Lembro da mudança. Minha avó vindo de sua casa, com um vestido florido, para se despedir. O caminhão na porta, e nós duas, eu e minha irmã, de macaquinho preto com bolinhas brancas. Fui com a mão na cabeça pedir a benção à minha avó, e, que coisa, eu tinha quatro anos mas não me esqueci o que ela disse: "Tire a mão da cabeça senão sua mãe morre!" Tirei imediatamente e fui me juntar ao povo. A lembrança aqui se parte. Eu já apareço no meio da estrada, em cima do caminhão, perto de meu berço e do guarda-louça de mãe. Engraçado, eu, minha irmã e uma prima viajávamos em cima do caminhão e pai e mãe na cabine, com o motorista. Acho estranho isso porque mãe sempre foi muito zelosa, protetora; que milagre ela deixar a gente ir em cima, na farra. Esta cena se corta e a seguinte é já na rua onde iríamos morar: Rua da Conceição. Rua pequena, no seu final tinha um morro com um cruzeiro e a ruína do que teria sido alguma casa de pedra. Pai saiu e nos deixou esperando na casa de Seo Augusto, na mesma rua. Desse local, o que ficaram na minha memória foram duas coisas: um chão vermelho e um menino brincando ali, sozinho, no meio da cozinha...
Aqui termina a lembrança de mim, aos quatro anos, na primeira mudança para uma vida nova.
Agora começa outra.
sábado, 31 de maio de 2008
segunda-feira, 26 de maio de 2008
O tapete voador
Minha irmã tem uma idéia revolucionária: a criação de um tapete voador. Com ele todos os seus problemas estariam definitivamente resolvidos: não precisaria mais ficar em pé, só deitada. Assim, deitada poderia ir abrir a porta, quando tocasse a campainha. Deitada, iria ao trabalho, onde, deitada digitaria tudo que lhe caberia fazer durante o dia. Deitada, enfim, poderia, com o tapete voador, atuar na vida. Acho uma boa idéia essa, eu que também sou adepta de esticar o corpo numa cama. Que gosto de sonhar deitada, olhando para o teto, desde criança. Para que ficar em pé? Essa é a pergunta dela, que sonha em não ter que precisar levantar nunca mais, principalmente para trabalhar. Nesse quesito, para ela o melhor mesmo era ganhar dinheiro no mole. De preferência, claro, deitada.
Minha irmã é uma legítima defensora do não fazer nada. E eu acho interessante isso. Ela assume nem nenhum trauma, sem nenhum melindre, sem qualquer remorso. Para quê?
Sábia humana criatura.
Enquanto que eu, ao descansar um pouco, fico pensando agoniada no tanto que preciso fazer, ela dorme como um anjo. E quando acorda, às quatro horas da tarde, me liga com voz de sono, perguntando se eu também estava dormindo. "Oh, que nada!", respondo. "Estou corrigindo provas". Aí ela: "Aaave Mariaaa...", e, bocejando, desliga. Para continuar seu sono em paz.
Até chegar o grande dia do "eureca" e construir seu tapete voador, ela vai se virando como pode: faz do filho de dez anos um autêntico "contínuo" (quem se lembra dos contínuos de antigamente?). O menino pega água para ela, suco, merenda, etc., sem se rebelar. A cada viagem dessa, evidentemente, ele cobra... cinqüenta centavos.
Ah, minha irmã, faça logo esse tapete! Pois quando você estiver dormindo na cama, à tarde, eu poderei pegar ele emprestado e sair voando por aí... deitada, em estado de felicidade, olhando para o céu azul.
Minha irmã é uma legítima defensora do não fazer nada. E eu acho interessante isso. Ela assume nem nenhum trauma, sem nenhum melindre, sem qualquer remorso. Para quê?
Sábia humana criatura.
Enquanto que eu, ao descansar um pouco, fico pensando agoniada no tanto que preciso fazer, ela dorme como um anjo. E quando acorda, às quatro horas da tarde, me liga com voz de sono, perguntando se eu também estava dormindo. "Oh, que nada!", respondo. "Estou corrigindo provas". Aí ela: "Aaave Mariaaa...", e, bocejando, desliga. Para continuar seu sono em paz.
