sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

uma manhã no inferno


Você quer passar uma manhã no inferno?
Acorde cedo, arrume sua pasta de documentos para autenticar e dê uma de sabido: chegue não oito e meia ao cartório, mas oito; assim você será o primeiro a ser contemplado no atendimento. Portanto, bote o despertador pra tocar, se arrume e vá para a politécnica, pertinho de casa. Chegando lá, apronte seu psicológico pra ter uma baita surpresa: a fila que lhe espera dá dois metros, fazendo círculos. Você não acreditará, e irromperá para a porta fechada. Os outros, que provavelmente foram mais sabidos ao chegarem pelas seis da manhã, lhe darão um grito para você ir ficar no seu devido lugar, ou seja, no lugar de quem chegou por último. Leve seu relógio, você vai precisar dele para toda hora olhar o tempo; pelo menos nas próximas duas horas, vendo a fila crescer mais e mais, e a porta não abrir. Pronto: você está no seu limite, a porta não se abre, e alguns desistem. Você, na sua sabedoria de sempre, pensa que as pessoas desistindo é melhor, pois assim será atendido logo. Persiste. A fila diminui, já vai dar dez da manhã e a porta do cartório continua fechada. Você tem um anjo da guarda e ele grita no seu ouvido o óbvio: procure outro cartório, esse aí resolveu queimar a sexta-feira. Você sai da fila, sempre olhando pra trás, quem sabe a porta não se abre? Você resolve buscar outro lugar, e toma rumo na avenida joana angélica, direto para o fórum da cidade - não é possível que num fórum não autentiquem documentos. O sol das quase dez queima seu cocoruto, o suor já desce pela barriga, mas você finalmente chega ao fórum. A moça que o atende, com a cara sem nenhum suor e nenhum fio de cabelo em desalinho, diz que ali não autenticam documentos; que você vá para o shopping da baixa dos sapateiros. Você, forte, desce a ladeira que dá para o tal lugar. Chega e pede informações. Fica no segundo piso. Uma moça gorda lhe aguarda com um papel branco, do seu tamanho, mal escrito em letras azuis: "sem sistema". Mesmo assim sua esperança lhe empurra para o diálogo miserável: onde eu posso autenticar esses documentos? Ela repetirá: sem sistema. E você: o que faço? Ela: nada, está tudo parado. Uma tagarelinha atrás de você vai gritar: moça, no comércio está funcionando, vim de lá agora. Você: como eu faço pra ir ao comércio daqui mesmo? Desça a baixa dos sapateiros toda e quando chegar nos bombeiros suba a ladeirona: você vai dar de cara com o elevador; aí é só descer.
Com uma vontade heróica de desafiar o destino, você segue em frente. Agora já é questão de capricho. Depois de andar muito, você se depara com uma ladeira em pé. Você bota uma força a mais nas pernas - já com ódio - e sobe. Chega no elevador lacerda. Fila. Enorme. Espera. Tenta ser otimista e olha o mar, num contraste com o calor e o suor fedorento e terrível que lhe acompanha. Enfim, descendo, e pronto: você já está na cidade baixa. Vai em busca da Avenida Estados Unidos. Espera quase meia hora para atravessar duas ruas. O sol tinindo. Pronto: já está na Estados Unidos. Interpela um ambulante: onde fica o cartório tal e tal e tal? Ele: vá andando, é lá na frente. Enfim, você está agora na sombra, dá até pra tomar uma água de coco. Você toma. E segue. Lá lá no fim, você avista o prédio. É um prédio verde-cinza. Pega o elevador. Quinto andar. Entra no Tabelionato. O problema é que você tem esperanças demais: pensa sempre que será logo atendido. Qual! Você abre a porta e pega a ficha número 105. Olha o painel e este marca o número 77. Você busca lugar pra se sentar, e só tem um bem apertado, lá no fundo. Você se queixa com um seu companheiro de infortúnio, ali sentado. Ele lhe diz pra tentar o cartório do sexto andar, que lá é mais rápido. Você é crédulo, levanta-se em busca do sexto andar. Espera o elevador. Como ele demora, você sobe as escadas. Chegando lá, sala apinhada. Você pega a ficha 54 e olha para o painel: está marcando a 22. Você se sente uma besta: tá tudo igual, e pensa vou voltar para o outro, lá pelo menos tem ar refrigerado. Você volta, a sala está mais apinhada. Você tenta se acalmar, chama pelo anjo da guarda. Você percebe seu