. A mesma casa antiga guardada na memória. O mesmo pai e a mesma mãe. O mesmo linguajar. Só continuamos muitíssimo diferentes, claro. Mas isso não impede que a gente se goste e dê boas risadas juntas lembrando nossa infância. E que eu jamais esqueça a maior declaração de amor que ela me fez: aos sete anos, ao saber que eu ia viajar para Salvador em razão de uma hepatite, ela foi se despedir de mim e me deu aquilo que mais estimava na vida: um copinho de alumínio com seu nome gravado.
Ah, nós duas... criaturas completamente distintas... Uma gordinha, a outra magra. Uma com cabelo liso, a outra com cabelo crespo. Uma que gostava de brincar de roda e de boneca, a outra que gostava de subir em árvore e de paquerar. Uma que gostava de estudar, a outra que amava brigar na escola. Acho que não é preciso dizer quem é quem aqui. Já dá para perceber que minha irmã era o máximo.
Mas eu não gostava de ser irmã dela. Nem ela gostava de ser minha irmã. Apenas morávamos na mesma casa, e ela me defendia quando Sílvia, minha primeira amiga, me batia. Dando puxões de cabelo em Sílvia ela dizia assim: "em irmã minha ninguém bate, só eu!"
Ela era muito metida e me chamava de besta. Às vezes, na escola, fingia que não me conhecia e nunca me tirava para o seu time. Em casa me dizia por que procedia assim: "você é muito mole!"
Hoje como eu gosto de ser irmã dela. Nós temos um passado em comum. A mesma casa antiga guardada na memória. O mesmo pai e a mesma mãe. O mesmo linguajar. Só continuamos muitíssimo diferentes, claro. Mas isso não impede que a gente se goste e dê boas risadas juntas lembrando nossa infância. E que eu jamais esqueça a maior declaração de amor que ela me fez: aos sete anos, ao saber que eu ia viajar para Salvador em razão de uma hepatite, ela foi se despedir de mim e me deu aquilo que mais estimava na vida: um copinho de alumínio com seu nome gravado.
domingo, 7 de outubro de 2007
Borboletas voando pela sala
Eu e meus alunos tivemos, nessa semana, uma experiência excepcional com Francis Ponge e seu "O Partido das Coisas" ("Le parti pris des choses"). Distribuí cada "coisa" para cada equipe: enquanto uma ficou com a descrição que o poeta faz do "pão", outra ficou com "a laranja", outra com "o fogo", outra com a "água", e mais uma com "os prazeres da porta". Eu fiquei com a "chuva". Tão excepcional quanto as descrições maravilhosas que o poeta faz, foi a apresentação deles. Que decodificação visceral! Mais do que verem, tocarem e perceberem a vida de uma porta (claro, não levaram uma porta de casa, utilizaram a porta da sala de aula), eles sentiram que existe uma "ventura" (como diz Ponge) em tocar uma porta, "o corpo-a-corpo rápido pelo qual por um instante o passo se detém, o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda ao seu novo aposento". Levaram jarras cheias de água e mostraram o "vício" que Ponge creditou, com mérito, à água: "o vício da gravidade". Segundo o poeta francês, a água "só tende a se humilhar, deita-se de bruços no chão, quase cadáver, como os monges de certas ordens"... porque se encontra "sempre mais abaixo", e "é sempre com os olhos baixos" que a vemos. Agora o mais interessante, além de mostrarem a descrição do pão com "esse frouxo e frio subsolo que se chama miolo" e que "tem seu tecido semelhante ao das esponjas", e de trazerem uma laranja para demonstrarem o quanto esta fruta "é por demais passiva", pois que "seu sacrifício odorante... é entregar-se realmente muito barato ao opressor", além de tudo isso, interessante demais foi a apresentação do fogo. Muito criativos, mostraram, junto com Ponge, o que é realmente o fogo e suas formas. Levaram, claro, papel e fósforo, levaram o fogo de uma vela, levaram centenas de papéis a serem queimados... E mostraram o que Ponge disse: "Só se pode comparar a andadura do fogo à dos animais: é preciso que desocupe este lugar para ocupar aquele outro; caminha a um só tempo como ameba e como girafa, o pescoço à frente, os pés rampantes)..." "Depois, ao passo que as massas metodicamente contaminadas se aniquilam, os gases liberados vão-se transformando numa só rampa de borboletas". Metáfora da fumaça, os alunos mostraram as borboletas, todas voando pela sala e pelo coração da professora... que assistia a tudo isso muito comovida.
segunda-feira, 1 de outubro de 2007
Conversando no divã (II)
Meu psicólogo me diz que preciso aprender a ser dura. Como???? Sou mole, manteiga derretida, como os vizinhos me chamavam na infância ao ouvirem, na rua, o eco do meu choro repetido o dia inteiro. É, sou uma manteiga derretida. Como aprender a endurecer mãos, coração, olhos?
