sexta-feira, 4 de julho de 2014

Não consegui, sozinha, gerenciar minha casa. Já que não suporto sujeiras e não tenho ânimo para limpá-las e curto muito mais ler um livro, contratei uma nova empregada. Essa tem ligações com São Paulo; no sotaque e no jeito civilizado. Chama água sanitária de "Cândida". E conversa comigo enquanto lava os pratos, olha para trás e diz que tem um namorado em Salvador. "É, dona Ângela, eu pegava, sabe, voos noturnos e vinha de São Paulo ver meu namorado, aproveito a vida."
É uma profissional, percebe-se pela discrição e talento para servir uma mesa.
E parece-me que gosta muito do que faz. Cozinha bem.
Só que reclamou hoje ter recebido uma empreitada daquela. Convidada para dormir com uma amiga de uma amiga, pago, claro, essa amiga da amiga quer prosa todas as noites antes de cada uma se recolher para seus respectivos quartos.
- Ai dona Ângela, está complicado. Ela precisa arrumar uma dama de honra. (Diz assim com bastante calma e elegância.) Ela conversa muito, sabe? Muito solitária!!
Fico me perguntando se também sou conversadeira. Acho que não. Só dou brecha para prosa na hora das refeições. Fora disso fico no escritório lendo e escrevendo. Ela nunca me interrompe. Muito decoro.
Espero que tudo dê certo dessa vez.
Sinto minha casa habitada. As paredes parece que conversam entre si, e os cômodos dialogam pela parede. Há algo no ar que quebra a solidão nefasta dos últimos tempos.

Leide


Leide era uma senhora tipo clariceana, sabe, meio altiva e meio triste, sempre com óculos escuros, solitária, não constituiu família. Vivia de favores de parentes, de parcos abraços de aniversário e de visitas de compaixão. Uma quarentona, quase beirando os cinquenta, queria amar e não tinha a quem. Até que um sobrinho longínquo, lá das bandas do Ceará, lhe ligou. O telefone que nunca emitia som, emitiu naquela tarde. Ele estava se mudando para São Paulo, passara no vestibular de filosofia, e precisava de um apartamento, algo pequeno, para alugar. Nossa, que felicidade a de Leide! Arrumou-se na mesma hora, pegou o primeiro táxi e foi olhando as placas nos apartamentos. A cada um que entrava, feliz, com seus óculos escuros, ela exclamava uma mentirinha boa, sabe, uma mentirinha que lhe completava a solidão:
- Sabe, é para meu filho, quero algo bom!
Visitou vários apartamentos, sempre dizendo o mesmo texto, às vezes com uma mentirinha ainda mais terna:
- É para meu filho, sabe, um rapagão bonito, que eu amo muito, e quero encontrar o melhor lugar para ele!
Ai Leide, como dói a vida...






terça-feira, 13 de maio de 2014

Quero o teu silêncio de pano mais ordinário, de chita, mas também de madapolão. Teu silêncio rico diante de minha tristeza, porque todo ser humano tem direito a ela, à tristeza, sem precisar ouvir conselhos de Osho e de autoajuda. Se sou mulher que ama demais? Sou sim, e daí? Mas não me aconselhe a ler esse livro, meu amigo, não me aconselhe, porque senão não sei do que serei capaz; de dormir dez dias, satisfeito? Aos invés de qualquer palavra, apenas escute o meu silêncio e tente lê-lo. Vele meu sono estúpido diante desse sol chamando pela vida. Ave, deixe o sol chamar pela vida, porque nem todo mundo está a fim de sol. Veja os sertanejos por exemplo, querem chuva. Queria assistir contigo Deus e o diabo na terra do sol. Queria que chorasses naquela parte das bachianas em que Corisco roda com Yoná naquele beijo mais comovente do cinema; cinema, essa espécie de teatro da alma. Há coisas felizes, e que só a arte e a compreensão trazem. Chamo amor de compreensão, porque amor como chamam por aí não há. Compreensão. Palavra mais difícil que essa, impossível. Compreensão: você descascando uma laranja para mim, por compreensão, por zelo. Amor? Essa palavra não me diz mais nada. Oca, como as novelas da globo. Prefiro sentar contigo nos trilhos de um vagão que desapareceu. Mas que a qualquer momento poderá aparecer, de súbito, e nos engolir.

Cotidiana

Enquanto os holofotes ficaram no Facebook - terra hollywoodiana - aqui posso sentir a paz das montanhas, com total reintegração de posse. É, demiti a moça que só ficava de costas na pia. Daqui a pouco ela vem acertar as contas. Gozo agora a solidão dos malditos, sem gatos, como Orides; sem gravação de voz dos espíritos, como Hilda. Mas fazendo aqui por dentro uma casa do Sol. A moça chegou, fomos acertar as contas e por incrível que pareça ela conversou como nunca! Contou toda a sua vida. Conversou, e foi na pia lavar os pratos (que nem precisava mais, já que fechamos as contas). De lá da pia ela conversava e virava para mim, contando os detalhes que seu filho mais novo fazia quando pintava o sete. Ela estava feliz, talvez por ter sido demitida. Acho que também não se sentia bem trabalhando aqui em casa. Nunca, nunca entenderei o ser humano. Apenas me comovo, sempre. Essa comoção maldita que muitas vezes me enfraquece. Mas não enfraqueci. Reintegrei-me à minha casa. O sol é forte, e frio. Sol de junho. Mandei por ela - para sua filha grávida - um ursinho de pelúcia que vivia de se esconder pela casa. Um ursinho marcado de lembranças que quero apagar. Sua filha construirá novas histórias com as minhas memórias deletadas; afinal todo urso de pelúcia tem um artifício de esquecer seu dono e suas lembranças lacrimosas. A casa antes pequena ficou grande. Eu dentro dela posso correr, me deitar no chão, conversar sozinha.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

