domingo, 30 de novembro de 2008
De todas as verdades
Cresci ouvindo mãe contar, aos risos, que tinha me achado no areão quente.
Em razão disso, desde pequena me aprumei numa tarefa complicada: achar vestígios de minha mãe biológica. Fuçava tudo em casa. Depois do almoço, quando mãe saía pra lavar pratos no rio, eu aproveitava e ia no guarda-roupa dela revirar sua bolsa, seus papéis, o bolso de seus vestidos. E nada. Todas as tardes era essa maratona. Fazia tudo escondido, e com uma fé forte e decidida: um dia descobriria minhas origens. E foi o que aconteceu numa tarde. Mexendo nuns papéis que pai guardava na sua maleta, encontrei! Zuleica, era o nome dela! Saí gritando pela casa, achei, achei! O papel balançava nas minhas mãos como a maior descoberta de minha vida.
Com os gritos todo mundo veio ver o que acontecia: pai pegou o papel e riu, riu, riu. Mãe também. Por que riam tanto? Oh, Zuleica era apenas uma amiga que deu entrada numa aposentadoria e pai tentava ajudá-la nisso. Foi o que eles disseram. E continuaram rindo. E aí mãe mais ratificou que me achou mesmo no areão quente. E riu, riu, riu, quase se engasgando. Eu, perplexa, senti meu couro das costas arder. Arde até hoje.
Imagem: www.flick.com
sábado, 29 de novembro de 2008
Caminhante do deserto
III
Me diga: a rosa está nua
ou só tem esse vestido?
Por que as árvores escondem
o esplendor de suas raízes?
Quem ouve os remorsos
do automóvel criminoso?
Há algo mais triste no mundo
que um trem imóvel na chuva?
Versos maravilhosos, entre muitos, do livro mais lindo de Pablo Neruda: "Livro das Perguntas". Tenho essa edição que está aí ao lado. Mas hoje, passeando pelo sebo, encontrei um exemplar muito interessante, numa outra edição. Por que não o comprei? Pergunto-me agora, inserindo-me no clima do livro. Deixei-o lá na estante com toda a história perplexa de seu dono.
Era um livro surrado, profundamente amado, adivinho, pois que seu dono sublinhou vários poemas, as mais intrigantes perguntas do livro. Como por exemplo: "Quantas igrejas tem o céu?" Ou "Se matei e não me dei conta/ a quem perguntar a hora?"
Na folha de rosto, lia-se a seguinte dedicatória, escrita numa caneta azul:
A Jorginho
Do sempre lembrado
amigo
Alberto
Em 2/2/82
Embaixo dessa dedicatória, o próprio Jorginho escreveu:
Assim se passaram dez anos.
Que amigo porra nenhuma. Mostrou-se ser um falso, um hipócrita, um verdadeiro "mau caráter, um perfeito 'filho da puta'.
Va de retro satanás
Jorge (dez anos depois).
Intrigante, pois Jorge (ou melhor, Jorginho) sublinhou a palavra 'amigo' que o outro escreveu, talvez como escárnio, além de escrever em caixa alta o Assim se passaram dez anos , sublinhando, a seguir, a palavra falso. Nota-se que escreveu tudo isso com força, quase furando o papel, tamanha raiva, como se cortasse o outro com uma faca.
Mesmo amando o livro de Neruda, Jorge não hesitou em deixá-lo no sebo, escrevendo uma vingança pueril e dolorosa. Passaram-se dez anos, enfim, para ele se perguntar finalmente, assim como fez Neruda: "E por que o sol é tão mau amigo/ do caminhante do deserto?"
A legião
Hoje acordei pensando seriamente nessa que sou e que ocupa o lugar da outra, da aeronauta. Gostaria tanto de ser somente Aeronauta. Não sou. Essa legião que me acompanha, que diz ser eu, é, no final das contas, algo em estado amorfo. Resumindo: um monte de gente besta, que sofre por tudo, que perde noites por uma palavra mal proferida, que se dá ao mundo de corpo inteiro e recebe de volta uma lufada de redemoinho com tudo que é coisa que não presta: lata velha, papel sujo de jornal, imundícies de toda a espécie.
Aeronauta não: Aeronauta é amada, muito amada; sinto isso pelos comentários que aqui leio. Como invejo Aeronauta! Ninguém vê seu rosto, pois que é nuvem. Mesmo chorando, há quem goste dela. É tanto afago, tanto abraço, tanto beijo! Enquanto que a legião que eu sou luta com faca e facão, do lado de cá, contra a mais dura das solidões.
