terça-feira, 16 de setembro de 2008

"É até morrer"

Igual a muitas meninas, tive minha fase de clariceana fanática. A cada aniversário pedia um presente aos membros da família: livros de Clarice Lispector. Assim, fiz minha coleção. Também semelhante a toda menina clariceana, tive o distanciamento. E fui procurar textos de uma Clarice um pouco diferente. Isso eu encontrei em A via crucis do corpo. Desse livro três contos me marcaram muito. Tanto que até hoje sei de cor as histórias de cada um. Claro que o enredo não é nada diante do jogo da linguagem, este que nos permite internalizar contos lidos há mais de quinze anos. Dois desses contos vou lembrar ligeiramente: um é a história de uma mulher e um gay, muito amigos, até entrar na amizade o amor de um homem. O gay humilha a amiga dizendo que ela não sabe fritar um ovo! Como eu me identifiquei com esse final! Eu que nunca soube fritar um ovo! O outro conto é a história de uma mulher que se vê num convento e doida para se casar. Aí ela se sente atraída pelo corpo de Cristo na cruz. A terceira história, e não é à toa que a deixei para o final, é de uma pungência, de uma urgência de vida, de uma tristeza sem perdão. Magistral a maneira como Clarice inicia a narrativa: "Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo". Só isso no primeiro parágrafo.
O narrador vai dizendo, laconicamente, que essa senhora tinha muitas vertigens, pois com ela "o desejo de prazer não passava". Foi ao médico. (O diálogo que transcreverei abaixo é trecho que fica gravado no nosso corpo como sentença.)

"- Quando é que passa?
- Passa o quê, minha senhora?
- A coisa.
- Que coisa?
- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
(...)
- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
- Não importa, minha senhora. É até morrer.
- Mas isso é o inferno!
- É a vida, senhora Raposo."

Daqui em diante não transcrevo mais nada. Basta por hoje.

3 comentários:

Anônimo disse...

Aos vinte e poucos fiz um resumo de minha vida com xerox de fotografias e trechos de "A paixão segundo GH". Meu resumo chamava-se "amor quase tragédia"

Kátia Borges disse...

Gosto muito de Clarice, mas não tenho tanta leitura dela assim. Sempre que leio fico encantada. Para mim, aquilo é magia, mais que literatura. BJ

Vivz disse...

Tb acho que seja magia. E essa parte que vc transcreveu é de matar um mesmo. Amei! Bjs.