Até chegar o grande dia do "eureca" e construir seu tapete voador, ela vai se virando como pode: faz do filho de dez anos um autêntico "contínuo" (quem se lembra dos contínuos de antigamente?). O menino pega água para ela, suco, merenda, etc., sem se rebelar. A cada viagem dessa, evidentemente, ele cobra... cinqüenta centavos.
Ah, minha irmã, faça logo esse tapete! Pois quando você estiver dormindo na cama, à tarde, eu poderei pegar ele emprestado e sair voando por aí... deitada, em estado de felicidade, olhando para o céu azul.
Meu São Longuinho
Meu São Longuinho guarda a minha memória.
Ele segura uma lanterna.
Ele me ajuda para que eu possa encontrar
objetos perdidos.
E está agora, nesse momento,
na minha estante.
Para que eu possa transitar bem na bagunça
onde estão meus livros.
Oh, meu São Longuinho,
me ajude a encontrar também
meus rastros, ainda vivos,
nesse mundo...
terça-feira, 20 de maio de 2008
Álbum de retratos
Foram tantos anos, tantas noites dormidas de mãos dadas, tantos silêncios compartilhados, tantas infâncias revividas. Lembro daquela vez, em Recife, quando juntos comprávamos móveis usados para o nosso quarto na república de estudantes. Compramos uma estante e uma cômoda. Você me levava para a universidade, cuidava de mim como se eu fosse sua filha, sua irmã que convalescia. A gente ia para Olinda e a viagem era tão comprida: dava um sono... eu dormia no seu ombro. Você nunca gostou de conversar antes de dormir, e eu nunca gostei de conversar ao acordar. Tínhamos horários diferenciados, mas você sempre tentava se ajustar aos meus, mesmo morrendo de sono. Esteve comigo em todos os momentos: até quando fomos levar mãe para fazer aquele tratamento dentário e perdemos o dia inteiro esperando pelo dentista. Ah, você se lembra daquele albergue na Boa Viagem? Era época de copa do mundo, você acordava cedo e ia comprar o meu café na padaria; depois descíamos, chovia muito, e aqueles estranhos todos na sala assistindo aos jogos. Fazia frio. Você me abraçava, me esquentava. Eu estava tão frágil, você me amparava. Você cuidava de mim como se cuida de um passarinho quase morto... com uma ternura repleta de esperanças; com o zelo de quem cola uma porcelana quebrada, nem tão bonita assim, nem tão preciosa assim. Foram muitos anos. Nós dois nem sabemos quantos. Dormindo e acordando juntos, com direito a todo inescapável ramerrão dos casamentos. Nas fotografias um dia saberão disso tudo; um dia os filhos que não tivemos irão ver todos os momentos que inventamos, em Recife e em outros mundos.
domingo, 18 de maio de 2008
Ah, eu quero mesmo...
Definitivamente, não sei viver nesse mundo. Os números me apavoram; não sei declarar imposto de renda; não quero telefone celular; odeio ir ao banco; fazer supermercado é uma coisa que me deixa de baixo-astral; não entendo quase nada de computador; não sei usar data-show; detesto ter de pagar qualquer conta, em pé, nalguma fila; nunca tirei um retrato com a máquina digital - não sei nem por onde começar, aliás, não desejo ter uma...
Ah, eu quero mesmo é que me chamem de Aurora, ou Margarida; quero ter um sobrado antigo, um gramofone tocando no crepúsculo de domingo; na sala-de-estar uma estante com porta de vidro, e muitos, muitos livros antigos, de meus mais queridos antepassados. Minhas mãos tocando fronhas e lençóis bordados com iniciais em pontos-de-cruz, enquanto espero por ti, espero por ti, à sós... em todos os séculos que passam por nós...
