sábado, 30 de junho de 2012

cidades


É preciso muita atenção ao escolher a cidade em que você vai morar. A cidade é como a casa, a família, os pertences mais íntimos. Cada praça, cada paralelepípedo, muro, esquina vão estabelecer uma conexão com os seus órgãos vitais. O estrangeiro que chega a um lugar que nunca viu, logo irá conhecê-lo através desse contato com suas percepções, sua própria história, suas memórias em letargia. Muitas vezes uma mangueira numa dessas ruas sem saída pode ser a salvação de uma vida em exílio. É possível sim ficar em completo exílio numa cidade, mesmo com suas praças convidativas.
É bom lembrar que em toda e qualquer cidade, além dos vivos sabidos em números de estatística, há também os mortos, os seus mortos, arquivados. Eles são sempre muitos, guardam seus hálitos em ventos e dentro de alcovas particulares. Os mortos têm sempre muita intimidade conosco, nós que somos novos habitantes de um lugar só deles. Por isso é preciso cuidado, atenção e afeto; afeto, mesmo quando tudo parece hostil. Como poder amar uma cidade que não traz nossos traços, nem nossa memória, e boceja a toda hora em que passamos por ela? Como poder amar suas motocicletas barulhentas, seus carros de som desesperados, suas curvas em precipício?
Lembrei-me agora de uma cidade que conheci há muito tempo atrás: suas ruas eram praças largas, larguíssimas, e a impressão que tínhamos era que, ao andarmos por elas, as casas iam dando pra traz, cada vez mais, ficando cada vez mais longe, nos deixando num campo aberto.
Não há como negar: há cidades antipáticas, grosseiras, frígidas, feias.
Também há cidades que nos trazem de volta a nós mesmos: palmeiras, casarios, muros, esquinas, heras, tudo diz coisas para nossa alma muda. Há cidades sedutoras, maternais, belas, introspectivas, vivas. Gostaria de um dia, por exemplo, tomar chuva numa viela em Paris.
Gosto muito de cidades, pois todas têm história escondida. Cada soleira abandonada de uma casa nos convida a entrar e a conhecer o invisível. Se deixarmos nosso sobretudo e chapéu na entrada, seremos convidados para uma festa em preto e branco, como nas fitas do cinema antigo.
Ah, as cidades! Gostaria de poder conhecer seus traumas mais íntimos; por que por exemplo nessa avenida há tantos atropelamentos, e naquela os gemidos lacerantes de um vento. E naquela outra uma indiferença palpitante. E nessa minha, esse asfalto grosso, concreto, condutor de carros velozes, sempre indo, sempre indo, sempre indo, incessantemente...

quarta-feira, 27 de junho de 2012

meu, nosso e vosso Destino


Primeiro eu percebi uma coisa estranha na minha bochecha esquerda. Ela estava meio rasa. Achei estranho; e a partir daquele momento, toda vez que ia ao banheiro verificava o rosto no espelho da pia. Depois, com aqueles espelhinhos de bolsa, numa tarde em que me espreguiçava tentando encontrar espinhas e cravos, vi que meu rosto caía quando eu abaixava mais a cara. Na mesma época, minha amiga de infância me ligou só pra dizer que fazia ginástica em casa quando, na hora de deitar-se com o rosto para o chão, incidentalmente viu um espelho por perto. Ao descer e subir e, por último, descer, ela viu muito mais! Viu, claro, no espelho, seu rosto descendo também. E me ligou pra comunicar isso e pra pedir que eu fizesse o teste. Ri, desconsiderei e não fiz. Portanto, foi com grande assombro que constatei em mim também naquela hora a minha cara caída. Descobri, de quebra, outra coisa: os famigerados pés de galinha plantados no canto dos olhos.
Desse tempo longínquo (mais de dez anos) até hoje, diariamente há uma sucessão de descobertas, de surpresas. Lembro quando percebi um esgar em minha boca. Pensei: não; estou feliz hoje, não estou desdenhando a vida. Mas o esgar estava lá: os cantos da boca caíam. É impressão minha ou meus lábios estão mais finos?, perguntei ao Nada, e ele não respondeu. Fui a uma foto antiga minha e verifiquei perplexa essa nova transformação. Perguntei de novo ao Nada: cadê eu? Agora ele respondeu: não sei.
A cada dia desaparece uma parte do que fui. Agora é a vez das orelhas. Ao trocar um brinco, ontem, notei o inevitável: minhas orelhas pendendo para baixo. Retirei imediatamente os brincos e examinei bem perto do espelho: é, elas estão indo, considerei com tristeza.
No seu livro sobre a velhice, Simone de Beauvoir o introduz trazendo a história da descoberta da velhice feita por Buda quando este ainda era jovem. Por estar sempre fechado em seu palácio, Buda não sabia que existia a velhice. Um dia escapou pelos arredores e o que primeiro encontrou foi um homem velho, alquebrado, apoiado em uma bengala. Ele ficou perplexo, sem entender o que era aquilo. Quando o cocheiro lhe explicou que ali se tratava de um velho, Buda disse:
"Que desgraça é não enxergarem a velhice os seres fracos e ignorantes, ébrios do orgulho da juventude! Voltemos depressa para casa. De que valem folguedos e alegria se a velhice vindoura já habita em mim?"
Não sou e nunca fui iluminada, obviamente. Por isso só descubro agora, na maturidade, a velhice me espreitando, com seus olhos fundos. Jovem, nunca me interessei pelo assunto, não queria descobrir naquele tempo minha "velhice vindoura" já habitando em mim. Sou, como todo mundo, ignorante de meu Destino.
Sarcástico Destino: um dia marcarei uma audiência contigo. De fotografia em fotografia me dirás a que vim ao mundo. Aqui, dirás, para chorar, ali para rir, ali para escrever, acolá para descobrir. "Descobrir é a inteira revelação", reiterarás com solenidade. E nada mais dirás. Eu sei.



