sábado, 29 de novembro de 2008

Caminhante do deserto


III

Me diga: a rosa está nua
ou só tem esse vestido?

Por que as árvores escondem
o esplendor de suas raízes?

Quem ouve os remorsos
do automóvel criminoso?

Há algo mais triste no mundo
que um trem imóvel na chuva?



Versos maravilhosos, entre muitos, do livro mais lindo de Pablo Neruda: "Livro das Perguntas". Tenho essa edição que está aí ao lado. Mas hoje, passeando pelo sebo, encontrei um exemplar muito interessante, numa outra edição. Por que não o comprei? Pergunto-me agora, inserindo-me no clima do livro. Deixei-o lá na estante com toda a história perplexa de seu dono.
Era um livro surrado, profundamente amado, adivinho, pois que seu dono sublinhou vários poemas, as mais intrigantes perguntas do livro. Como por exemplo: "Quantas igrejas tem o céu?" Ou "Se matei e não me dei conta/ a quem perguntar a hora?"
Na folha de rosto, lia-se a seguinte dedicatória, escrita numa caneta azul:

A Jorginho
Do sempre lembrado
amigo
Alberto
Em 2/2/82


Embaixo dessa dedicatória, o próprio Jorginho escreveu:

Assim se passaram dez anos.
Que amigo porra nenhuma. Mostrou-se ser um falso, um hipócrita, um verdadeiro "mau caráter, um perfeito 'filho da puta'.
Va de retro satanás
Jorge (dez anos depois).


Intrigante, pois Jorge (ou melhor, Jorginho) sublinhou a palavra 'amigo' que o outro escreveu, talvez como escárnio, além de escrever em caixa alta o Assim se passaram dez anos , sublinhando, a seguir, a palavra falso. Nota-se que escreveu tudo isso com força, quase furando o papel, tamanha raiva, como se cortasse o outro com uma faca.
Mesmo amando o livro de Neruda, Jorge não hesitou em deixá-lo no sebo, escrevendo uma vingança pueril e dolorosa. Passaram-se dez anos, enfim, para ele se perguntar finalmente, assim como fez Neruda: "E por que o sol é tão mau amigo/ do caminhante do deserto?"

8 comentários:

Janaina Amado disse...

Ai meu deusinho, eu PRECISO ler este "Livro das perguntas". de preferência o exemplar que Jorginho, de raiva e desprezo, vendeu ao sebo (que sebo é este?)! Como é que eu posso adorar Neruda e, ignorante, não conhecer este livro?

Anônimo disse...

Tenho horror em pensar nos meus livros um dia no sebo. Nada semelhante a Jorginho, porém "brigo com" ou "amo as" leituras escrevendo muito em torno.

- Luli Facciolla - disse...

Nauta!
Amei o post de hoje!

Fiquei com pena do Alberto que perdeu um grande amigo... Qual terá sido o vacilo dele?

A data da entrega do livro é uma data especial, sabia?! Nascia neste dia. Será que na mesma hora em que foi escrita a dedicatória?
Ainda bem que não me vejo como na descrição do falso amigo... nem mais de 10 anos depois...

Beijos!

aeronauta disse...

Oi, Janaína, o Sebo é Brandão, mas esse livro você encontra em qualquer livraria. Saiu na coleção de bolso da L&PM.
Maria, adoro livros de sebo porque trazem essas marcas passionais.
Luli, que coincidência você ter nascido no mesmo dia!
Abraços, meninas.

Anônimo disse...

Esse livro tem uma edição recente, tradução de Ferreira Gullar, mui linda, com gravuras/ilustrações de Isidro Ferrer. Se não me engano, é um poema lançado depois que ele faleceu. Imperdível, com ou sem desilusões de Jorginho.
"Me diga, a rosa está nua ou tem apenas esse vestido?"
"É verdade que as esperanças devem regar-se com orvalho?

Anônimo disse...

Esta é A CRONISTA!
Amei!!!

Nilson disse...

Sensacional! Essa amizade desfeita, dez anos em uma página do Livro das Perguntas. Tudo muito literário mesmo. Só vc pra trazer à tona essas coisas!

sandro so disse...

Ótimo, aérea-náutica!
Beijo