Ah, eu quero mesmo é que me chamem de Aurora, ou Margarida; quero ter um sobrado antigo, um gramofone tocando no crepúsculo de domingo; na sala-de-estar uma estante com porta de vidro, e muitos, muitos livros antigos, de meus mais queridos antepassados. Minhas mãos tocando fronhas e lençóis bordados com iniciais em pontos-de-cruz, enquanto espero por ti, espero por ti, à sós... em todos os séculos que passam por nós...
terça-feira, 13 de maio de 2008
"mil reticências vezes mil"
Quem pode saber algo 'concreto' sobre o mundo, sobre a vida, especialmente sobre o futuro? Um menino de dezoito anos intuiu, antes de se misturar para sempre às águas do Rio São Francisco...
Dias, muitos dias depois, a mãe. Uma sala de aula. O menino. Três elementos da história que me esperava no fim da tarde, num curso de pós-graduação em literatura ministrado por mim.
A mãe me procurou no final da aula para me entregar um bilhete. O bilhete literário e vital que seu filho escreveu, sapiente do mundo, dias antes de ir se afogar no Velho Chico:
O homem que construiu a minha história é um Homem conhecedor do universo. É um verdadeiro sentimento da vida. Só sabe da minha história até aos 18 anos quem realmente convive comigo. Felicidade só tem quem busca e não tem medo; é por isso que sou feliz, pois sou um sonhador e conhecedor dos meus próprios objetivos.
O meu futuro são mil reticências vezes mil.
Dias, muitos dias depois, a mãe. Uma sala de aula. O menino. Três elementos da história que me esperava no fim da tarde, num curso de pós-graduação em literatura ministrado por mim.
A mãe me procurou no final da aula para me entregar um bilhete. O bilhete literário e vital que seu filho escreveu, sapiente do mundo, dias antes de ir se afogar no Velho Chico:
O homem que construiu a minha história é um Homem conhecedor do universo. É um verdadeiro sentimento da vida. Só sabe da minha história até aos 18 anos quem realmente convive comigo. Felicidade só tem quem busca e não tem medo; é por isso que sou feliz, pois sou um sonhador e conhecedor dos meus próprios objetivos.
O meu futuro são mil reticências vezes mil.
segunda-feira, 12 de maio de 2008
Carta ao meu pai
Fico forçando a memória, tentando tirar de lá lembranças suas, lembranças novas, ou lembranças velhas, lembranças com a ternura. Pouca coisa surge, e, todas que vêm, já relatei aqui. E não quero lembrar dos momentos terríveis de sua doença, quando comecei a envelhecer aos vinte e poucos anos. Não, não quero. Quero lembrar de sua juventude, quando eu, aos quatro anos, precisei de um remédio e o senhor viajou mais de cinqüenta quilômetros de bicicleta para comprar esse remédio para mim. Ou quando eu, com o cabelo nos mundos, vinha da festa suada, dormindo no seu colo. É lembrança repetida, sei, mas muitas vezes uma lembrança repetida salva toda uma vida do ressentimento. Do ressentimento de não reter lembranças fortes; de não guardar com nitidez uma fisionomia antiga; de, na infância, não conseguir esculpir, para sempre, um rosto querido.
A sua face é aquela que minha adolescência guarda, diluída em conflitos, nunca em abraços. Em ciúmes. Em traços antiquados de minha juventude arrogante, sempre pronta para a briga. (Todo adolescente é um sapo parnasiano, cantando na lagoa). Aí vieram os meus vinte anos, os vinte e quatro, e sua doença. A possibilidade da morte rondando a nós todos, tontos, sem atinar para nada direito. Aí minha mesquinhez desceu Paraguaçu abaixo e eu comecei a lhe emprestar dinheiro. É, para compensar minhas avarezas, principalmente de carinho. Aí o senhor foi ficando cada vez mais doente, e eu cada vez mais velha. Tinha rugas fundas aos vinte e seis anos, idade que nunca me deixará, idade petrificada, idade que eu tinha quando o senhor se foi, pouco a pouco, num dia de domingo de junho... como se uma mão distante acenasse a cada minuto menos imperceptível. Sua imagem estava indo, e graças a Deus nessa época não havia mais tradição de tirar retrato em velório. Eis porque não quero lembrar desses momentos terríveis. Quero lembrar de sua juventude plena, como naquela fotografia em que, de paletó e graveta, o senhor fez pose, para o retratista da praça, na Lapa do Bom Jesus. Eu não havia nascido, mas já tinha ido ao seu casamento. Era o que eu dizia aos seis anos para todo mundo: que eu tinha ido ao casamento de meus pais. Todos riam, achavam engraçado, e eu me sentia importante. O senhor me colocava no colo; eu, a caçula; a caçula que até hoje nunca aprendeu a assoviar, muito menos a dirigir, muito menos a nadar. E que não dança mais nas festas. E que clama por sua presença todos os dias, e chora. Para que o senhor escute, pegue sua bicicleta e volte - a fim de trazer um remédio para mim.
