Aos dezoito, dezenove anos fui professora de datilografia. Entrei em sociedade com um professor que havia me ensinado - aos quinze anos - como bater na máquina sem olhar para o teclado: fiz o curso inteirinho e ainda tirei primeiro lugar. Ganhei de presente uma bolsa marrom e horrorosa da Hermes. Pois bem: convite feito pelo professor, sociedade realizada: ele entrou com as máquinas, eu com o trabalho. Só que as máquinas eram do tempo do onça, todas muito antigas e pulantes. As pessoas da cidade se matricularam e, logo de cara, começou a reclamação do pula-pula e corre-corre das máquinas. A primeira lição do "asdfg" era um transtorno, pois ao baterem o s, este saía a quilômetros de distância do a. Então, era um tal de tira-papel da máquina, rasga e pede outro, 'fessora. E eu doidinha, sempre entre uma máquina e um aluno, e sempre com um livro na mão; literatura, óbvio. Com o tempo os alunos se acostumaram: aprenderam a domar aquelas remingtons e olivetts de pernas, ou melhor, de teclas soltas. Só assim eu poderia ler meus livros em paz sem o famigerado chama-chama.
Foi numa dessas manhãs de paz, que travei conhecimento com meu amigo "Bicho do Mato". É, esse mesmo, o que comenta alguns posts aqui. Eu estava com um livro de Sartre nas mãos quando o dito parou no passeio da escola e entrou. Sartre muito o interessava, ele que não conversava com ninguém, tinha um ou dois amigos no máximo, e não exalava um tantinho assim de afetividade pelas pessoas. É, pois é: Sartre fez ele entrar e vir falar comigo. Conversamos muitas horas seguidas. E assim nossa amizade foi crescendo e crescendo. Um dia ele me emprestou "As palavras" (de Sartre) e me disse que Dó (seu único amigo) lhe chamava de "O existencialista". Achei o máximo aquilo: estava na fase de querer ser atéia, de deixar de ser certinha. Foi num desses encontros na escola que ele me confidenciou algo que nunca esqueci. Disse que queria que sua mãe morresse para ele poder herdar a máquina de costura. Ah, Bicho do Mato, bons tempos! Naquele dia você foi um herói, pois ao ouvir aquela frase sair de sua boca com tanta tranqüilidade, eu quebrava todos os tabus que ainda tinha com certas palavras...
Dessa maneira meu amigo Bicho do Mato entrou para sempre na minha vida. Com idéias existencialistas ou não, é alguém que o mundo elegeu.
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2 comentários:
Qdo. comprei uma batedeira de bolo, meu filho pequeno perguntou, olhos brilhantes fixos na batedeira que girava: - Mãe, qdo. a mãe da gente morre, as coisas dela ficam pro filho, ficam?
Eu quis da minha avó a cadeira de balanço.
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