quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Das bizarrices humanas

Chamava-se (e ainda se chama) Leônia. Talvez uma péssima combinação de leão com amônia, sei lá. Só sei é que ela fazia um monte de mecha com creme nos cabelos para que os cachos ficassem duros, à prova de vento. E que veio de São Paulo pra ficar. Estava morando na nossa rua, na última casa, perto da ponte, e um dia nos convidou para o aniversário de seu irmão. Que aniversário estranho! Primeiro porque o bolo era roxo, e segundo porque serviram como salgadinho nada mais nada menos que batatinhas cozidas enfiadas em palitos. Peguei pensando que era algo novo e quando senti o gosto já era tarde.
Mas o fato é que ela, Leônia, ficou nossa amiga. Tínhamos dezesseis pra dezessete anos e ela devia ter uns dezenove, vinte. Baixinha, atarracada, mais pra anã, como eu. Foi ela quem me ensinou a fazer mecha no cabelo, com creme, a fim de que os cachos ficassem duros, à prova de vento. E me ensinou algo que nunca esqueci, mais ou menos assim: quando o vento bater nos cabelos não devemos fazer nada: nada de querer deter o cabelo, pois é pior; o melhor mesmo é deixar o vento fazer o que bem quiser, pois quando esse passar, os cabelos voltarão ao normal. Engraçado, nunca me esqueci disso. Toda vez que estou na rua e o vento vem em cima de meus cabelos lembro do conselho de Leônia.
Logo logo ela se afastou da gente, e foi fazer amizade com meninas de outra rua. Mas sempre que a via, com os cachos à prova de vento, me dava vontade de rir. Até hoje nunca abandonou tais cachos, acrescentando outras coisas ao seu histórico: se entregou à comilança e à bebelança. Ontem minha irmã me trouxe notícias dela, tão bizarras que vou dividi-las com vocês.
Disse minha irmã que soube por uma amiga conterrânea, que Leônia não bebe mais água: só cerveja. É cerveja de manhã, de tarde e de noite. Senta de tardezinha na porta da casa com um monte de latinhas ao redor. E que decorou sua casa de uma maneira muito estranha. Aproveitou todos os cantinhos para enfeitá-los com bibelôs de sapos de todas as espécies e tamanhos. Da sala de entrada ao quintal. Nas paredes, imagens de sapos; nas estantes, sapos vestidos de roupas e usando bonés; sobre a televisão, sapo pequeno dormindo; sobre o aparelho de dvd, sapo dando sorrisos; sobre os sofás, sapos gargalhando em forma de almofadas. No quarto tem outros tantos em cima da cama: apertando a barriga desses sai um coaxar igualzinho a de um sapo de verdade. Em cima do guarda-roupa a saparia verde, os maiores, vigia seu sono. No quintal estão os sapos que não couberam dentro de casa: uns grandalhões, rústicos, de barro e de plástico.
Voltando ao quarto: sobre a penteadeira não tem sapos, mas algo bizarro também: um monte de vidro de perfume vazio. Pediu a todas as pessoas da cidade que dessem para ela os perfumes que fossem acabando. Tem todos os tipos de perfume que se foram.
Ah, e na cozinha? A saparia divide espaço com as joaninhas. Enfeitando a geladeira tem ímãs de joaninhas de todos os quilates, de todos as formas. Quando se tenta abri-la, as joaninhas caem pelo chão, numa barulheira terrível. Conta-se que uma senhora sua prima chegou pra visitá-la e foi abrir a dita geladeira pra pegar água... Quando vem de lá aquele monte de joaninha destrambelhada, a outra não fez por menos: pegou uma bacia, colocou todas as joaninhas dentro e aconselhou a prima a jogar tudo fora. O que essa não fez, claro.
Voltando aos sapos. A cidade inteira quis saber por que o incutimento da dita cuja pela saparia. Ela disse que foi uma coisa à toa. Estava sentada de tardezinha na porta, bebendo sua cerveja, quando viu um sapo na calçada, perto do rio. Aí imediamente pensou: puxa, o sapo, um bicho que ninguém gosta... Apiedou-se, portanto, e resolveu render-lhe homenagem. O marido é quem mais sofre, coitado: na hora de dormir deita-se sobre os sapos coaxando porque ela não quer, de jeito nenhum, tirar os lindinhos verdes da cama.

11 comentários:

Marcus Gusmão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcus Gusmão disse...

Acho que não é bondade. É insistência. Leônia bebe, arruma os cabelos e espera. Cada um dos novos habitantes da casa é mais uma tentativa, um beijo que não vingou.

Bernardo Guimarães disse...

Leônia está é pirada do cabeção! Ninguem em sã consciência enche a casa ( e a cama) com sapos. Duas joaninhas na geladeira já dariam a pista! Devia encher a geladeira de cerveja, deixar o marido dormir com Joaninha e sentar no passeio arrodeada de sapos. Pegava melhor pra Léo.

Anônimo disse...

o final é ótimo pois jamais imaginei que Leônia fosse casada.

Maria Judith. disse...

Apois. Eu tampouco imaginaria que ela fosse casada. Deve ser uma criatura divertida, além de espetaculosa.

Nilson disse...

Oi, Aeronauta. De volta e feliz com todos os textos que acabo de ler - um monte, depois de mais de uma semana fora. Tô ainda mais curioso com Morte Abjeta, que ainda não chegou aqui em casa. E as suas memórias continuam afinadíssimas, tocantes, como na da foto do pai, e engraçadas, como nessa de Leônia. Impressionado tb com a sua história de prender as pessoas queridas!!! Abraços!

Janaina Amado disse...

Figuraça, essa Leônia! Eu também tenho a maior simpatia pelos sapos (mas não os coloco na cama). Um tio e uma prima minha também têm. Os sapos são feios, desengonçados, e se transformam em príncipes, como nós.

Anônimo disse...

De sapos e outros causos: beleza de texto.

Anônimo disse...

Sei de alguem, bem pertinho de mim, que também tem essa fixação por sapos, mas por enquanto, graças as Deus, não passam de vinte, os sapos, e todos de pelúcia. Beijos.

Bernardo Guimarães disse...

Oh, moça dos ares, reclamou tanto de mim e agora? por que a demora? adonde andas? o vento te levou pra outras banas?

Senhorita B. disse...

Só tem maluco no mundo!!!!!
Bjs