sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Homem


No abraço, o cheiro de seu cabelo: cheiro de mormaço, sol, partícula mais íntima de uma árvore grande, viçosa, com as raízes bem postas. Você é um homem rústico: tem as mãos calosas, feitas para acariciar dores mais fundas. Todo o seu corpo pesa, seus braços carregam nuvens em dias de chuva; trovoadas, as mais pesadas, nuvens, as mais escuras. Me ensina dia a dia como ficar muda; como não dizer que lhe amo. Nada, nada é necessário, sua alma murmura, calma, sem qualquer palavra.




Imagem: "Esboço", Cauê Ramos.
(www.flickr.com)

domingo, 21 de fevereiro de 2010

"Vastas emoções e pensamentos imperfeitos"


Está lá em A interpretação dos sonhos: "Assim, Havelock Ellis (...) sem se deter no aparente absurdo dos sonhos, refere-se a eles como "um mundo arcaico de vastas emoções e pensamentos imperfeitos" cujo estudo talvez nos revele estágios primitivos da evolução da vida mental". Adiante, Freud registra palavras de James Sully: "Quando adormecidos, retornamos às antigas formas de encarar as coisas e de senti-las, a impulsos e atividades que nos dominavam muito tempo atrás".
Os sonhos, esses "produtos psíquicos", são, a meu ver, mistérios literários. Busco-me, pois, todas as manhãs, nos sonhos da noite anterior. Oh, o que quer dizer eu andar tão rápido numa rua (claro, a rua de minha infância, sempre), mas tão rápido que não consigo frear a tempo de uma carícia, de um abraço de meu mais precioso amor? Ou: o que poderá significar eu aparecer na frente de uma multidão com uma roupa rota, mínima, como que exposta numa vitrine embaçada? E, melhor ainda: por que procurarei um caixa eletrônico instalado dentro de uma igreja?
O sonho é, de fato, "a realização de um desejo"? E que desejo arcaico é esse que me fez voar sobre uma calçada a ponto de não conseguir frear para conseguir o que mais quero na vida? E que me despe todas as noites frente aos olhares humanos? E que me dá as roupas mais velhas, mais vergonhosas, expondo-me ao mundo?
Meus sonhos têm uma geografia bastante conhecida: o lugar de onde vim, a terra de minha infância. Têm também outra geografia: uma cidade desconhecida, com ruas repletas de casas vermelhas e muros altos, com ruas cheias de ladeiras e bandidos, onde sempre me perco sem encontrar o que busco. Essas duas cidades são recorrentes, cimentadas na medida em que o etéreo pode se materializar. Nelas estou solta como uma personagem louca no hospício: não há salvação, apenas imagens em fragmentos, recortes adulterados, portas sem saída. Talvez a resposta possível estaria no meio do caminho entre essas duas cidades, dentro da raiz mais profunda e acessível de uma árvore. Talvez.



Imagem: "Chão que sustenta", Celzira Colturato, galeria Explorer.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Amor


Mãe amaciava bem o fundo do copo de alumínio na cabeça - cabelo oleoso, diga-se - e passava sobre o imenso pano branco sobre a mesa. De lá iam surgindo flores, crianças, paisagens. Depois colocava tudo isso dentro de um bastidor. Sentava-se numa cadeira, aprumava a agulha e as inúmeras linhas coloridas e ia bordando aquele mundo de imagens, com extrema delicadeza. Bordava todos os nossos vestidos. Os lençóis, as fronhas. As toalhas de mesa, os panos de prato. E ia pondo iniciais em todos os cantos, inclusive nos bolsos das camisas de pai. Não se via breguice nisso, mas amor. Um amor que nascia inicialmente do óleo do seu cabelo - que o copo de alumínio revelava no pano branco. É escusado dizer que sob o pano estavam as imagens escolhidas por ela. Nunca me esqueço do homem carregando uma carrocinha de flores, bordado na frente de nossos vestidos. Essa imagem me acompanha como um destino: sem revelações claras, mas com estranhas promessas. Eu vestia com felicidade aquele curto vestido e abaixava as vistas para pode olhar as flores, a carroça, o homem: nessa difícil perspectiva de olhar ia compondo histórias, em fragmentos. Ah, como o adorava... Tinha uma barra delicada, de renda, colada sobre o pano verde, cheio de listrinhas tênues. Hoje penso que minha infância foi esse vestido, sempre tão novo, lavado com muito cuidado, passado a ferro e guardado no armário, para ser usado somente aos domingos, ou em batizados e festas de largo.


Imagem: "Bordado da tia Iracy", por Sônia Bianco Artes.
(
www.flickr.com)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Silêncio e prece


Agora que eu sei o que há
dentro da mais absoluta solidão
E que penetrei camadas e mais camadas de silêncio
no corpo da terra
E revistei pedra por pedra do imenso templo que carrega
essa infinita tarde aérea, incorpórea; e que nega
qualquer ausência, qualquer invenção de música
solitária...

Agora que eu não sou mais densa, e me espraio
em areias, como pássaro livre e triste;
E me desato a rir, sem medo de adeuses, sem laços
fugitivos ou breves, sem cápsulas terrestres...

Agora, só agora, sozinha, posso ver-te.
És um clarão: solidão sem versos.
Silêncio e prece.



