segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

RETORNANDO...


"Dona Hilda,
Olha Seo Túlio
Na porta!"

Dona Hilda
se volta.

Na porta,
Seo Túlio.

Trazia os mesmos
olhos
de julho

mal adormecidos,
impuros;

e um soluço
no escuro.

"Dona Hilda,
acolha seu Túlio,
Dona Hilda!"

Dona Hilda,
dura.

Sem poemas
Sem presentes
Sem mesuras

Dona Hilda cansada.
Envelhecida.

"Seo Túlio voltou!
Com o amor
O amor!"

O amor?,
pergunta Hilda,
Senhora da vida.

E tudo, enfim,
se transforma.

Ângela Vilma
*poema em homenagem a Hilda Hilst e seu eterno amor,Túlio (que era Júlio).

quinta-feira, 16 de abril de 2015

no subsolo

Todos estão no Facebook, a essa hora. Então posso escrever aqui à vontade. Posso falar o que eu quiser. Quem vai ler? Sobrou alguém no porão? Alguém poderá ouvir o meu pensamento enquanto digito? Sim, escrevo também para mandar recados. Escrevo para dar o tapa na cara que eu não dei. Escrevo para exorcizar os demônios. Escrevo para não matar de verdade. Mais ainda: escrevo para poder amar quem não posso amar. Escrevo, à maneira dos grandes enredos populares, para lavar a minha honra. Crime passional. Todos os dias quero lavar a minha honra, quero me vingar. Por isso escrevo. Por hoje é só.

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sexta-feira, 4 de julho de 2014

Não consegui, sozinha, gerenciar minha casa. Já que não suporto sujeiras e não tenho ânimo para limpá-las e curto muito mais ler um livro, contratei uma nova empregada. Essa tem ligações com São Paulo; no sotaque e no jeito civilizado. Chama água sanitária de "Cândida". E conversa comigo enquanto lava os pratos, olha para trás e diz que tem um namorado em Salvador. "É, dona Ângela, eu pegava, sabe, voos noturnos e vinha de São Paulo ver meu namorado, aproveito a vida."
É uma profissional, percebe-se pela discrição e talento para servir uma mesa.
E parece-me que gosta muito do que faz. Cozinha bem.
Só que reclamou hoje ter recebido uma empreitada daquela. Convidada para dormir com uma amiga de uma amiga, pago, claro, essa amiga da amiga quer prosa todas as noites antes de cada uma se recolher para seus respectivos quartos.
- Ai dona Ângela, está complicado. Ela precisa arrumar uma dama de honra. (Diz assim com bastante calma e elegância.) Ela conversa muito, sabe? Muito solitária!!
Fico me perguntando se também sou conversadeira. Acho que não. Só dou brecha para prosa na hora das refeições. Fora disso fico no escritório lendo e escrevendo. Ela nunca me interrompe. Muito decoro.
Espero que tudo dê certo dessa vez.
Sinto minha casa habitada. As paredes parece que conversam entre si, e os cômodos dialogam pela parede. Há algo no ar que quebra a solidão nefasta dos últimos tempos.

Leide


Leide era uma senhora tipo clariceana, sabe, meio altiva e meio triste, sempre com óculos escuros, solitária, não constituiu família. Vivia de favores de parentes, de parcos abraços de aniversário e de visitas de compaixão. Uma quarentona, quase beirando os cinquenta, queria amar e não tinha a quem. Até que um sobrinho longínquo, lá das bandas do Ceará, lhe ligou. O telefone que nunca emitia som, emitiu naquela tarde. Ele estava se mudando para São Paulo, passara no vestibular de filosofia, e precisava de um apartamento, algo pequeno, para alugar. Nossa, que felicidade a de Leide! Arrumou-se na mesma hora, pegou o primeiro táxi e foi olhando as placas nos apartamentos. A cada um que entrava, feliz, com seus óculos escuros, ela exclamava uma mentirinha boa, sabe, uma mentirinha que lhe completava a solidão:
- Sabe, é para meu filho, quero algo bom!
Visitou vários apartamentos, sempre dizendo o mesmo texto, às vezes com uma mentirinha ainda mais terna:
- É para meu filho, sabe, um rapagão bonito, que eu amo muito, e quero encontrar o melhor lugar para ele!
Ai Leide, como dói a vida...