A sua face é aquela que minha adolescência guarda, diluída em conflitos, nunca em abraços. Em ciúmes. Em traços antiquados de minha juventude arrogante, sempre pronta para a briga. (Todo adolescente é um sapo parnasiano, cantando na lagoa). Aí vieram os meus vinte anos, os vinte e quatro, e sua doença. A possibilidade da morte rondando a nós todos, tontos, sem atinar para nada direito. Aí minha mesquinhez desceu Paraguaçu abaixo e eu comecei a lhe emprestar dinheiro. É, para compensar minhas avarezas, principalmente de carinho. Aí o senhor foi ficando cada vez mais doente, e eu cada vez mais velha. Tinha rugas fundas aos vinte e seis anos, idade que nunca me deixará, idade petrificada, idade que eu tinha quando o senhor se foi, pouco a pouco, num dia de domingo de junho... como se uma mão distante acenasse a cada minuto menos imperceptível. Sua imagem estava indo, e graças a Deus nessa época não havia mais tradição de tirar retrato em velório. Eis porque não quero lembrar desses momentos terríveis. Quero lembrar de sua juventude plena, como naquela fotografia em que, de paletó e graveta, o senhor fez pose, para o retratista da praça, na Lapa do Bom Jesus. Eu não havia nascido, mas já tinha ido ao seu casamento. Era o que eu dizia aos seis anos para todo mundo: que eu tinha ido ao casamento de meus pais. Todos riam, achavam engraçado, e eu me sentia importante. O senhor me colocava no colo; eu, a caçula; a caçula que até hoje nunca aprendeu a assoviar, muito menos a dirigir, muito menos a nadar. E que não dança mais nas festas. E que clama por sua presença todos os dias, e chora. Para que o senhor escute, pegue sua bicicleta e volte - a fim de trazer um remédio para mim.
domingo, 11 de maio de 2008
Anjo não!
"O badalar do sino
anuncia
a coroação do menino
Batuqueiro, violeiro e cantador
alegram o festejo do pequeno imperador
Leiloeiro faz graça
com uma prenda na mão
e a banda toca
com animação
Oh que beleza! A Festa do Divino!
Cores, músicas e danças
E fogos explodindo!"
(Hino da Festa)
Hoje é o dia da Festa do Divino Espírito Santo na minha cidade. Vejo tudo isso daqui, da janela do apartamento onde moro. Não pude ir, mas consigo visualizar bem meu sobrinho no cortejo, perto do imperador e da imperatriz, adorando estar paramentado de guarda. Vejo a missa, tão concorrida, como sempre; e, no momento da coroação do menino, os pombinhos sendo soltos, dentro da igreja. Ah, e às quatro horas da tarde? As janelas das casas enfeitadas com toalhas bordadas e jarros cheios de flores, esperando a procissão,com o toque da marujada e da banda de música vindo bem perto, cada vez mais perto. Muitos foguetes espocando. Tudo igual, como em todos os anos, desde quando eu era menina e sonhava ser imperatriz. Sonho por demais ambicioso, já que nunca passei da escala de anjo ou de Dom do Espírito Santo. Vestir-se de anjo e de dom era o grau mais simplório na participação da festa. Punham um vestido branco na gente e pronto: já é dom ou anjo. Ser imperatriz significa usar roupas luxuosas, ter um manto enorme levado pelas mãos das meninas vestidas de damas, súditas, mas também bonitas, luxuosas. O mais simplório mesmo era vestir-se de anjo, mais ainda de que se vestir de Dom. Porque uma vez eu fui o Dom esperança, e tive um melhor tratamento: roupa longa verde e sandalinha branca. Mas anjo não: sempre aquela mortalhona, e sandálias havaianas. Coitadas das crianças condenadas a se vestirem de anjo em tão linda festa!
