terça-feira, 20 de maio de 2008

Álbum de retratos

Foram tantos anos, tantas noites dormidas de mãos dadas, tantos silêncios compartilhados, tantas infâncias revividas. Lembro daquela vez, em Recife, quando juntos comprávamos móveis usados para o nosso quarto na república de estudantes. Compramos uma estante e uma cômoda. Você me levava para a universidade, cuidava de mim como se eu fosse sua filha, sua irmã que convalescia. A gente ia para Olinda e a viagem era tão comprida: dava um sono... eu dormia no seu ombro. Você nunca gostou de conversar antes de dormir, e eu nunca gostei de conversar ao acordar. Tínhamos horários diferenciados, mas você sempre tentava se ajustar aos meus, mesmo morrendo de sono. Esteve comigo em todos os momentos: até quando fomos levar mãe para fazer aquele tratamento dentário e perdemos o dia inteiro esperando pelo dentista. Ah, você se lembra daquele albergue na Boa Viagem? Era época de copa do mundo, você acordava cedo e ia comprar o meu café na padaria; depois descíamos, chovia muito, e aqueles estranhos todos na sala assistindo aos jogos. Fazia frio. Você me abraçava, me esquentava. Eu estava tão frágil, você me amparava. Você cuidava de mim como se cuida de um passarinho quase morto... com uma ternura repleta de esperanças; com o zelo de quem cola uma porcelana quebrada, nem tão bonita assim, nem tão preciosa assim. Foram muitos anos. Nós dois nem sabemos quantos. Dormindo e acordando juntos, com direito a todo inescapável ramerrão dos casamentos. Nas fotografias um dia saberão disso tudo; um dia os filhos que não tivemos irão ver todos os momentos que inventamos, em Recife e em outros mundos.

6 comentários:

Anônimo disse...

A beleza está em toda parte, mesmo quando um sonho acaba. Muito bonito, muito terno. Abraços, (carlos)

Anônimo disse...

Lindo.

Anônimo disse...

Feliz daquele que compartilha estar ao lado da aeronauta.
Um prêmio: "o zelo de quem cola uma porcelana quebrada"...

Carlos Rafael

Anônimo disse...

lindo e simplorio saudosismo

Camila... disse...

Oi... Cheguei aqui pela Clarice Lispector e sua mágica pergunta "Eu gosto tanto de parafruso e prego, e o senhor?". Gostei do pouco que li. Pretendo voltar. :))

Abraço

Anônimo disse...

texto de saudade e busca e perdas