segunda-feira, 25 de junho de 2012

crônica familiar


Quando chegar o Juízo Final não irei para a fila dos julgamentos. Paguei todos os meus pecados, e adquiri entrada grátis para o céu, o paraíso, o éden. Tudo isso porque ontem o Destino me incumbiu de levar mãe para ver o show de Luan Santana, claro, a pedido dela. Chegando lá, escutei o comando maternal, bem nítido, saindo de sua boca; esse comando foi traduzido assim:  ela queria ficar bem perto do palco. O show estava marcado para as dez, e às nove - hora de nossa chegada -  já tinha gente saindo pelo ladrão. Perto do palco lá fomos nós. Às quinze para as dez as pessoas começaram a enlouquecer, pois o locutor surgiu gritando que Luan Santana já estava vindo, já vinha, já estava lá, mas só daria as caras às dez em ponto. O povo, eriçadíssimo, foi chegando para perto de onde estávamos eu e mãe. Um empurra empurra dos diabos nos levou para mais distante do palco, e os altos tomaram a frente dos baixos. Eu somente não acreditava que amor de filha pudesse ganhar tais proporções: me sentia ridícula ali no meio daquela meninada histérica, e não podia dar no pé, claro, pois que me preocupava com a integridade física de mãe. O pior é que, naquele apertuche, ela, em plena generosidade, abria caminho para o povo. E tome passa gente, passa boi, passa boiada, até passarem uns dez soldados armados com cassetetes; não sei como não atravessaram nosso corpo, tamanha força moral e física. Quando o tal Luan (que mais parecia deus) apareceu, percebi que nossos ouvidos estavam quase que colados na caixa de som. O som fortíssimo bateu dentro dos meus intestinos, cabeça, tronco, costas, dedos, e eu pensei que iria enlouquecer. Olhei para mãe, e constatei que ela estava miudinha, amassada, mas feliz; disse que o som não estava atrapalhando não.O que lhe atrapalhava era o cabelão de uma menina na sua frente. A menina ouviu e retrucou que ela não tinha nada a ver com isso. 
As pessoas empurravam eu e mãe, sem dó nem piedade. Nunca me senti tão humilhada. Mãe só reclamava que não estava conseguindo mais ver Luan Santana (claro, todos os altos do mundo reclamaram seus direitos), porém não achou ruim o destempero do som nos ouvidos não. Eu disse: se ficar aqui enlouqueço. Ao ouvir isso, preocupou-se comigo e aceitou buscar um lugar menos apertado, sem risco de morte. E fomos abrindo caminho na multidão de gente. Nesse esforço desumano, meu cabelo ficou preso no anel enorme de uma moçoila, e eu senti uma dor terrível no meio da cabeça; tive que fazer meia ré para tirar o cabelo do anel da menina, enquanto pegava na mão de mãe para encontrar passagem. Encontramos um lugarzinho mais distante, mas dava pra ver as pernas magrelas de Luan. Mãe, com a cara descontente: agora reclamava que não via mais nada, pois a luta de ombros com as outras pessoas, os altos, continuava, só que com a desvantagem de não ver de mais perto o cantorzinho de sua predileção. A essa altura eu fazia um esforço pungente para ter paciência com mãe. E o tal Luan no palco com pinta de galã, de deus, e aquele mar de moças desvairadas. Só que o repertório dele foi acabando, e de repente começou a cantar música de Teló. Agora só ouvíamos a sua voz, porque o corpo tinha sumido de órbita junto com o palco, tudo isso em virtude do poderio corporal que a avalanche humana possui. Eu dei graças a Deus por essa perda de visão nossa com relação a Luan, e rezava para mãe pedir pra ir embora. Foi nesse momento que ela soltou tal preciosidade:
- Soube que num show, ele teve disenteria no palco.
Eu:
- No palco???
Ela:
- Foi.
Eu:
- Nem pra ele ter disenteria agora.
Ela se acabou de rir, e na boa vontade aceitou ver o tal homem num telão, colocado em lugar mais calmo do bosque. Eu apenas olhava, de soslaio, aquele fenômeno da mídia que agora cantava sentado. As meninas, todas devidamente de botas e sapatos de salto alto, faziam corações com as mãos enquanto ele dizia de lá do alto "beijo no coração de vocês". Uma fã alucinada mandou uma carta, que o locutor leu no início, em que pedia para ser sua nega. Outra fã subiu no palco e começou a dançar tão colada, se esfregando no cantor, que dois homens da produção a tiraram às pressas dali.
Não sei se vale a pena estar contando tudo isso. Afinal o tormento acabou antes da meia noite. E, graças a Iemanjá (é, pedi proteção pra ela na hora mortal do empurra empurra)  chegamos sem um arranhão em casa.