Imagem: "Las sombras y tú". In: www.flick.com
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Mosquitinho
Existir é ter um pacto com as coisas práticas: e esse é o negócio chato de estar viva. Por exemplo, escrever aqui não é algo que pertence ao rol das coisas práticas: por isso, ultimamente, ando ausente. Tenho carteira de identidade, cpf e endereço no mundo; então o mundo me chama aos gritos para que eu vá fazer coisas práticas, responder por tal identidade, me movimentar de banco em banco, de fila em fila, de ônibus em ônibus. Pareço nos últimos dias um mosquitinho trabalhador e entediante. Um mosquitinho cansado e sem poesia. Um mosquitinho sem grandes serventias no ar. Pois que o ar é destinado ao devaneio, aos vôos de pluma e ave. No ar, os mosquitinhos são meramente seres burocráticos.
Imagem: www.flickr.com
domingo, 23 de novembro de 2008
Retrospectiva: Itinerário das volúpias
Quando sumo, não busco estrelas. Ganho a noite inteira, no escuro. Vou de déu em déu, em todas as partes do mundo em que habitam minhas memórias. Me vejo pequena, aos dois anos, enfiando o pé num fole com o prego solto e o sangue descendo. Não sabem o que é fole? Um troço que esquenta ferro de passar roupa. Vejo também, e muito, um terreiro longo em frente à nossa casa e eu, ainda aos dois anos, brincando de lá pra cá com uma peneira de catar feijão entre as pernas. E uma sensação gostosa...! Nem sabia o que era aquilo, mas gostava tanto! Pressentia, sem saber direito, que tudo era volúpia. E que o mundo era aberto, o terreiro bastante amplo, a ponto de eu poder dar nele quantas voltas quisesse, e a qualquer hora do dia, com a peneira entre as pernas. Oh, o mundo!, cheio de brincadeiras.
Continuando de déu em déu, bato na porta de uma cena antiga: ainda aos dois anos, fazendo cocô no fundo do quintal. Chega perto de mim um pintinho e também faz cocô. Pergunto: "Tu também está com dor de barriga, pintinho?"
No mundo tudo é a mesma dor, o mesmo alívio; parece mesmo que eu já sabia de algumas coisas.
De algumas coisas...
Vindo para a cidade, deixando a roça em cima de um caminhão de mudanças... Eu e minha irmã vestidas de macaquinhos pretos de bolinhas brancas. A cena é minha avó descendo a ladeira de sua casa para se despedir de nós. Tinha três pra quatro anos e olhava bem meu berço indo em cima do caminhão. Chegando na cidade, a casa numa ruazinha pequena, apertada, casa de três grandes janelas, piso de tijolos. Mãe nos ensinando a escovar os dentes, depois de todas as refeições, na porta da cozinha com um copo na mão. Nesse quintal tinha uma pedra grande que leva a lembrança da primeira vez que chupei uma bala. Bala de mel. Eu e minha irmã estávamos sentadas nessa pedra no meio de uma tarde quando mãe fez a experiência conosco: primeira bala. Dividiu no meio para evitar possíveis cáries. Fiquei chupando aquela bala devagar, mas tão devagar que dura até hoje na minha boca. Sinto o gosto de mel no finalzinho, ele se diluindo, e nunca desaparecendo por completo.
Depois veio a hepatite. Muitos mimos, muito suco de lima, muito afeto. Todo mundo com medo de que eu morresse; minha irmã me deu seu copinho de alumínio preferido, mãe me enchia de cuidados e pai... Não me lembro, sei que ele me levava, junto com mãe, para os médicos. Fui até Salvador, vejam só. Três meses de recolhimento em casa, brincando com zilhões de caixas de remédio. Achava elas bonitas e fazia uma grande coleção. Senti que minha irmã e amigas tinham inveja de meu estado, as regalias eram muitas, os dengos eram demais. Foi nessa época que virei "manteiga derretida", apelidozinho miserável que os vizinhos da rua colocaram em mim. Chorar era prazeroso, era bom. Eu estava muito dengosa, mãe e pai diziam.
