quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O quase-amor e as diferenças de classe

A menina conheceu um moço no ônibus. Um moço até distinto, como se diz no interior. O moço estava sentado no corredor, ao seu lado, e a moça na janela. A moça e o moço (melhor chamá-los assim) começaram uma prosa boa. O moço loiro começou a retirar da pasta umas fotografias de familiares. Logo ficaram íntimos, amigos, paqueras, nas entrelinhas. Até então a moça só conhecia do moço loiro o lado esquerdo - coisas de perspectiva, estavam no ônibus e a visão se limita. O moço tinha um sorriso bonito, é bom fazer essa ressalva. Chegaram. Ah, o tal era destemido, quis levar a mocinha para casa. A mocinha ingênua aceitou. Clima no ar, o cabelo do rapaz, ela percebeu assim que desceram do ônibus, era loiro pintado, mas não tinha problema, continuava distinto. Ele ajudou ela com a mochila. Prosearam bastante no meio do caminho, clima de paquera. Ao deixá-la em casa, ele lhe deu um pitoque. E sorriu. Só aí a moça pôde ver que o seu sorriso largo era um sorriso comprometido, pois do lado direito os dentes eram só caquinhos, podrinhos. A moça sentiu um arrepio de repulsa, e tratou de apressar sua saída dali, o mais rápido possível.
Passaram-se alguns dias. A moça estava no ponto de ônibus para a universidade. O pescoço virado para o lado de lá, aguardando o ônibus. De repente, como ocorria todos os dias, passou o carro da Pavter, ou seja, o carro de limpeza da cidade. A moça nem olhou, estava acostumada com aquele carro passando todos os dias pela manhã. Só que nessa manhã o carro parou próximo ao ponto. E ela pôde ver, bem de perto, um monte de homens cor de abóbora (pois as suas fardas eram dessa cor). E um deles deu um pulo e veio em direção a ela. "Ué! Não é o tal rapaz distinto e que tinha os dentes...", ela nem completou o pensamento e ele: "Oi, linda!". Ele quis logo marcar algum encontro, e a sorte é que o ônibus dela bateu em cima, ela subiu e se livrou. Porém, o destino estava armando. Achou de ir trabalhar na Pavter um conterrâneo da moça, e lá o tal conterrâneo conheceu o tal moço loiro pintado. E, ao começarem um animado papo, falaram da moça. Oh, para quê?! Logo depois, a cidade natal da coitada ficou cheia que ela havia namorado, na cidade grande, um gari. Nada de mais, acredito, porém o povo, vocês sabem, tem preconceito de classe. Entretanto, o conterrâneo da moça apaziguou a situação ao encher a rua que o gari de quem falavam não era "propriamente gari", mas "cabo de turma": aquele que mandava nos garis, ordenando a esses pobres coitados, mais coitados do que ele, varrerem aqui, ali e acolá. Portanto, um chefe. Com roupa igualmente cor de abóbora, mas chefe. Com dentes podres, mas chefe. Só assim a moça voltou de novo a ter sua reputação, como se diz juridicamente, "ilibada".
P.S.: Segredo de pé de orelha: a moça aí é a Aeronauta.

9 comentários:

Anônimo disse...

Pô, Aero! você escreve muito lindo. Fico comovida. Beijos de Maria

Anônimo disse...

rsrsrsrsrs. Essa vida da gente!

Bernardo Guimarães disse...

Me faça outra surpresa desta e eu enfarto!

- Luli Facciolla - disse...

"os dentes eram só caquinhos, podrinhos"
Urg! Senti a mesma repulsa!

Beijos Aeronauta!!!

Senhorita B. disse...

Nauta,
Que saudade dos seus textos maravilhosos!
Bjs

Edu O. disse...

adorei a perspectiva. essa história é cheia dela.

LÍVIA NATÁLIA disse...

Essa eu já conhecia, mas não com estes resquintes de crueldade!

Anônimo disse...

Ótimo título para um livro de contos: "A moça e o cabo de turma".

Anônimo disse...

Ai ai, eu já ri tanto com essa história, mas a cada vez que ouço (e agora leio) eu fico mais surpreso com o você abraçou o comunismo, e com ele a quebra total das barreiras entre as classes. Bem, e quem disse que para beijar é necessário ter dente? Basta ter vontade (e coragem, rss). Beijos.