terça-feira, 13 de maio de 2014

Quero o teu silêncio de pano mais ordinário, de chita, mas também de madapolão. Teu silêncio rico diante de minha tristeza, porque todo ser humano tem direito a ela, à tristeza, sem precisar ouvir conselhos de Osho e de autoajuda. Se sou mulher que ama demais? Sou sim, e daí? Mas não me aconselhe a ler esse livro, meu amigo, não me aconselhe, porque senão não sei do que serei capaz; de dormir dez dias, satisfeito? Aos invés de qualquer palavra, apenas escute o meu silêncio e tente lê-lo. Vele meu sono estúpido diante desse sol chamando pela vida. Ave, deixe o sol chamar pela vida, porque nem todo mundo está a fim de sol. Veja os sertanejos por exemplo, querem chuva. Queria assistir contigo Deus e o diabo na terra do sol. Queria que chorasses naquela parte das bachianas em que Corisco roda com Yoná naquele beijo mais comovente do cinema; cinema, essa espécie de teatro da alma. Há coisas felizes, e que só a arte e a compreensão trazem. Chamo amor de compreensão, porque amor como chamam por aí não há. Compreensão. Palavra mais difícil que essa, impossível. Compreensão: você descascando uma laranja para mim, por compreensão, por zelo. Amor? Essa palavra não me diz mais nada. Oca, como as novelas da globo. Prefiro sentar contigo nos trilhos de um vagão que desapareceu. Mas que a qualquer momento poderá aparecer, de súbito, e nos engolir.

Cotidiana

Enquanto os holofotes ficaram no Facebook - terra hollywoodiana - aqui posso sentir a paz das montanhas, com total reintegração de posse. É, demiti a moça que só ficava de costas na pia. Daqui a pouco ela vem acertar as contas. Gozo agora a solidão dos malditos, sem gatos, como Orides; sem gravação de voz dos espíritos, como Hilda. Mas fazendo aqui por dentro uma casa do Sol. A moça chegou, fomos acertar as contas e por incrível que pareça ela conversou como nunca! Contou toda a sua vida. Conversou, e foi na pia lavar os pratos (que nem precisava mais, já que fechamos as contas). De lá da pia ela conversava e virava para mim, contando os detalhes que seu filho mais novo fazia quando pintava o sete. Ela estava feliz, talvez por ter sido demitida. Acho que também não se sentia bem trabalhando aqui em casa. Nunca, nunca entenderei o ser humano. Apenas me comovo, sempre. Essa comoção maldita que muitas vezes me enfraquece. Mas não enfraqueci. Reintegrei-me à minha casa. O sol é forte, e frio. Sol de junho. Mandei por ela - para sua filha grávida - um ursinho de pelúcia que vivia de se esconder pela casa. Um ursinho marcado de lembranças que quero apagar. Sua filha construirá novas histórias com as minhas memórias deletadas; afinal todo urso de pelúcia tem um artifício de esquecer seu dono e suas lembranças lacrimosas. A casa antes pequena ficou grande. Eu dentro dela posso correr, me deitar no chão, conversar sozinha.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

preciso sair da raiva e entrar no amor. Botar o facão do lado de fora da casa e cuidar de fazer um café quentinho. Esperar a noite chegar com um candeeiro e um radinho de pilha. Preciso aprender a dormir cedo e acordar juntamente com os pássaros. Recolher tarefas gostosas de fazer, abrir a janela do escritório e ler um livro de poesia. Seja lá onde estou, preciso voltar para a roça. Há um milharal grande aqui dentro, uma terra vermelha e pássaros pretos cantam que dá gosto. E quando a gente abre os livros - aprendi isso desde menina - a casa se enche de gente boa; gente interessante. A vida ganha sentido. Vou agora servir um café para meu querido Carlos Pena Filho. Que, coitado, desde sua ida tão cedo, aos trinta e poucos anos, na avenida Caxangá, nunca mais sentiu o gosto de um café fresquinho, coado em coador de pano. Lá no céu há café expresso, Carlos, meu querido Carlos? Acho um horror café expresso, Carlos, um horror.