Aos sete anos descobri que olhar pai tomar banho nu, debaixo da caixa d'água, era a melhor atração do mundo. Via os segredos do seu corpo e contava pra todos que iam lá em casa: seus amigos, seus compadres, seus afilhados. Eu ria, ria, ria, contava detalhe por detalhe. Ah, como era bom ver coisas.
Mostrar coisas também era bom. E como já escrevi aqui, aos sete anos mostrava minha calcinha cor de rosa para Eugênio, um meninão bobo de quinze anos, e sua família na hora do jantar, todas as noites, sem interrupção. Era tão bom me mostrar. Adorava. Principalmente porque Eugênio morria de vergonha e todos os espectadores riam, riam, riam. Eu era o grande centro das atenções e meu corpo se firmava no mundo. Meu corpo.
Imagem: www.flickr.com
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
Um poema
ACALANTO
Não tenhas medo. Cedo ou tarde
A noite virá ao nosso encontro.
E sem espantos te aguardarei sorrindo
Como se estivesses em outro mundo.
Te aquieta. Não te preocupes.
As fadas dormem, por enquanto.
E os mantras que agora canto
São para ouvir o teu sono imenso.
Mas chegará a noite, eu te garanto.
E te acalentarei a contento:
No teu peito a minha alma nua
Voará inteiramente.
Imagem: irreal.blog
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
O divã, mais uma vez
Tinha sete pra oito anos e uma primeira amiga: Sílvia. A gente ia junto para a escola. Morávamos na mesma rua. A escola era um pouco longe e, quando chegavámos na sede dos escoteiros, metade do caminho, eu lhe dizia: Vamos voltar? O sol está muito quente! Logo ela que não gostava de estudos e afins, me incentivava pra seguirmos adiante. Vivíamos sempre juntas, a despeito de todo sofrimento que ela me causava. Como por exemplo, me obrigava a pegar merenda pra ela depois que se empanzinava, me dava cascudos, e me deixava de lado quando conhecia outra amiga. Essa é a parte que mais dói na lembrança. Ela havia conhecido uma menininha riquinha e metida a besta, de nome Livinha. Até o nome era nojentinho. Quando essa dita cuja chegava, ela simplesmente me deixava de lado. Fingia nunca ter me conhecido. Entrava lá pra sua casa, fechava a porta e me deixava olhando a rua. Ia brincar com os brinquedos ricos da outra. Eu, com a cara na rua, como disse, voltava pra minha porta. Ficava lá sentada. Quando a outra ia embora, a sem-vergonha fazia um aceno pra mim com as mãos abrindo e fechando. O pior de tudo é que a sem-vergonha que era eu, retornava. Voltávamos a brincar como se nada tivesse acontecido. Se Livinha voltasse, a cena se repetiria: ela entrava com a menina, fechava a porta na minha cara, e depois que a outra ia embora me chamava com as mãos abrindo e fechando. Ô sujeita ruim! Sinto raiva quando me lembro disso.
Mas por que contar essa história? Porque sempre me considerei descartável com relação à amizade. O vácuo vem da infância. Tenho amigos, mas sempre acho que eles estão brincando com Livinha.
Mas por que contar essa história? Porque sempre me considerei descartável com relação à amizade. O vácuo vem da infância. Tenho amigos, mas sempre acho que eles estão brincando com Livinha.
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
Os amigos
domingo, 16 de novembro de 2008
Errata
Não, crianças, fiquem tranqüilas, nunca irei aparecer pra vocês. Menti pra'quele amigo que ficou acreditando que eu era Aeronauta. E os olhos dele brilharam diante de minha mentira. Posso me materializar em pessoas, entendem? Aí eu me materializei naquela professora linguaruda. Sou apenas neblina, coisa sem forma humana. Não existo sequer em mim. Por isso essa inadequação, essa vontade de ficar parada, girando o mundo; desenhando meu próprio vulto.
Imagem: www.flick.com
Encontro
Estava numa semana acadêmica e, numa cheia sala de professores, eis que aparece um amigo das letras. Ele é professor e poeta, tem um blogue, me conhece e conhece Aeronauta. Conhece as duas, sem saber que uma habita o corpo da outra. (Deixa sempre muitos comentários por aqui.) Começamos a conversar e eu falei que leio muito seu blogue. Senti um certo ar de descrença no seu rosto, pois que o nome que me deram nunca comentou lá, apenas Aeronauta. Conversamos, conversamos e, de repente, num susto, falei:
- Eu sou a Aeronauta.