"Comece a olhar a vida com dureza", foi o que ele enfatizou hoje pela manhã, e na hora entendi que ele lia minha alma e estava certo, mas que isso era tarefa impossível para mim. Vou ser manteiga derretida até o fim de meus dias. Mãe me contou que eu, recém-nascida, lasquei os cantos da boca de tanto chorar. E lembro bem que passei toda a minha infância chorando, me esgoelando para o mundo e para a rua toda ouvir. Sei lá por que chorava, sei que chorava. Na adolescência chorava também, não me esgoelando, claro, mas chorando quietinha no meu canto, com meus livros de Clarice no colo. Depois, adulta, as lágrimas continuaram insistindo na moradia boa de meus olhos. Agora, mais adulta ainda, continuo a mesma manteiga derretida, apelidozinho que eu odiava quando era criança. O pior é que ele, o psicólogo, está certo: preciso aprender essa lição da dureza. Por onde começo? Acho que por ele mesmo. Não estou mais nessa de achar que psicólogo precisa ter afeto por seu paciente. Chego lá, choro choro choro, ele me dá lencinhos de papel e busca comigo encontrar o labirinto, sem pegar na minha mão. É melhor assim, o labirinto é meu, tenho que ir sozinha, ele só precisa me ajudar profissionalmente. Pronto, eis uma palavra dura: "profissionalmente" - palavra longa, fria, parece escritório, secretária fardada atendendo ao telefone e um sonzinho de fax ao fundo. Eis, pois, o mundo. Ele é o mestre, diz isso ao meu coração: "veja, o mundo é um escritório kafkiano onde você está envolvida num terrível processo. Mas é possível sair de lá. Porém, só será possível mesmo se você enxergar, ver, viver esse escritório, e, pior ainda (ou melhor ainda), viver a condição de ser o inseto kafkiano."
"Comece a olhar a vida com dureza", foi o que ele enfatizou hoje pela manhã, e na hora entendi que ele lia minha alma e estava certo, mas que isso era tarefa impossível para mim. Vou ser manteiga derretida até o fim de meus dias. Mãe me contou que eu, recém-nascida, lasquei os cantos da boca de tanto chorar. E lembro bem que passei toda a minha infância chorando, me esgoelando para o mundo e para a rua toda ouvir. Sei lá por que chorava, sei que chorava. Na adolescência chorava também, não me esgoelando, claro, mas chorando quietinha no meu canto, com meus livros de Clarice no colo. Depois, adulta, as lágrimas continuaram insistindo na moradia boa de meus olhos. Agora, mais adulta ainda, continuo a mesma manteiga derretida, apelidozinho que eu odiava quando era criança. O pior é que ele, o psicólogo, está certo: preciso aprender essa lição da dureza. Por onde começo? Acho que por ele mesmo. Não estou mais nessa de achar que psicólogo precisa ter afeto por seu paciente. Chego lá, choro choro choro, ele me dá lencinhos de papel e busca comigo encontrar o labirinto, sem pegar na minha mão. É melhor assim, o labirinto é meu, tenho que ir sozinha, ele só precisa me ajudar profissionalmente. Pronto, eis uma palavra dura: "profissionalmente" - palavra longa, fria, parece escritório, secretária fardada atendendo ao telefone e um sonzinho de fax ao fundo. Eis, pois, o mundo. Ele é o mestre, diz isso ao meu coração: "veja, o mundo é um escritório kafkiano onde você está envolvida num terrível processo. Mas é possível sair de lá. Porém, só será possível mesmo se você enxergar, ver, viver esse escritório, e, pior ainda (ou melhor ainda), viver a condição de ser o inseto kafkiano."
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