sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Na Cidade Baixa

Puxei a pai no destempero, no horror, no nervoso. Besta é quem pensa que sou calma. Sou um turbilhão. Pai também aparentava calma; só de longe. Entrasse no fusquinha com ele que você iria ver o que era agonia. Ou melhor, fizesse uma viagem com ele dentro do fusquinha que você iria ver o que era horror. Ele dirigia com o corpo todo debruçado sobre o volante, trêmulo, numa afobação danada. E a afobação era falante: "Meu Deus, se esse carro não atolar agora não atola nunca mais!" Ou: "Nessa curva aqui já morreu não sei quantos! Perigosíssima!"
Nas célebres viagens que fazíamos em família - todos os domingos para a roça - as cenas se repetiam: "Meninas!" Ele gritava pra mim e pra minha irmã, já dentro do carro: "Meninas, vão olhando pra trás! Se virem algum rastro de fumaça dêem um grito, pra dar tempo a gente sair e correr!" E nós duas tome pescoços pra trás! "Fusca é o carro que mais pega fogo no mundo!" gritava ele lá da frente.
Isso tudo sem precisar contar, e já contando, que em determinadas partes da estrada ele nunca se esquecia de lembrar de um compadre, de um fulano e de um sicrano que ali morreram. E detalhava todo o causo: como foi a morte, como os parentes ficaram...
Estou lembrando disso tudo porque hoje, andando pela Cidade Baixa, me lembrei dele. Ele que adorava Salvador e trazia toda a família nos finais de ano. (De ônibus, claro.) Adorava, mas sempre alertando sobre os perigos. Quando entrávamos num edifício, ele dizia: "Não gosto de entrar nisso não! Pois se começar a pegar fogo lá embaixo, quem está cá em cima não tem pra onde fugir!"
Uma das coisas daqui de Salvador que ele mais gostava era o Plano Inclinado. Fazia questão de nos levar, dentro daquela "combi diferente", para a Cidade Baixa. No meio do caminho, praticamente no ar, ele, nervoso, nunca se esquecia de dizer: "Meninas, olhem como é bonito! Mas se esse negócio despencar daqui, já era! Não sobra ninguém!"

11 comentários:

Menina da Ilha disse...

E ele tentando me ensinar a dirigir? Se lembra? Quando vinha um caminhão ele praticamente tomava o volante da minha mão pedindo que eu tivesse calma, muita calma, numa afobação perturbadora. Se eu não o tivesse proibido de ser meu instrutor, provavelmente não teria aprendido a dirigir.

Bernardo Guimarães disse...

Meninas, seu pai é uma figura! adorei o cara! Tambem curto estas historias familiares, vidinha do interior.

Anônimo disse...

Aero e Menina,
PAI é MA - RA - VI - LHO - SO!
(o tempo presente é proposital. Sei, ele já partiu, mas está aqui conosco através de suas histórias)
Beijo
Maria

Edu O. disse...

Nossa, história de fusca!!! Tenho tantas. Tínhamos um que até goteira tinha. Fusca e família... união perfeita para bons casos.

Nilson disse...

Que figura esse pai. Um cara otimista! E também sou assim como você, todo mundo que olha pensa que sou calmo, mas por dentro é uma agonia retada.

Muadiê Maria disse...

Aeronauta,
seus textos são deliciosos e sempre me levam às minhas próprias lembranças.
Companheira, conviver com pai fóbico é dose pra leão! No meu caso, os dois eram fóbicos, mas só quem me mostrava o medo era minha mãe. Até hoje me assusta.
Beijo,
Martha

Anônimo disse...

Aha! Tal pai, tais filhas!

Anônimo disse...

Menina, que delicia de texto. Aliás, os textos todos são ótimos. Linguagem clara, correta e bonita. E os temas são todos interessantes! Dá gosto ler este blog!
Um beijo!

Lua O. disse...

ADOREI O POST!

Ri muito no "e tome-lhe pescoço pra trás".

Que delícia essas recordações vivas, que, apesar do tempo, não ficam amareladas e transbordam dentro do presente.

P.S- Obrigada pelo comentário no post sobre Bia, viu?

Anônimo disse...

Herica

É aeronauta sempre estou lendo seu blog as vezes dou risada as vezes fico emocionada, ler o que voçê escreve é muito bom é uma terapia.

Anônimo disse...

Eu adoro isso aqui. Beijos. M.