Nunca saberei contar o que li nos olhos e no sorriso dele. Vi que ficou extremamente surpreso e que apenas repetia: Quer dizer que você é a Aeronauta? E eu: Sim. Esse "sim" saiu um pouco confuso: nesse momento nem eu mesma sabia se o que dizia era verdade.
O que apenas sei é que esse encontro me deixou algo inesquecível: a imagem do olhar dele diante de minha revelação. Nunca saberei descrever aquele olhar, apenas percebi que tinha um certo tom de luminosidade.
Imagem: "Encontro", fotografia de Fábio Pinheiro. Em: www.flickr.com
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
Amor e leveza
Eis a imagem da felicidade, da alegria, do que há de profundamente lírico na vida. Essa é a cena escolhida para dizer do lado mais macio de minha alma. Do lado do amor. Do bucólico. Da ternura. Do que se desarma. Do que ri. Minhas duas crianças eternas: mãe e meu sobrinho. As flores e a calçada são da casa de minha tia, irmã de mãe. Eu não estava presente nessa visita, mas minha irmã fez o registro fotográfico. De cá vejo essa fotografia como a composição perfeita do que busco como ideal de amor e leveza; de beleza e harmonia; como um poema ceciliano.
*Fotografia de Menina da Ilha, em junho de 2008.
domingo, 9 de novembro de 2008
Histórias Do Lar
A empregada de minha irmã chegou anteontem aqui em casa com uma encomenda. Foi entrando e eu a atalhei com a seguinte conversa:
- Sicrana, você quer quanto pra lavar aquela pia de pratos?
- Oh, dona Fulana, não cobro nada não.
- Não, Sicrana, sou justa, não gosto de explorar as pessoas. Quanto?
- Cinco reais, dona Fulana.
Pois é. Na pia constavam: três xícaras, três pratinhos pequenos, um prato grande e alguns talheres. Caro? Também achei. Mas o mundo é dos exploradores e não dos explorados preguiçosos.
Hoje quem chegou aqui foi mãe. Veio, como todos os anos, passar meu aniversário comigo. Pedi pra ela a clemência, a caridade cristã de lavar aqueles pratinhos do café pra mim, pois que vou nascer amanhã (vide inferno astral) e não consigo fazer nada do lar. Achei tão engraçado ela dizer, depois que terminou a tarefa:
- Menina, seu coador está fracassado!
E eu, sempre dramática:
- Resta saber o que é que não está fracassado nessa casa!
Esse detalhe do coador me lembrou uma história antiga. Fui comemorar o reveillon de 1999 na minha terra e sem mãe lá pra cuidar de mim. Ela resolveu passar as festas do fim de ano com minha irmã, aqui em Salvador. Levei para as Lavras, a tiracolo, dois amigos que gostam de fazer turismo. No primeiro dia, depois de andarmos o dia inteiro pelas cachoeiras, chegamos cansados e doidos por um café. Procurei o coador. Mãe tem manias de esconder coisas quando viaja. Nunca entendi o motivo. Pois dessa vez ela escondeu bem-escondido o coador. Procurei, procurei e nada!! O pior é que o telefone estava quebrado. Aí me lembrei de um cartão telefônico que eu tinha... com dez unidades apenas. Fui correndo para o orelhão da praça. Era um domingo. A praça estava cheia.
Disquei e ela atendeu.
- Mãe, rápido, tenho apenas dez unidades. Responde ligeiro: onde está o coador?
E mãe, com a voz mais mansa do mundo:
- Ô menina, por que você não ligou a cobrar?
- Responde ligeiro, mãe, as unidades estão acabando, onde está o coador?
- Por que essa agonia toda? Você está ligando de onde?
- Do orelhão, mãe!!! Mas onde está o coador?
- Do orelhão de que lugar?
- Ai, Senhor! Só tem uma unidade! ONDE ESTÁ O COADOR???, gritei como louca.
Só deu tempo dela dizer:
- Dentro da panela...
Aí foi-se a última unidade.
O povo todo da praça acompanhava a história e se acabava de rir. Teve até um senhor de paletó que me perguntou se eu não queria aproveitar tal "mote" pra fazer uma propaganda da telemar.
Mas, a pergunta final: E o coador?
Não achei. Eram muitas panelas pra encontrar um único coador escondido; ou melhor, fracassado.