anjo da guarda se fazendo de desentendido. Pensa: sairei daqui lá pelas seis da tarde. Acha um lugar menos desconfortável e aguarda. Você está fedendo mais, seu cabelo uma peste. Você se resigna. E fica olhando para o painel: a cada viradinha de número há uma musiquinha. E todos, todos os seus companheiros de infortúnio, olham para o painel nessa hora. Para cada número virar, dura uma eternidade. E lá não tem nenhuma revista para folhear. Você então resolve prestar atenção nas pessoas, companheiras de miséria humana. Algumas com o olhar compungido, outras com os olhos vibrando de ódio, mas todos rigorosamente sentados. Só os chegantes ficam em pé; claro, não há mais lugar disponível. O olhar desses é de inveja: olham para os sentados com os olhos mortos, cinza. Ah, você se resigna, sente até vontade de puxar prosa com um vizinho de cadeira, mas percebe que será uma prosa de lamentação. Você desiste, e espera, olhando sempre para o painel. Vê que tem uma televisão no recinto, e ela está chuviscando, e fica ora parcialmente colorida, ora em preto e branco. E passa um programa imbecil. Você volta a olhar para o painel e interroga seu anjo da guarda: cadê você, moço? Você escuta uma vozinha por dentro dizendo que agora vai dar tudo certo, é só aguardar. Tlin... o painel. Número 100! Você nem acredita. Até que está passando rápido, você pensa, otimista e besta. Apruma seus documentos, tira-os do envelope e aguarda sua vez. Pronto! Chegou sua vez. Você vai para o guichê. Quem está do outro lado é uma demônia com dois brincos enormes, com formato de flor. Traz colares enormes e uma gargantilha com a letra R. Ela lhe olha enfezada. Não responde ao seu bom-dia. Mas pega seus documentos. Nessa hora chegam dois pedidores de informação. Ela para tudo para informar às duas criaturas que estão quase lhe empurrando do guichê. Seu ódio vai tomando proporções alarmantes, você tem medo até de desmaiar. Os pedidores de informação chegando, de minuto a minuto. Então, no meio de uma informação dada, a demônia de brincos enormes de flor olha pra sua cara como quem quer lhe dar um tapa, e diz que o histórico precisa ser xerocado. Aí você diz: olha aí a xerox. E ela: está colorida. Você: Cadê o colorido? Aqui. E lhe mostra uma assinatura que, segundo ela, está assinada com tinta preta. Aí você não aguenta, e começa a falar: Moça, por favor, estou desde as oito horas no mundo... Ela lhe interrompe: desça e tire xerox na farmácia santana e depois suba com o material. Ô anjo da guarda, você chama de novo. Então Carlos Pena Filho constata, grave, no seu ouvido: "... quando até Deus em silêncio se afastar..." Lágrimas descem, você se sente injustiçado demais. Mas vai em busca da farmácia santana, da xerox. A moça diz que não é lá não, é na lan house vizinha. Você não esmorece, mesmo sentindo suas forças minguarem. Na lan house uma outra fila. Enorme. Mas, enfim, você já está ficando acostumado com filas. E suas lágrimas lhe impedem de pensar. Espera. Chega sua vez. Tira a xerox. Volta para o cartório. Lá no guichê tem uma pessoa sendo atendida e dois pedidores de informação. Você está com ódio manso, o pior dos ódios. Mas é humilde, e torce para que a demônia não veja mais o colorido nessa xerox recém-tirada. Enfim. Tudo deu certo. Você conseguiu. Na saída, olha o relógio: meio dia. Você vai direto buscar um ponto de ônibus. Não acha. Resolve subir o elevador lacerda. Chegando na cidade alta, busca um ponto. Há ponto, mas não há ônibus. Você resolve voltar andando para casa. O sol quente, o pé cheio de bolhas, os cabelos desgrenhados, você não se sente um mártir, mas um vivente infeliz. Sobe a ladeira de são bento, chega na piedade. Resolve almoçar no shopping lapa. Lá, o anjo da guarda decide trabalhar e acaba com a fila para almoço. Você não pega fila, portanto. Senta-se para almoçar e não pensa em mais nada. Sonâmbula, engole, sonâmbula toma um sorvete, ainda numa tonta perseguição ao lúdico. Sai do shopping e, a caminho de casa, tem mais sol fervente à sua espera. Verga-se a ele, entra no caldeirão humano, tropeça aqui, tropeça ali e chega. Cai no sofá, num choro convulsivo, sentindo o cheiro fétido de decomposição da alma.