P.S.: Mãe passa agora pela sala, me pergunta o que estou escrevendo e eu digo. Ela ri e constata:
- Quá! Luan é muito frágil; cantou quase todo o tempo sentado.



Imagem: Eu e mãe fazendo pose para o retratista, pós show de Luan Santana

quarta-feira, 20 de junho de 2012

cidade Facebook (quem diria, estou lá)


Sabe uma tabaroa chegando na cidade grande? Fui eu chegando ontem na cidade chamada Facebook. Gente, nunca me senti tão atarantada; só quando, aos seis anos, fui a Salvador pela primeira vez. Por que eu fui a Salvador bem me lembro: estava com hepatite e precisava de tratamento. Por que eu fui para o Facebook já não sei responder direito. Deu um tino no juízo e de repente estava pedindo a alguém para me cadastrar. Será que eu fiz isso mais para ter acesso à vida alheia, com fotos, mensagens e tudo? Será que era para ter com quem conversar nas noites solitárias? Ou será que foi por mero instinto? Acho que foi pelas três coisas.
O que me deixou imensamente assustada é que em menos de uma hora depois do cadastramento já tinha 40 pessoas batendo na porta querendo entrar. Ou seja, quarenta amigos querendo ser adicionados. Levei um susto horroroso. O que fazer? Quem me cadastrou só fez cadastrar e foi embora. Esperei encontrar depois  esse anjo torto e ele me ensinou a ir clicando um a um nos amigos que queriam ser adicionados; ou seja, me ajudou a abrir a porta para esse povão todo entrar.  E mal ia abrindo e chegava mais e mais gente chamando. Fiquei espantada, a me perguntar de que toca saía tanta gente conhecida. Muita gente que gosto, alunos inesquecíveis, pessoas amadas por mim e desaparecidas; agora me acenando, com foto e tudo. Aí eu aprendi rapidinho a clicar na aprovação, abrir a porta. Entretanto, preocupada. Alegre por encontrar velhos amigos, mas preocupada; será que vou dar conta desse negócio?
O Facebook é uma cidade difícil de andar: muitas tabuletas direcionando, pedindo preenchimento (as tais "fichas") e que só fazem me desorientar. Não sei nada, nada... Como botar fotos? Como botar músicas preferidas? E os livros? E os filmes? Nem dizer que fiz curso superior na UEFS consegui; quis dizer que fiz pós graduação na UFPE e saiu que fiz curso superior na UFPE; quis consertar e não consegui. Meu anjo torto, veterano do mundo virtual, também não conseguiu.
Estou perdida, pois então, na grande Metrópolis.
Hoje à tarde, ao conversar com esse meu anjo, lembrei de Roberto Carlos cantando, na década de 70, "eu quero ter um milhão de amigos..." Claro, o Rei cantava essa ambição de maneira hiperbólica; sabíamos que ele nunca iria conseguir ter um milhão de amigos (naquela época). Eu ria comentando isso quando o tal anjo torto, diante do que ouviu, fez a seguinte constatação: "É, hoje rola". Pois é, hoje rola ter 1 milhão de amigos e muito mais.
Conheço alguém que traz o sonho de ter cinco mil amigos nessa cidade pós moderna chamada Facebook. Deus seja louvado.