Imagem: www.flickr.com. Fotografia de Liráucio
sábado, 8 de novembro de 2008
Jogando cartas
Vou com mais regularidade à taróloga que ao médico. Digo "a taróloga" porque tenho uma que joga pra mim há mais de quatro anos. Com ela não é esse negócio de jogar tarô como quem abre um baralho comum pra jogar burro. Não, ela é uma profunda conhecedora das cartas e, óbvio, do ser humano. O que acontece numa jogada, que dura aproximadamente duas a três horas (dependendo de suas necessidades), é um bate-papo diante de um tarô que envolve mesmo, de fato, o autoconhecimento. Não é mera adivinhação. É algo mais próximo à intuição, conhecimento dos símbolos do mundo, percepção de todos os abismos e de todos os segredos que andam pelo ar. Funciona muito mais como terapia, e eu sempre volto pra casa com mais clarividência do meu mundinho interior problemático. Não é aquela coisa de sair como saiu Macabéa da casa da cartomante achando que vai encontrar o príncipe encantado e, conseqüentemente, morrer atropelada. Não, saio de lá sentindo as grandes verdades das cartas (e que são as minhas mais cruéis e vitais verdades), que não mentem para me comprar com uma felicidadezinha rasteira e momentânea. Muito pelo contrário: saio querendo estar consciente de tentar ser eu, euzinha, essa coisa que veio ao mundo não sei pra quê e que come depressa, empurrando tudo barriga adentro, sem sentir o gosto da comida. Não é à toa que a maioria dos viventes morre sem ter consciência da sensação de como é mesmo o vento bater na pele.
Todo esse preâmbulo é pra dizer que HOJE eu fui à taróloga. Ela mora longe. Fico mais de quarenta e cinco minutos dentro do ônibus. Depois atravesso a rua debaixo do sol quente, vou tentando encontrar uma sombra aqui e acolá, andando uns sete minutos até chegar à sua casa. O que mais me emociona no tarô é a confabulação das cartas retiradas: todas elas conversam entre si e dizem de nossa alma. São muitos símbolos e verdades; nunca absolutas, obviamente.
Essas cartas todas são muito minhas conhecidas. Com relação ao amor, "Os Enamorados" me definem: há sempre um triângulo amoroso na minha vida. A minha carta de nascença é "A justiça": sou dura comigo tal qual um magistrado arrogante e um feitor cruel. Como meu aniversário está próximo, estou saindo (graças!) do "Enforcado" (ou "O Dependurado") que foi a digníssima carta que me acompanhou todo esse ano; acompanhou o meu sofrimento, digo, enforcamento, ou "dependuramento". Mas está chegando uma outra cartinha mais amena, "A Morte": hora de jogar na fogueira tudo que já morreu, podendo finalmente renascer em paz, porque a Temperança me espera no ano que vem.
Desde criança me interesso por esses assuntos. Lá na minha terra quando uma pessoa quer ir ao pai-de-santo diz que vai "abrir revista". Já abri muita revista por lá; mas depois que descobri o tarô me tornei alguém mais consciente de minha própria existência. Descobrir-se gente, com nome, carteira de identidade, endereço no mundo e coisa e tal é coisa de assombrar. Experimentem se descobrir apenas nesses dados tão simples e perceberão como o negócio é de estarrecer.
*Imagem: www.flickr.com
sexta-feira, 7 de novembro de 2008
Arrebatamentos
Desde ontem que sofro e sou feliz, tudo na mesma medida; desde ontem faço tour pelas livrarias de Salvador, que não são muitas. E sofri muito e fiquei muito sorridente. Isso porque ocorreram vários arrebatamentos, e arrebatamentos significam compras, e compras significam dinheiro e dinheiro significa gasto, e gasto significa... Ah, deixo a enumeração por conta do ginge da tpm. Só sei é que, tendo em vista um livro ambicionado, deterioro dinheiro sem culpa, sem traumas. Mesmo quando vejo a cara de exploração dos donos de sebos. Ah, como odeio ser explorada! Mas tudo bem: pra ter um livro esgotado (e desejado) passo por todo tipo de humilhação. Peço menos, faço chantagem, choro, digo que sou cliente há muito tempo, até que consigo um desconto. O pior (ou melhor) é que meu olho só bate em livros que irão me arrebatar; livros que procuro há anos, que acabei desistindo, e que, sem mais nem menos, me olham da estante me chamando.