Fotografia: meu sobrinho, vestido de guarda do Divino Espírito Santo (segundo, da esquerda para a direita), festa de 2008.
terça-feira, 6 de maio de 2008
"ABC das máquinas"
Adoro tudo que é antigo. Livros, principalmente.
Está aqui nesse momento, perto de mim, um espécime raro: "Quadrante", volume 2, livro que reúne crônicas de Drummond, Cecília, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, etc. Data: 1963. As páginas estão tão finas, o livro tão surrado, coitadinho... Na primeira capa o nome de um dono antigo: "José Ricardo da Silveira", e o ano de aquisição: "1967". Tudo isso me dá uma certa nostalgia: sinto que cada página traz vestígios de dedos que nunca conhecerei. A letra de José Ricardo é altiva e escrita numa caneta também altiva: é possível perceber. Fico pensando como foi a leitura que ele fez desse livro, o que ele sentiu...
De cá, de 2008, como amei ler a crônica de Paulo Mendes Campos, intitulada "ABC das máquinas"! Talvez ele, José Ricardo, não teve, claro, a mesma reação minha, já que de 1967 para cá as muitas mudanças são trazidas pelas máquinas. Paulo Mendes Campos enumera várias, e a primeira é "Automóvel - o dono do homem." "Automóvel", ninguém chama, hoje, "carro" de automóvel, o que é uma pena. "Carro" é por demais prático, por demais seco, não tem melodia, ao contrário de au-to-mó-vel, palavra deliciosa para falar. E cantar.
Há de saber que Paulo Mendes Campos não gostava de máquinas, como a maioria dos escritores. Mas ele livra uma de sua antipatia: a geladeira. Considerava que a geladeira trazia "um ar manso e repousante de uma tia gorda, pronta a fazer-nos um obséquio." "Obséquio" - outra palavra que desapareceu no tempo. Uma pena. "Obséquio" soa por demais gentil, mas nossos ouvidos, coitados, foram condenados a não mais escutar essa tão digna palavra.
Outra máquina que amei ver no abecê do cronista: "Vitrola". Diz ele: "Nunca vi uma vitrola moderna funcionando perfeitamente. São muito aperfeiçoadas, muito sensíveis. Do mesmo modo, o elepê que se preze sempre faz muito barulho. Sensibilidade."
Ah, eis o ponto que mais gosto, já que nunca fui com a cara do cedê. Sempre gostei das músicas trazidas pelos bolachões com um barulhinho de gordura fritando, e não com o fingido som límpido dessas pequenas pecinhas redondas chamadas "cd". Paulo Mendes Campos acerta na mosca: "sensibilidade". Há que ter sensibilidade para gostar de ouvir um elepê antigo, com um chiado sentimental, falando sobre as rasuras de nossa alma.
Está aqui nesse momento, perto de mim, um espécime raro: "Quadrante", volume 2, livro que reúne crônicas de Drummond, Cecília, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, etc. Data: 1963. As páginas estão tão finas, o livro tão surrado, coitadinho... Na primeira capa o nome de um dono antigo: "José Ricardo da Silveira", e o ano de aquisição: "1967". Tudo isso me dá uma certa nostalgia: sinto que cada página traz vestígios de dedos que nunca conhecerei. A letra de José Ricardo é altiva e escrita numa caneta também altiva: é possível perceber. Fico pensando como foi a leitura que ele fez desse livro, o que ele sentiu...
De cá, de 2008, como amei ler a crônica de Paulo Mendes Campos, intitulada "ABC das máquinas"! Talvez ele, José Ricardo, não teve, claro, a mesma reação minha, já que de 1967 para cá as muitas mudanças são trazidas pelas máquinas. Paulo Mendes Campos enumera várias, e a primeira é "Automóvel - o dono do homem." "Automóvel", ninguém chama, hoje, "carro" de automóvel, o que é uma pena. "Carro" é por demais prático, por demais seco, não tem melodia, ao contrário de au-to-mó-vel, palavra deliciosa para falar. E cantar.
