terça-feira, 8 de dezembro de 2009

cumplicidade


Quer ouvir um treco assim, bem baixo astral, num feriado religioso? A humanidade é fictícia. (Acho que peguei leve demais.) Não existe a coletividade. O que existe dentro dela é o indivíduo morrendo. Uns dançando, claro, rodeados de cerveja; outros querendo morrer, outros querendo que morram todos. Tudo, portanto, é enganação: bolo festejando aniversário de casamento, casa com bibelô na porta escrito na roupa "aqui existe amor, felicidade", essas baboseiras todas. Está vendo? Ninguém dará por minha falta no mundo, ninguém. Basta eu chegar ali na cozinha, pegar aquela corda e me pendurar feito um espantalho. Ah, não quer ler texto assim? Vá pra outro blogue, a internet está cheia de felicidade; bata em outra porta. Aqui não tem jeito: você só verá carne e sangue; há algo mais visceral que sangue? Pois aqui tem, demais. Pode ter sangue alheio: é só você continuar lendo. E sabe por que estou dizendo tudo isso? Porque preciso abanar essa ferida. Não está vendo esta ferida grande aqui? Puxa vida, que miopia a sua. Aproxime-se. Chegue perto. Já tirei a campainha da casa há muito tempo, pode entrar. Está vendo agora? Ah não? É tão invisível assim? Invento tudo? Aumento tudo? Sou louca? Sou doente? Epa, moço, não vá embora não. Veja direito. Lembrei de quando mãe me dava mingau com os dedos. Não tenha nojo não. Você não comeria mingau vindo dos dedos de sua mãe? É a mesma coisa. Não há imundície, há dor. Você não quer compactuar? Quer me mandar ir tomar banho de mar, ler livro de autoajuda, fazer acupuntura ou meditar? Oh, meu querido. Quero apenas tua cumplicidade, nenhuma palavra, nenhuma. Poder trafegar contigo por essas linhas; só isso.



Imagem: "Cumplicidade", por Mário Tadeu.
(www.flickr.com)

15 comentários:

Gerana Damulakis disse...

DESBUNDANTE (desculpe, mas preciso uma palavra assim, bem forte). Um dos textos mais incríveis que li este ano.

Anônimo disse...

sem palavra. boca piu.

Bernardo Guimarães disse...

só isso? tô dentro.

M. disse...

Incrivelmente o que também estou sentindo hoje. Você, para mim, é a maior. Como eu vivo dizendo, a maior poetisa baiana da contemporaneidade. Bjs

Flamarion disse...

Eu queria ter tido uns dedos de mãe para lamber. Me sentiria mais animal, quero dizer, naturalmente mais humano.
Acho que o sofrimento é um estado de consciência (não se trata de autoajuda), e a felicidade a grande ilusão, posto que a felicidade não condiz com a realidade nossa. Basta pensar, e logo vem o sofrimento do mundo sobre nós. Talvez a morte seja realmente a eterna paz. Do nada.
Aeronauta, necessitamos de um livro seu, urgente.

Flávia Paula disse...

Cada palavra sua foi um desvendar do meu eu.. houve uma cumplicidade de sentimentos...

Kátia Borges disse...

Oi, querida, lindo texto. Volto a frequentar os blogs e, de cara, leio algo assim. Ainda bem que voltei. Um beijo

Menina da Ilha disse...

Misericórdia. O caboclo veio com gosto de gás, hem?

Moniz Fiappo disse...

Sensacional, com gosto de vida.
Mas é assim, uns dançam, outros choram e todos fingem. Mas a cumplicidade é tão importante quanto o amor que, sem ela, não existe.

Carlos Rafael Dias disse...

Eis a aeronauta nunca dantes navegada: "a sanguinária"

Gostei

Lidi disse...

Aero, que maravilha de texto! Não tenho palavras... apenas cumplicidade. Um beijo. Te admiro muito!

Bípede Falante disse...

Melhor definição que já li de humanidade. Realmente, ela está se inventando e, por enquanto, a personagem não está lá grande coisa.

Nilson disse...

Que nem Kátia: uns tempos fora e, de volta, essa porrada. Aeronauta faz a gente pensar!!!

Luciana Rocha disse...

Parabéns. Li seu texto dizendo "uaus".

Sergio Storino disse...

Aeronauta,
Vou repetir o Bernardo. Tô dentro. Um abraço.
Storino