Hoje aconteceu isso. Há muito, mas há muito tempo busco "A literatura e o mal", de Georges Bataille. Para mim que sente, profundamente e na carne, como o mal atravessa a literatura no sentido da possível redenção, não acreditei. Claro, livro esgotado. Olho a folha de rosto, está lá um papelzito amarelo com o preço: cem reais. Edição portuguesa. Abro a primeira página e leio:
(...) A literatura é o essencial, ou não é nada.(...)
Murmuro, com empolgação: A literatura é tudo!, já tomada pelo arrebatamento. Aí continuo a leitura interrompida pela alegria:
(...) O Mal - uma forma pungente do Mal - de que ela [a literatura] é a expressão, tem para nós, creio, valor soberano. Mas esta concepção não envolve a ausência da moral, exige uma "supermoral".
É isso! É isso, disse pra mim mesma, com euforia. Porém, voltei ao preço: cem reais! Pois vou me humilhar, pensei. Escolhi mais dois livros que me arrebataram e fui pedir menos para o vendedor. Resultado: tal livro de Bataille saiu por quarenta reais, depois de muito choro e argumentos.
Sair de livrarias com livros debaixo dos braços me dá a sensação de onipotência, de saber muito sobre a vida e a morte, de ter voz para o vento, que me olha de banda, e para o tempo, que me engole no relógio da sala. Mas principalmente me dá a simples certeza de poder amar tudo que existe.
*BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Lisboa: Editora Ulisseia, 1967.
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
Abelhas
Mal comparando, estou me sentindo hoje com se eu estivesse dentro de um quartinho cheio de abelhas me mordendo, tirando jatos de sangue. Que horror! Mas só assim pra explicar a reiva, a gastura que me pega nesse exato momento. Primeiro, um calor do cão; segundo, abro as janelas pra me refrescar e o vento derruba tudo quanto é papel e quadro na parede; terceiro, o computador lento; quarto, emails e mais emails pra responder e cadê coragem?; quinto, preciso ter ânimo pra viver, ficar deitada o tempo todo não dá, pois tem um monte de plano de curso pra fazer, minicurso pra preparar, ai Deus. E sexto, o último, a bendita da tpm. E aí eu me lembro de Vitalina, antiga Vitalina de minha infância. Morava na minha rua sozinha e fazia renda cantarolando na janela. Um dia resolveu, não se sabe por que, levar flores pra mortos alheios no cemitério abandonado. Na porta, quem a recebeu foi um enxame de abelhas alucinadas. As mesmas que anunciei no início desse texto. Pois bem: as abelhas pegaram Vitalina e fizeram uma miséria com ela. Resultado: só depois de muito tempo (o cemitério como disse estava abandonado) encontraram a coitada jogada no chão, sendo comida por todo tipo de abelha: furiosa, lenta, suave, zoadenta... Todo mundo credita a um milagre de Deus sua salvação. Levaram-na para o hospital, e, pelas ruas, foram cortando roupas, cabelos, que estavam empesteados de abelhas. Nunca me esqueci de uma trança dela que vi no meio da rua. E pequetita do jeito que a sortuda era, a salvação foi coisa de Deus mesmo.
Agora acho que dá pra vocês perceberem a trabulagem (essa palavra é a cara de mãe, que adora utilizá-la) que estou sentindo hoje. Não se importem não: esse blogue pra mim é divã, por isso é que não mostro a cara.