Há de saber que Paulo Mendes Campos não gostava de máquinas, como a maioria dos escritores. Mas ele livra uma de sua antipatia: a geladeira. Considerava que a geladeira trazia "um ar manso e repousante de uma tia gorda, pronta a fazer-nos um obséquio." "Obséquio" - outra palavra que desapareceu no tempo. Uma pena. "Obséquio" soa por demais gentil, mas nossos ouvidos, coitados, foram condenados a não mais escutar essa tão digna palavra.
Outra máquina que amei ver no abecê do cronista: "Vitrola". Diz ele: "Nunca vi uma vitrola moderna funcionando perfeitamente. São muito aperfeiçoadas, muito sensíveis. Do mesmo modo, o elepê que se preze sempre faz muito barulho. Sensibilidade."
Ah, eis o ponto que mais gosto, já que nunca fui com a cara do cedê. Sempre gostei das músicas trazidas pelos bolachões com um barulhinho de gordura fritando, e não com o fingido som límpido dessas pequenas pecinhas redondas chamadas "cd". Paulo Mendes Campos acerta na mosca: "sensibilidade". Há que ter sensibilidade para gostar de ouvir um elepê antigo, com um chiado sentimental, falando sobre as rasuras de nossa alma.
domingo, 4 de maio de 2008
Das coisas infindas
Hoje falta-me delicadeza para me envolver com o nome que tenho, para ouvir você falar, para relembrar os passados. Falta-me delicadeza para finalmente sentir a textura do domingo. A criança que guardo em mim, intacta, hoje está enfurecida. Cadê minha amiga Sílvia, para eu descontar aquele cascudo? Cadê minha irmã, oh, irmã da onça, que me fazia pagar os piores micos no jogo de baleado? Fazendo o quê? Ora, ora, fazendo com que eu não fosse ninguém: eu corria, corria, sem saber que ela já tinha armado com todos para eu ser "café-com-leite", "carta branca", ou seja, o zero, a invisível, a fantasminha, aquela que ninguém baleava, mas que corria de um lado para outro achando que estava na brincadeira. Ah, a própria Macabéa! Mas agora quero descontar. Preparem para mim uma roupa de bronze e deixem aqui na portaria do edifício onde moro. Deixem também um facão, daquele que eu tinha na adolescência dentro da imaginação, e que cortava pescoço de gente que tinha prosa ruim. Não se esqueçam, façam essa fantasia para mim: de mulher vestida de bronze, com um facão na mão. Quando chegar a noitinha, voltarei para as ruas de onde vim: enfurecida, cortando nuvens, ventos pelos jardins, como uma dura justiceira das coisas infindas
sexta-feira, 2 de maio de 2008
Essa chuva silenciosa
As Elegias de Duíno são a melhor companhia para esses domingos prolongados. Pego na estante a edição bilíngüe que comprei há poucos dias e me deito, em meio a chuva, para encontrar Rilke. Saio desse mundo e encontro outro. Cheio de anjos e palavras imateriais, sugerindo orações caindo em meu espírito...
TODO ANJO É TERRÍVEL. No entanto, ai de mim, eu vos invoco,
pássaros quase mortais da alma, sabendo quem sois.
... Eis o início da Segunda Elegia. A chuva, uivando com o vento lá fora, ensaia um coro também terrível, que escuto como se de tudo eu já soubesse...
O sentir em nós, ai, é o dissipar-se -
exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência
nos desvanecemos. (...)
A transitoriedade do meu rosto se deixa mostrar na vidraça coberta de pingos de chuva. Vejo, nesse reflexo, um rosto que não é mais meu... Depois me lembro dos mais belos rostos que já vi, e que um dia ganharam novas formas...
(...) Inutilmente procuram nos reter.
Evolamos. E aqueles que são belos, oh, quem os
deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto
e se dissipa. Tal o orvalho da manhã
e o calor do alimento, o que é nosso
flutua e desaparece. (...)