preciso sair da raiva e entrar no amor. Botar o facão do lado de fora da casa e cuidar de fazer um café quentinho. Esperar a noite chegar com um candeeiro e um radinho de pilha. Preciso aprender a dormir cedo e acordar juntamente com os pássaros. Recolher tarefas gostosas de fazer, abrir a janela do escritório e ler um livro de poesia. Seja lá onde estou, preciso voltar para a roça. Há um milharal grande aqui dentro, uma terra vermelha e pássaros pretos cantam que dá gosto. E quando a gente abre os livros - aprendi isso desde menina - a casa se enche de gente boa; gente interessante. A vida ganha sentido. Vou agora servir um café para meu querido Carlos Pena Filho. Que, coitado, desde sua ida tão cedo, aos trinta e poucos anos, na avenida Caxangá, nunca mais sentiu o gosto de um café fresquinho, coado em coador de pano. Lá no céu há café expresso, Carlos, meu querido Carlos? Acho um horror café expresso, Carlos, um horror.

nem tenho paciência para colocar título nesse texto

Os primeiros índios que aqui moravam ao darem de cara com os primeiros colonizadores portugueses endoidaram com seus badulaques. Olhavam, tocavam. Podemos dizer que em primeira instância, óbvio,os portugueses foram muito dos bem recebidos. Restou-nos portanto como herança, a nós brasileiros pós achamento do Brasil, essa adulação com os badulaques dos estrangeiros. Basta, pois, uma criatura branca travar a língua, lá vai o povo adular. Basta uma criatura de olho claro pintar uma tela por aqui vira um grande artista. E por aí vai. Se eu pudesse enxotava um por um. Isso vale também para os estrangeiros do sul: quem vem daquelas plagas do sul do brasil e que se acha europeu e chega por aqui botando banca de bonito. Poderíamos nós cá do nordeste brasileiro mandar tudo se catar. E quem é tirado a artista, se catar primeiro: vão embora maleditos com suas telas de enganar besta e seus versos equivocados ganhando concurso do lado de cá só porque parecem gringos. O ideal seria botar esse povo todo num caminhão e mandar para o sertão mais seco do nordeste: sem água nem para lavar o sovaco. Aí sim iriam virar gente de verdade.

sobre minha casa

Em muitos países não existe essa de ter empregada doméstica. Estou refletindo muito sobre tais coisas nos últimos dias. Minha casa é pequena, e quero tê-la só para mim. E a moça que há dois meses vem todos os dias fazer comida, arrumar a casa, lavar roupas,esses quefazeres que uma casa exige, não fala comigo. Vejo-a sempre de costas na pia. Se falo com ela, ela responde de costas mesmo, grungunando. Como ainda não sei gerenciar uma casa, deixo por sua conta e risco o cardápio. E eu nem preciso adivinhar o que me espera na mesa: frango, um feijão mumificado, um macarrão já morto desde domingo, e que ela reaproveita, e uma salada sem qualquer estética. Perguntei a ela porque o frango não foi utilizado para omelete, e ela responde secamente, de costas, que eu disse que não gosto de gorduras. Replico dizendo que ela própria um dia fez um sem gordura. Digo, "você também poderia fazer uma panqueca". Aff, ela de costas repete: "panqueca". Por que, misericórdia divina, todo dia treino para despedi-la e na hora agá falta coragem? Todo dia digo pra mim mesma: de amanhã não passa. O que não passa é minha morredeira, já que a cama virou meu esconderijo; sim, me escondendo DELA; para não ter que vê-la. Agora, nesse momento em que escrevo isso, vejo-a de costas sobre a pia. Tudo na criatura me enerva, me dá impaciência e infelicidade. Penso: posso muito bem voltar a ter minha casa só para mim. Posso até aprender a cozinhar. Posso até aprender a gostar, quem sabe, e lançar um livro de receitas? Uma coisa é certa: quero minha casa só para mim. Minha pia só para mim. Nunca, nunca ficarei de costas na pia. Eis o trauma. Lavarei um prato e olharei para a porta, em busca de alguém, alguém. Existe sempre alguém atrás da pia. É isso que treino dizer para essa moça no dia em que tiver coragem de despedi-la. E não vai demorar. Amém.

domingo, 11 de maio de 2014

de volta para o aconchego

Ser fiel a si mesma também implica sair de cena. Fechar a cortina por exemplo. Cortina rasgada, velha,como é a cortina do Facebook. Deixei aquilo lá, porque quero continuar fiel a mim mesma, e ali é teatro de quinta categoria. Saí por puro instinto de sobrevivência, senão iria morrer verde de raiva, em tempos do retorno de Hulk. Volto sem poesia, mas com memória, que esta é a minha assinatura. Volto com Andaraí, minha terra, na alma, pulsando, transcendendo uma mera topografia. Ontem assisti novamente ao "Cascalho". Um primor cinematográfico. Volto então com Tuna Espinheira, com Herberto Sales, com a força dessas duas obras: literária e cinematográfica. Volto para meus discos, meus filmes e meus amigos. Abaixo, os dois grandes artesãos: um da palavra verbal (Herberto) e o outro da imagem (Tuna Espinheira) "