Imagem: "Multiple Kafkas", por Lautreamax.
(www.flickr.com)

20 comentários:

Mônica Menezes disse...

Nossa, lido aqui me pareceu bem pior do que quando você me contou por telefone!!! Descanse agora, viu? Beijos.

Lidi disse...

Aero, obrigada pelo comentário em meu blogue. E, nossa, que manhã! Fiquei sem fôlego só de ler. Um beijo.

Marcus Gusmão disse...

Andei em sua companhia por todo o seu roteiro, conheço todos os metros andados por você, quase fico suado. É por essas e outras que eu estou com a carteira de motorista vencida desde janeiro do ano passado (fui ao SAC e aí tinha que voltar para pegar senha e fila) e um carro em nome de outra pessoa há mais de cinco anos, correndo todos os riscos. As vezes tento. Da última vez que tentei tirar o DUT eles estavam em greve. O interessante é que nestes lugares a gente se sente o diferente, porque há um conformismo e uma resignação absurdos. Parece que está tudo normal. Muitas das pessoas que estão ali estão a trabalho, ou seja, vivem disso, de pegar filas para outras pessoas. Com uma graninha por fora tudo é mais fácil e mais rápido também. Certa vez, em outra greve, consegui uma autenticação de um documento por R$ 70, em poucos minutos.

Gerana Damulakis disse...

Parece também uma odisséia, além de um processo, um castelo... fiquei cansada.

Anônimo disse...

Incrível! Durante toda a descrição de sua jornada, senti o cansaço e os nervos latejando, mas sem explodir. Incrível este seu grito no final. O mero e insuportável relato de uma cena cotidiana ganha dimensão extraordinária. Tinha que ter este final.
Abraço, Aeronauta.
Bom 2010! (não é ironia)

Flamarion disse...

Incrível! Durante toda a descrição de sua jornada, senti o cansaço e os nervos latejando, mas sem explodir. Incrível este seu grito no final. O mero e insuportável relato de uma cena cotidiana ganha dimensão extraordinária. Tinha que ter este final.
Abraço, Aeronauta.
Bom 2010! (não é ironia)

Bernardo Guimarães disse...

venha morar no interior, urgente! a gente passa lá, a funcionária está sonolenta, deixa o documento, "deixe 1,0 real que pode precisar de xerox, eu mesmo tiro ali defronte" e passa mais tarde ou ela mesma entrega em sua casa quando for para a dela, que é sua vizinha...

Unknown disse...

Genial a perfeição do texto - os minutos de leitura se transformam na manhã inteira que você viveu!
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Fui lendo e pensando... tomara que a xerox não seja em cores senão não autenticam. É uma porra!
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> e como diz Marcus: O interessante é que nestes lugares a gente se sente o diferente, porque há um conformismo e uma resignação absurdos. > quando eu faço escândalo me olham como se eu fosse doida. Um dia desses, em uma clínica, eu disse: PODEM OLHAR!!! SOU MALUCA MESMO MAS NÃO SOU CORDEIRO IGUAL A VOCÊS!
Evito sair porque termino assassinando alguém ou vice-versa.

Nilson disse...

Perfeito o texto: senti tb todo o caminho, as distâncias. Fico nervoso nessas horas, esperneio. Mas é exatamente assim: os demônios estão no comando e impõem seus suplícios; e a galera, bovinamente!!!

Menina da Ilha disse...