Rilke nos diz sobre algo que vemos, mas que de nada sabemos: tudo nos é ocultado. Somos espectros de nós mesmos, passando dia após dia, indo embora sem nada entender.
Se o soubessem, os Amantes diriam
estranhas coisas no ar noturno. No entanto, parece
que tudo nos oculta. Olhai, as árvores 'são'; as casas
que habitamos, resistem. Somente nós passamos,
permuta aérea, em face de tudo. E tudo conspira
para que silenciemos: o pudor, ou
quem sabe que indizível esperança.
Ah, Rilke, nada sabemos, de verdade. Nem sobre o que vemos, ou o que sequer intuímos.
O que vejo e sinto hoje é apenas essa chuva. Essa chuva em mim. Essa chuva silenciosa.
TODO ANJO É TERRÍVEL. No entanto, ai de mim, eu vos invoco,
pássaros quase mortais da alma, sabendo quem sois.
... Eis o início da Segunda Elegia. A chuva, uivando com o vento lá fora, ensaia um coro também terrível, que escuto como se de tudo eu já soubesse...
O sentir em nós, ai, é o dissipar-se -
exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência
nos desvanecemos. (...)
A transitoriedade do meu rosto se deixa mostrar na vidraça coberta de pingos de chuva. Vejo, nesse reflexo, um rosto que não é mais meu... Depois me lembro dos mais belos rostos que já vi, e que um dia ganharam novas formas...
(...) Inutilmente procuram nos reter.
Evolamos. E aqueles que são belos, oh, quem os
deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto
e se dissipa. Tal o orvalho da manhã
e o calor do alimento, o que é nosso
flutua e desaparece. (...)
Rilke nos diz sobre algo que vemos, mas que de nada sabemos: tudo nos é ocultado. Somos espectros de nós mesmos, passando dia após dia, indo embora sem nada entender.
Se o soubessem, os Amantes diriam
estranhas coisas no ar noturno. No entanto, parece
que tudo nos oculta. Olhai, as árvores 'são'; as casas
que habitamos, resistem. Somente nós passamos,
permuta aérea, em face de tudo. E tudo conspira
para que silenciemos: o pudor, ou
quem sabe que indizível esperança.
Ah, Rilke, nada sabemos, de verdade. Nem sobre o que vemos, ou o que sequer intuímos.
O que vejo e sinto hoje é apenas essa chuva. Essa chuva em mim. Essa chuva silenciosa.
quinta-feira, 1 de maio de 2008
Imagens
Porta e janela estavam sempre de frente para a rua e dentro de casa. Ou melhor, da sala da casa via-se, com a porta e a janela abertas, o mundo todo, as pessoas passando, a chuva caindo, e, ainda mais, as mangueiras da casa paroquial. Era assim, como chamavam antigamente: casa-de-porta-e-janela. Na janela eu me apoiava para timidamente saber o que se passava na rua: quando chovia, uma ou duas pessoas saltando as poças d'água, com um guarda-chuva na mão; um carro azul, todo molhado, indo para a praça principal; um som de Waldick Soriano saindo de algum outro local, bem perto... Era assim. E porta e janela tinham trancas, pesadas trancas. Firmes. Quando faltava luz e chovia muito, fechávamos tudo. E ficávamos, todos mudos no sofá, iluminados por um candeeiro no corredor. Ninguém conversava. Mãe proibia, por causa dos relâmpagos. Ela saía cobrindo todos os espelhos da casa. Por causa dos relâmpagos.
No outro dia, chuva que passa, tanajuras na calçada. E muitas borboletas. Amarelas, entremeadas de cinza. Pétalas perdidas. Da janela eu avistava todas elas. Com a porta fechada, eu nem imaginava como seria bom tê-las deixado entrar, para sempre, dentro de casa.
No outro dia, chuva que passa, tanajuras na calçada. E muitas borboletas. Amarelas, entremeadas de cinza. Pétalas perdidas. Da janela eu avistava todas elas. Com a porta fechada, eu nem imaginava como seria bom tê-las deixado entrar, para sempre, dentro de casa.
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