Imagem: www.imagens.de
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
Ontem, no almoço
Nosso almoço ontem foi engraçado. Por conhecer minha irmã há anos, já imaginava onde e como seria, e como transcorreria. Ela é fidelíssima às coisas que gosta. Fomos almoçar no mesmo restaurante do shopping barra (só não vou falar o nome pra não fazer propaganda grátis), depois tomamos sorvete na perini (epa, não é propaganda não, e eu não tomei sorvete dessa vez), depois passeamos um pouco, e depois ela me deixou em casa para poder tirar seu sono da tarde em paz. Quem estava no almoço? Claro, os mesmos: eu, ela, mãe e meu sobrinho de onze anos. Como este se comportou? Carinhosamente, como sempre, e falante também como sempre. Ele começa a falar na hora que me vê e, sem interrupções, só pára na hora de me deixar. Mãe no mundo da lua, olhando para o oriente, e comendo muito, que ela não é besta. Acho que da turma toda quem é mais besta sou eu, que não vejo lá grandes graças em grandes pratos. E ontem o negócio foi brabo: comi mais da metade de um prato que alimentaria um gigante. Até hoje estou com a barriga nos mundos. E olhe que nem tomei sorvete! Claro, a turma toda tomou sorvetão depois, mesmo estrebuchando e virando os olhos. Minha irmã ratificou que estava se despedindo de comida, pois hoje ia começar o regime. Mãe não falou nada, e meu sobrinho também não: tomaram sorvete se regalando, sem nenhuma culpa. Ele, sem parar de falar um só segundo. Claro, coisas instrutivas, afinal é um leitor de enciclopédia e de tudo quanto é letra que vê pela frente: seja em revista, seja em livro, seja em computador. No meio do almoço, minha irmã disse: Deus me concede tudo que peço. E eu: O quê? Ela: Pedi a Deus pra esse menino puxar duas coisas do pai: a inteligência e as orelhas. Aí me lembrei do trauma de suas orelhas de abano, que ela sempre esconde com os cabelos. Mãe só ria, entre uma garfada e outra, comendo devagarzinho, coisa de seu feitio, sem nenhuma presa. Saímos de lá e meu sobrinho no trelelê. Mil perguntas do mundo para mim que não acertava nada. Quem inventou o fusca, quem foi não-sei-quem, o que aconteceu em mil novecentos e não sei quantos, e lá vai. Eu não sabia, e ele dava a resposta com um riso de felicidade, como a atestar minha bendita ignorância e sua linda sabedoria. Muito fofo! Na vinda, enquanto esperávamos sua mãe passar no banco, ele se sentou no meu colo e confidenciou: Titia, acho dar flores de presente algo tão romântico! E eu: Também acho. Ele: Mamãe me disse que só quer ganhar flores com um outro presente acompanhando! E eu: Esse é o jeito dela, meu amor. Ele: É, ela disse que flor murcha logo e o presente acompanhante não. Adorei, me acabei de rir. Essa é minha irmã!
terça-feira, 4 de novembro de 2008
Dia de minha irmã
Hoje, como vocês todos já sabem, é o aniversário DELA. Dela quem? De minha irmã, ora! Ou vocês se esqueceram? Ah, se esqueceram não vai ter perdão; é capaz de ela dar muito murro nas costas e beliscão nos braços de todos vocês. E olhem que virtualmente os beliscões doem mais.
Meninos, acordei cedo pra cumprir o ritual: ligar pra ela! Nesse dia 04, a digníssima acorda cedo, se arruma toda e se senta no sofá esperando as ligações. Ai de um desavisado que atender ao telefone antes. Foi o que aconteceu hoje pela manhã. Mãe correu pra atender e eu só ouvi de cá: Mãe, hoje é meu aniversário, eu é que atendo! Se eu sei que é pra mim! Convencida, como sempre. Liguei e aquele lero lero: felicidades, feliz aniversário, blá blá blá. Ela toda feliz. Vai passar umas onze horas aqui pra almoçarmos juntas.
Olho para as fotos aí em cima: como esquecer aqueles dias? Nas duas eu estou com ela, só que buscando hoje tais fotografias para postá-las vi que eu tinha desaparecido. Na primeira foto, dia 04, ela comemorava os 13 anos! Fomos para a beira do rio. Clique! Dessa vez pai acertou!
Na outra fotografia, dia 04 também, tiramos no quintal de lá de casa. Ela completava 18 anos! Estão vendo a lordeza? Não foi besta e mostrou logo o sapato, de última moda! Essa foi a vestimenta da manhã. Contratou uma amiga nossa e tirou foto na cidade inteira. Quando não tinha mais lugar, tirou uma dentro do fusca (que hoje está escondidíssima).
Lembro de todas as nossas brigas. Uma, inesquecível, foi quando mãe mandou ela pentear meu cabelo e a cara de pau achou de dar vários nós na minha trança. Mas não lembro de uma briga no dia dos nossos aniversários. Nesse dia o sol é sempre forte, e percebemos o grande presente que nos foi dado: de não sermos "filha única" e, assim, termos alguém com quem podemos rir de nossas histórias conjugadas.
Parabéns, fidalga irmã!
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
O retratista amador
Pai comprou uma máquina de tirar retrato e passava o dia inteirinho procurando paisagem. Só que ele era muito nervoso: com as mãos tremendo, pegava na máquina, mirava e não acertava o alvo. Foi por isso que na festa de São João cortou minha cabeça e a cabeça de meu par, além de cortar as pernas de outros colegas que dançavam "rancheirinha".