Você me contando já dando risada pós nervosismo, foi menos sofrido. Quando terminei de ler, me imaginei no seu lugar e cheguei a conclusão que se eu fosse você, na hora que a Demônia disse que a xerox estava colorida, seria a última frase que ela teria dito neste ano de 2010, e eu a esta hora estaria atrás das grades por motivo justo. Parabéns por ter conseguido suportar tanta provação.

Anônimo disse...

Ai aeronauta, me desculpe, mas ri muito. Na próxima me convide para ir junto e tudo será mais trágico, você vai ver.

Muadiê Maria disse...

vixe! o inferno é aqui.

Andréia M. G. disse...

Aeronauta, eu me senti na sua pele!!! Recentemente tive dias de horror em cartórios para transferir o documento do meu carro p/ meu nome, isso porque estava em nome do banco onde havia feito um financiamento, terminei de pagar e p/ trnsferir o doc. p/ meu nome foi uma saga pareciada com a sua. Tive que autenticar documentos, abrir e reconhecer firma, enfrentar filas enormes no Detran, só sei que passei por 3 cartórios: Baixa dos Sapateiros, Fórum e Iguatemi. O que mais me irrita qdo passo por esse tipo de situação é que passo um tempo enorme esperando e sou atendida em menos de 1 minuto, geralmente por uma demônia ou um demoniozinho. Ô, raiva!

Victor Mascarenhas disse...

Obrigado pela visita e pelo generoso comentário no Campo MInado e parabéns pelo texto. Espero que esse sofrimento todo tenho servido para, além de escrever essa trágica história, resolver tudo no cartório e não precisar voltar mais nesses verdadeiros infernos burocráticos que já deveriam ter desaparecido há muito tempo.

Sergio Storino disse...

Aeronauta,
Estive em Salvador apenas em duas oportunidades. Me senti outra vez aí. Esse texto tem algo de cinematográfico. Lembrei de dois filmes: Encurralado e Depois de horas - histórias diferentes, é claro, mas tão aflitivas e persecutórias quanto essa da sua manhã. Um abraço.

- Luli Facciolla - disse...

Ufa... Finalmente documentos à mão!
Eu já berrei todo o meu vocabulário chulo na fila pra pagar as compras da C&A. Me olharam como se eu fosse um alien e fui atendida na fila para portadores de necessidades especiais... Nem imagino porque!

Beijos

Moniz Fiappo disse...

Que aventura! Fiquei cansada.

Unknown disse...

Aeronauta,

Pior é perceber que a maioria das pessoas que está compartilhando daquela inferno com você já se acostumou a ele.
Difícil é aceitar o mal como algo do dia-a-dia.
Triste é se dar conta de que o descaso é uma constante nas relações humanas.
Mas o que mais choca é saber que a adaptação a tudo, o renascer da maldade, o descaso que impera.. tudo isso brota do coração humano. Daí o choro não ser apenas um momento de alívio, mas um instante de percepção que não há como exterminar tudo isso, por que só seria possível destruindo o próprio ser humano. Humano?
Pode até parecer sensibilidade exacerbada nesse século de automação, mas o que seria de nós sem as nossas lágrimas? O riso, esse é enganoso, muitas vezes, docemente leviano. O choro? Ah, ele liberta todas as verdades escondidas dentro e fora de nós.
Se chorar é pieguice, um viva à diacronia da exteriorização dos sentimentos!
O riso transporta-nos a dimensões onde nunca poderíamos ir enquanto homens e mulheres que somos. O choro faz-nos lembrar que somos gente, somos imperfeitos.
Chora, sim! Chora quando alguém te fizer um mal!
Chora, sim! Chora quando não puder mais conter dentro de ti a dor, o desejo de vingança, o amor sentido, o amor perdido...
Chora, sim! Chora para poder sorrir!
(João Neto)

Terráqueo disse...

Aeronauta,

Mesmo sem conhecer bem Salvador consegui visualizar cada cena, sentir a angústia e o cansaço da personagem. Lembrei inclusive de ter vivido alguns dias muito parecidos. Muito bom.
Abraço,
Terráqueo

Anônimo disse...

Aeronauta pense que existe coisas piores que isso.