quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Eu


Feliz deve ser quem pode viver sem escrever. Eu não. Mais fico doente se não escrevo. Em cima da cama, por favor, me dê minha máquina de escrever, que esse negócio de laptop não entrou ainda no meu mundo. E quem está escrevendo aqui sou eu, eu, eu, eu. Quantas vezes tenho que dizer esse pronome possessivo? Mil vezes. Eu, eu eu, eu sou ela, quem não sabe fique sabendo agora. Por que preciso mostrar minha cara na carteira de identidade? Para ser aceita? Para ser rejeitada? Para ser mandada para um manicômio? Oh, filho, coloque-se um pouco do lá de cá pra sentir o que é bom pra tosse; não é frescura não. Afinal não sou nenhuma Malu Mader. Que esse negócio é coisa de minha cabeça, sei desde que comecei a ouvir falar que tudo é psicológico. Mas vá lá: pode chamar de frescura, de calundu, de loucura, tudo isso sou eu. Você mesmo assim ainda quer me levar? Precisa olhar meus dentes? Não valho muita coisa não, querido. Falo mal da vida alheia, tenho ressentimentos profundos, mas gosto muito, muito de rir. Não se engane nunca: ela sou eu. Não se esqueça disso. Não, sei que você sabe, você que me ama por dentro sabe. Sabe que quem vive a crise de identidade agora não sou eu, mas a criança da década de setenta. Uma criança birrenta e medrosa. E que tem medo de cachorro. Medo de soldado (igualzinha a Maca). Medo de homem da sucam. Medo dos coleguinhas da escola. Medo de sair de perto da mãe. Se isso aqui é divã? Ora essa, isso aqui é o que eu quiser. Que hoje não estou pra ficar ouvindo voz chata de superego zombador. Estou é pra reclamar o que é meu: esse espaço, eu. Pode parecer autoritário, mas eu preciso ser mandona agora. Não, não vou matar ninguém, Aeronauta muito menos, porque não posso me matar: nunca tive vocação pra suicida. Acho meio besta isso, esse negócio de se atirar de pontes, viadutos, ou botar bala de revólver na cabeça. Quero apenas dizer, de novo, que quem fala aqui sou eu, quem chora aqui sou eu, quem xinga aqui sou eu, blá, blá, blá. E foi assim que João Bicho D'Água, doido de minha cidade, honrou seu nome na praça. Foi gritando no meio da rua, com valentia, pra todo mundo ouvir "homem é eu, cabra da peste", foi gritando assim que ninguém mais tomou pilhéria com ele, a cidade começou a lhe respeitar. Então grito, faço espalhafato, me chamo pra briga, "Aeronauta sou eu, cabra da peste". Preciso assegurar o meu lugar nessa joça, afinal de contas sem entender nada de internet fiz esse blogue, a facão mesmo. Deu um trabalho danado. E fui eu quem pegou no pesado, mouse pra cá, mouse pra lá; eu, essa que vos fala, que não é nenhuma Malu Mader. Por que insisto nessa história de Malu Mader? Faça você sozinho sua interpretação. Estou malcriada hoje, soltando os diabos. Sou agora a menina que deixou de ser besta, de apanhar das colegas, de se escorar na parede. Acho que já aprendi até a dar cascudos. Estou doidinha pra arrumar uma cabeça pra ploft! dar um cascudão bem forte. Igualzinho a muitos que ganhei na infância. É divã? É, Superego; cale-se! Hoje muita gente vai apanhar. Vou arrancar cabeça de muita gente. Já estou sarando, já pensou numa coisa dessas? Só porque resolvi botar a minha máquina de escrever na cama, no meu colo e dedilhar essa prosa. De verdade, só escrevendo existo, só escrevendo sou; se você quiser me levar assim mesmo, pode olhar os dentes.



Imagem: "Sensações", de Tuba Sinnhofer.
(www.flickr.com)

12 comentários:

LÍVIA NATÁLIA disse...

Perfeito. Grite mesmo plenos pulmões! Pule para fora desta lógica besta, fetichista, ridícula de quem não tem imaginação ou sensibilidade...Isso aqui não é BBB, não escrevemos para as câmeras e sim para os olhos gulosos de leitores que nos querem mesmo é nas letras. Quem não conseguir viver com isto que dê seu jeito.

Amei, Aero!

imonizpacheco disse...

Enfim, gente de carne e osso, com defeitos e qualidades, alegrias e tristezas: é assim que somos. É assim que eu gosto. Gente.
Gosto muitos dos seus textos secos, crús. Mas esse tem o sabor especial da verdade (ou não?).
Um abraço pela coragem,
sua leitora contumaz.

Senhorita B. disse...

Maravilha de texto!
Essa é você, humana e independente de qualquer nome ou coisa do tipo. Você.
Bjs,
Renata

Gerana disse...

Amei!!! "Isso aqui é o que eu quiser"... foi maravilhoso!!! O blog é seu, escreva o que quiser e,quem quiser, interprete como quiser. Palmas para o "como eu quiser"!!!
E, aprendi com você, vou escrever o que eu quiser e não darei satisfações.

Marta F. disse...

Você tem textos memoráveis, continue.
Nem todo dia é dia santo.

Janaina Amado disse...

Já vim aqui uma porção de vezes hoje, mas não consigo me expressar adequadamente para você, que vive esse dilema que tanto me toca. Mas vou tentar:
O mais importante é que você é um talento de escritora. Não só escreve muito bem, mas cria muito bem, tem uma imaginação extraordinária a serviço da palavra. A outra coisa que desejo lhe dizer uma pessoa, que se assinou no comentário do post anterior "Alguém que admira seus textos" (ou algo parecido)exprimiu perfeitamente: "Tenho uma sugestão. Não mate Aeronauta. Dê a ela sua face que sempre viveu às escondidas. Você é ela e ela é você. Revelem-se."
Para nós, seus leitores, aeronauta é a escritora que conhecemos e admiramos. Junte a ela seu nome e face civil, revele as duas juntas, revelem-se. Mas - e a sugestão é só minha, agora - faça isso não literariamente, como neste belo texto (pois assim poderia ser prolongar a dicotomia), mas simplesmente, cotidianamente. Enfim: diga quem são as duas, seus nomes, suas datas e formas de nascimento, e nós aceitaremos e amaremos as duas, reunidas numa.
Não sei se fui clara. Continuo torcendo muito por você.

Lidi disse...

"Se isso aqui é divã? Ora essa, isso aqui é o que eu quiser." Perfeito. Adorei. Essa é Aeronauta, essa é você, cabra da peste! Um beijo.

Anônimo disse...

Textão! Grande e inteira figura essamenina! Que seja. Espaço que você quer e queira. Beijo, ôto de Maria

Eliana Mara Chiossi disse...

Gosto de te ver assim, malcriada...
Mas estou assim, assim, de vontade de tomar um cafézinho, com qualquer uma de vocês!

Beijos!

Eliana Mara Chiossi disse...

Eu vou ficar feliz de tomar café e conversar por horas, com qualquer uma...


E mando beijos para as duas (mas só tem duas aí dentro, florzinha? tem certeza?)

Andréia M. G. disse...

Nossa, passei uns dias fora e quando volto, que maravilha! É tão bom ficar malcriada. Vc, Aeronauta as duas, ou quem mais queira aparecer nessa aí que escreve, é escrita de primeira categoria! Bom demais! :-)

Nílson disse...

É isso: um grande e malcriado texto que só leio agora. Sou mais você!!