Imagem: "Foto 15", por maira audi.
(www.flickr.com)

sábado, 13 de fevereiro de 2010

ceciliana


Não invoco o espelho ceciliano, mas onde está meu antigo rosto? Ganhei perto dos olhos umas auréolas fundas, submersas em nuvens contundentes; meu olho direito, cada vez mais oblíquo, ri de si mesmo, como miseráveis palhaços em circos; e todos os dias a madrugada faz seu serviço: desenha vincos na minha face como quem corta finas vidraças. Para quê? Pergunto a mim mesma, pois que os outros se foram e estou só, gentilmente só. Para quê? O vento, em sua superfície plena, toca meu rosto e me contempla, sereno, à espera. Para quê? Grito, pergunto, sem resposta alguma! Ai, a vida, essa borboleta cega, rindo ruidosamente enquanto prepara tintas que descolorem, que afogam, que desmancham.



Imagem: "Impressionism Sepia" por cassowari.
(www.flickr.com)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Inventário de desmedidas lembranças


Tinha sete anos
e minha mãe me dizia
que eu não era mais criança
Enquanto construía em meu cabelo
degraus de uma enorme e infinita trança.

Aos seis anos
Acordei numa manhã de chuva, sozinha.
Mãe tinha ido ao rio buscar água.
Saí, enlouquecida, pelas ruas molhadas
chamando por mãe, e caí numa poça d'água.
Ali ela me encontrou, encharcada de lágrimas.

Pai comprou para mim uma sacola
cheia de lápis de cor e um caderno.
Era o meu primeiro dia na escola.
Não sei quem foi que me levou
e lá me deixou, fora do mundo.
Sei que chorei, chorei muito
e chamava por mãe, em desespero,
molhando, inteiro, o caderno de desenho.

Ainda tinha seis anos -
como duraram meus seis anos! -
quando mudamos de rua.
A rua da ilha nos esperava
com um rio de cada lado.
Nos desamparos de dezembro
só nossa casa se salvava
das chuvas nefastas.

Só nossa casa se salvava
Enquanto o mundo e as outras casas
caíam. Foi assim muitos anos.
Mãe tirando as goteiras
Pai tomando remédios
Nós observando a chuva.

Foi assim muitos anos.
Mas tantas foram as dúvidas
E tantos foram os sonhos
que todos, um dia, fugimos.
O que restou nessa casa
são só fantasmas antigos.

Ah, mas nos meus quatro anos
nos mudamos para Andaraí.
Eu e minha irmã vestíamos,
como se fôssemos iguais,
o mesmo macaquinho preto
com várias bolinhas brancas.
Fomos de caminhão, no fundo,
Juntas com toda a mudança.

Nós duas nos misturávamos
Aos parcos móveis, na carroceria.
E fazia sol, é bom lembrar
quando chegamos à cidade.
Descemos na casa de seo Augusto
E tudo era tão grande, e tão curto
Que apenas lembro o vulto
de um menino na cozinha
Brincando, sozinho, em meio
Àquela casa vazia.

É só essa a imagem que ficou
como lembrança daquele dia,
primeiro dia em Andaraí:
Um menino na cozinha.
Onde estará esse menino?
Existirá ainda essa cozinha?

Eu chorava o dia inteiro -
Disso eu bem me lembro.
Só não sei por que chorava.
Derretia-me em lágrimas.
E todos os dias, de suas casas,
os vizinhos esperavam
o meu choro pontual.

Chorei a minha infância inteira.
E tinha medo do escuro,
De ir para a escola,
De mãe me deixar,
De pai não voltar,
De minha irmã me bater,
De não conseguir entender
Tanta coisa!

Como, por exemplo,
um homem apanhando.
Vi isso aos nove anos
Da janela lá de casa.
A rua toda olhava
com enormes olhos parados.

Ah, e eu tinha um ano
E vi pai saindo por uma estrada
Que dava para São Paulo.
Enquanto mãe lavava roupa, nessa tarde,
Minha irmã se descabelava,
aos dois anos, de saudade.
E o horror era tamanho
que eu roubei essa sua lembrança
como se rouba um triste sonho.



(Salvador, 17.05.05)

Imagem: "Regreso a mi infancia", por Alitas.
(www.flickr.com)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Meu altar


Olho agora para Santo Antônio, trinta e dois anos de idade, segurando um menino vestido de branco. Está ali no altar, numa prosa silenciosa com Iemanjá. Depois de anos conversando com Cosme, rindo com Damião, deixou seu lar antigo dentro de uma caixinha de velas, numa manhã de domingo, enrolado no algodão. Penso comigo: será que ele se adaptou? Afinal foram anos naquela casa, numa prosa cotidiana sem imprevistos. Dizem que Cosme e Damião são traquinas; mas tudo um dia cansa, e Santo Antonio deve ter se cansado de ouvir deles os mesmos causos. E agora? O que prosa com Iemanjá? Será que os dois gostaram das flores que comprei ontem? Três rosas: duas brancas e uma vermelha. Disputaram as cores? Oh, gostaria de entender conversa de santos. E os outros, que os rodeiam? São Jorge e Nossa Senhora do Desterro? Nossa Senhora das Graças, da Penha e meu Anjo da Guarda? O que acharam do chegante? O que falam em tão grave silêncio? O que acham dessas fitinhas do Bonfim? Desse mar, esse grande mar no copo, das adormecidas e tão sérias pedras, desse desespero trágico de existir? É, porque os santos existem, em efígie, no mais entediante dos descansos...



Imagem: www.flickr.com

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

canção para adormecer o amor


Ando tão longe. Na mesma nuvem. Há tantos anos! Há tantos anos, meu amor! Continuo no sonho, lúdica e insana. Minhas tranças enormes saltam da nuvem, em dança sinistra: te chamam, enlouquecidas e brancas. Envelheço. Rapunzel às avessas, não penso/ em salvação. Penso somente em ti/ dessa nuvem desfeita,/ que agora/ cai ao chão.



Imagem: "Nuvem de gotas d'água", por Flavio Cruvinel Brandão.
(www.flickr.com)