Quando meu avô morreu, minha avó teve um comportamento considerado estranho, principalmente por sua cunhada, irmã de meu avô, que não gostou nem um pouco do que viu.
Era noite quando chegamos lá na roça. Eu abraçava mãe e não acreditávamos naquilo tudo: a casa cheia, uns candeeiros clareando a imensa sala, e muita gente chorando. Minha avó foi nos receber na porta, assim como ela estava fazendo com todas as pessoas que chegavam. E também repetiu o que dizia desde que ali entrou a primeira pessoa: "Parem com essa besteira de chorar, gente! Que chororô que nada! Todo mundo um dia vai morrer! Hoje foi ele, amanhã sou eu, depois serão vocês! Entrem, entrem, mas nada de choro, nada de choro!" A repetição empolgada do "entrem, entrem", fazia parecer que ela abria as portas para uma festa. Claro que achei estranho, mesmo sabendo que minha avó sempre foi tirada a engraçada, quase seca para a vida, fazendo desdém das coisas, mas naquele dia ela ultrapassava todos os limites.
Fomos para o quarto: eu, mãe, minha tia, minha prima... Mãe estava mal, chorava muito. E minha avó, depois de receber as últimas pessoas que chegavam, entrou com um rompante no quarto que estávamos e tratou logo de explicar como meu avô morreu: "Assim, ó, de repente, sem quê nem pra quê! Depois dei banho, tá lá todo limpinho, cheiroso, ninguém pode dizer que não cuidei!" Dizendo isso, foi se sentando na cama junto com a gente, sem uma lágrima no olho, numa excitação juvenil: "Deixem eu falar pra vocês o que sofri com esse véi a vida toda!" Daí abriu sua vida, contou tudo, desde o casamento até aquele dia. "Ah, minhas filhas, esse véi nunca prestou, não é porque morreu que eu não vou contar tudo". E abriu mesmo o verbo: todas as traições, os filhos que ele teve fora do casamento, as pensões para as outras que ela sempre lhe obrigou a pagar... "Na primeira traição desmanchei o jirau e nunca mais dormi com ele! E digo mais, minhas filhas: tomara que não tenha ninguém na família que puxe a este homem!"
Assim foi a noite toda: minha avó, lavando a alma, contou o que queria com muita graça, e nós não conseguimos deixar de não rir. Até mãe chegou a rir numa determinada ocasião, mesmo com o rosto inchado de chorar.
Na casa todos comentavam aquele comportamento de Dona Calu. Que coisa! Nem uma lagrimazinha! "Esse véi foi ruim demais, minhas filhas, e que Deus lhe perdoe!", ela repetia. Minha tia-avó (irmã de meu avô),diante de todo esse teatro, se sentou na cozinha e ficou lá com a cara amarrada de ressentimento.
No outro dia, bem cedo, acordamos com as ladainhas tiradas, na sala, por minha avó bastante animada. As rezas eram tristes, mas ela alteava no tom e a coisa perdia um pouco a dramaticidade. Na hora do adeus final, foi ela quem ordenou aos filhos fazerem uma fila para darem a benção ao "véi" que estava partindo. "E os netos também, têm que vir", ela gritou. Lá fui eu na fila. Minha irmã fingiu que ia, aproveitou a distração de minha avó e não foi não, se escondeu no meio do povo. E a ordem continuava: "Dêem a bênção e beijem a mão dele!" Todos obedeciam. As pessoas presentes buscavam lágrimas nos olhos dela e, nada achando, murmuravam entre si: "Como é que pode? Que velha dura é essa?"
A fila dos parentes todos se despedindo foi grande. Isso levou mais ou menos uns trinta minutos. Depois ela voltou ao comando: "Tampem o caixão, está na hora!"
Na porta, uma caminhoneta com o fundo aberto esperava. O cemitério era longe, o enterro seria acompanhado de carro. Os filhos pegaram o caixão e foram saindo, colocando-o, a seguir, na caminhoneta. Minha avó no batente da porta olhava, com o olho seco. Fecharam a caminhoneta. O motorista ligou o carro. Minha avó no batente da porta olhava para tudo aquilo, dura. Depois mexeu no lenço da cabeça e começou um choro longo, doloroso, entrecortado de soluços.
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17 comentários:
Poxa, fiquei de cara. Lindo demais! O mais belo texto que li aqui no seu blog. Parabéns!
Obrigada, Kátia. Aconteceu tudinho como aí está.
Espantoso! E tudo isso num blogue! Dá um curta-metragem espetacular. Vi o filme enquanto lia. Certa atriz assumiu D. Calu e fez do jeitinho que vc escreveu: deu show. E o final, como sempre, surpreendente como só vc sabe fazer. Parabéns é pouco. Esses textos precisam virar livro. Abr. Carlos
Carlos, obrigada por tanta gentileza.
Nauta.... Seu texto toca a nossa alma lá no fundo, como uma lembrança da infância.
G.
Sua vó lembra tanto minha babá! Essa história poderia ser dela, sabe?
Bjs
Adorei nauta uma delícia ler esse texto!
La increíble historia de la Areonauta y de su abuela de gran alma.
Seu texto é a cara do nosso interior e de suas matriarcas surpeendentes. Parabéns.
bah, encantador!!!
beijos
Eu tb vi o filme enquanto lia... imaginei a cena na casa de minha avó e o trajeto nas ruas de Penedo. Lindo, Nauta!
Agora é minha vez...dá pra atualizaR!! heheheh bjao nauta!
amei o texto..e repassei a uma colega minha que é espírita..É um texto bastante interessante..É um tipo de narração em que podemos extrair reflexões com relação a vida e a morte.O texto revela as várias facetas do ser humano.Uma delas é do fazer de conta que está tudo bem e não admitir os seus verdadeiros sentimentos.Pode ser com medo de exteriorizar o que está no fundo da alma.Estamos cansados de saber que é mais fácil dizer que odiamos do que assumir que amamos alguém.Pode se tirar também desse texto a questão de não querermos encarar a realidade.bjs.suelem
Amei o post e concordo com o Carlos Barbosa. Esses textos deveriam virar livro, filme, tudo que tem direito!
Aero... tu sabes escrever mermo, mesmo, de mesmo.
Arrasaste, essamenina.
Beijo de maria (às lágrimas)
Perfeito. Como são complexos os sentimentos humanos!
Abraços.
Belo texto. Fez-me lembrar de meu pai; parecia com esse velho... mas a morte é também redenção. E as sem-razões do amor não admitem poréns. Quando esses textos do blog virarem livro, vou fazer questão de ter o meu exemplar - autografado!
de torar, fiquei, fiquei
abs
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