Eis a razão de eu não estar "de corpo presente" na foto aí em cima. Da esquerda para a direita: minha irmã, Aninha, Gal e Fátima. Cadê eu? Resposta: Nos pés das meninas. Segundo pai, era a localização perfeita para que eu pudesse sair no retrato.
O pierrô suburbano
Adoro ler entrevistas concedidas por Nelson Rodrigues. Há algo nele extremamente visceral, romântico, terrível. Suas respostas não são nunca cor-de-rosa, são sempre trágicas. E eu me identifico bastante com a tragédia, com o moço ou a moça que estão lá em cima do décimo andar pula não pula; com a mulher que "ateou fogo às vestes" (acho ótimo esse clichê antigo); com aquel'outro, Torquato Neto, que fechou a porta do banheiro, abriu o gás, deixando o famoso bilhete: "Pra mim, chega!"
Se sou romântica? Miseravelmente romântica. Mas voltemos a Nelson. Diante daquela célebre pergunta que se faz a escritores "O que significa escrever para você"?, nosso querido dramaturgo responde: "Se eu não escrevesse, seria um desgraçado". E complementa: "A rigor, se você examinar bem, todos os meus personagens são tristes. Salvo algum esquecimento, não vejo ninguém alegre." Não há alegria na literatura, tenho a ousadia de afirmar: o que há é a alegria na descoberta de quão funda e produtiva pode ser a tristeza. Por isso é que se escreve - para não se tornar um completo desgraçado.
À pergunta final "Quem é o Nelson Rodrigues?" a resposta que me deixou pensativa durante todo o dia (e logo ontem, dia de todas as solidões reunidas na sala, sem nenhum amigo chamando à porta; sem nenhum amor querendo voltar):
O sujeito mais romântico que alguém já viu. Desde garotinho sonho com o amor eterno. Na minha infância profunda, os casais não se separavam. Havia brigas, agressões de parte a parte, insultos pesadíssimos, mas o casal não se separava. A separação era uma tragédia. Em último caso, a mulher apelava para o adultério. Sou romântico como um pierrô suburbano. (...)
(In: RODRIGUES, Nelson. Entrevista concedida a VAN STEEN, Edla. Viver e escrever. Vol.3./ 2. ed. Porto Alegre:L&PM, 2008.)
*Imagem: site www.iccacultural.com.br
domingo, 2 de novembro de 2008
Uma dama deslocada
So-li-dão. Nos finais de semana essa palavra tem ares de madame antiga, la belle époque, daquelas que bem sabiam como desmaiar (quem me lembrou esse detalhe da época dos desmaios foi Nelson Rodrigues, lido ontem). No final de semana essa palavra (So-li-dão) me lembra que estou morando na cidade grande, e que as pessoas se fecham nas suas casas verticais, adorando seus vivos, os do seu próprio sangue. Na cidade pequena não. Todos se encontram, vão para a praça falar da vida alheia com o mais doce sentimento de solidariedade. Lá seus amigos chegam, puxam o trinco da porta e vão entrando. Não precisam telefonar, porque com certeza você vai estar em casa. Se não, como disse, estará na praça. Para onde fugiria quem você procura? A cidade é pequena, com dois gritos ele lhe escutará na beira do rio e virá correndo.
Ah, por aqui o negócio é bem diferente. Por aqui a Solidão é uma dama deslocada, usando sapatos fechados em plena praia. Desmaia a cada sol na cara, a cada onda que bate em seus pés. Chora a plenos pulmões, mendigando a qualquer um que seja dois dedos de prosa, ou melhor, uma simples "conversação". Porém, em terra de axé não há lugar para remanescente da belle époque. Sai, fantasma!, gritam todos, e se enclausuram com seus vivos, em suas casas verticais, festejando o ótimo tempero do vatapá.
Ah, por aqui o negócio é bem diferente. Por aqui a Solidão é uma dama deslocada, usando sapatos fechados em plena praia. Desmaia a cada sol na cara, a cada onda que bate em seus pés. Chora a plenos pulmões, mendigando a qualquer um que seja dois dedos de prosa, ou melhor, uma simples "conversação". Porém, em terra de axé não há lugar para remanescente da belle époque. Sai, fantasma!, gritam todos, e se enclausuram com seus vivos, em suas casas verticais, festejando o ótimo tempero do vatapá.
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