Imagem: cena do filme "Metrópolis" (1927), de Fritz Lang.

terça-feira, 19 de junho de 2012

a verdade âmago


Não tenho dúvidas que o grande livro de Clarice Lispector é A Hora da Estrela. O meu exemplar, presente de uma pessoa querida, traz a data: "17.11.90". De lá pra cá já o percorri muito, e possui rabiscos feitos a lápis, anotações de vários tempos, várias leituras. A cada nova leitura o livro se ergue, cada vez mais. A cada nova leitura, percebo mais a genialidade de quem o escreveu. Tenho minhas conhecidas brigas e implicâncias com Clarice, mas nesse livro ela consegue a unção absoluta, o momento divino da iluminação; e tal  iluminação nos pega em golpe, como um soco no estômago e uma felicidade. O livro - sabe disso quem o leu, claro - é a construção do livro; Macabéa e Rodrigo S.M., seu autor, são personagens, e Clarice é Deus - aquele que cria destinos, faz nascer e faz morrer.
Hoje mais uma vez percorri A Hora da Estrela inteiramente, me deliciando ao constatar tamanha genialidade ali inscrita. Na página 78 parei e fiquei pensando muito, ao ler esse trecho:

"Sim, estou apaixonado por Macabéa, a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiúra e anonimato total pois ela não é para ninguém.Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela. Quisera eu tanto que ela abrisse a boca e dissesse:

- Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém, todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha." (grifo meu)

Como não se deter diante desse grito?
Como não emudecer o corpo e pensar?
Aliás, como não roubar para nós essas palavras que o autor queria que Macabéa pronunciasse?
Ora, somos sozinhos no mundo, e todos mentem.
Cadê e o que é a verdade?
Nenhum ser, de fato, fala com o outro?
É mesmo: a verdade só me vem quando estou sozinha (não, não vou aspear).
Sozinha, vejo todas as mentiras. As minhas, as suas, as vossas, as de todos. Vejo os hiatos que nos distanciam. Somos péssimos atores, canastrões. E burros: achamos que não somos vistos.
Oh vejo sim sua mentira, é doce e eu acredito nela, minha amiga. Vês? Acreditas também nas minhas.
Meu amor, te vejo nu, todos os dias; não adianta vestir-se.
Mãe, jurei sempre dizer a verdade quando me ensinaste o pai nosso. Mas só digo a verdade dentro de mim: ela vem enorme, principalmente antes de dormir. A verdade inteira, sem palavras, sem imagens, sem signos: nem literatura nem cinema; a verdade âmago, como diria Clarice.


Imagem: capa do meu exemplar. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 9a edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

sábado, 16 de junho de 2012

sábado, no confessionário

Cedo aprendi a amar: desde a coitada da formiga que poderia morrer com um pisão de pé meu, e que eu resolvia salvar, até os cabelos alheios.
Aos oito, nove anos eu me sentava na porta de casa com um pente na mão e ia chamando todos que passavam na rua, indistintamente, para pentear-lhes os cabelos. Alguns acediam, eu caprichava nos penteados, e não sei como não foi desse modo que peguei piolho.
Na escola minha prática de amar era absurda: eu entrava na fila da merenda duas vezes para alimentar minha colega mais gulosa e malvada. Em troca ganhava cascudos.
Muita gente chamava isso de bestagem, de idiotice, de ingenuidade.
Digo que continuo sofrendo disso aí.
E que fui assistir "Noites de Cabíria" e, tal como a protagonista, acreditei na conversa bonita do contador; e, tal qual Cabíria, me vi perto do rio descobrindo que ele iria me matar. Deitei na grama, tal Cabíria, morrendo de chorar, me descabelando; também descobrindo que eu era ela, como fui Gelsomina, como sou Macabéa.
Minha educação sentimental é por demais dolorosa.
Os livros não conseguiram me livrar dessa culpa infernal de ser eu, nessa carteira de identidade antiga, feita quando ainda estava no colégio.
No colégio eu era gorda e sem jeito. Vejo bem isso nas fotografias daquela época. Sempre fui sem jeito, não sei estar na vida como todos estão, confortáveis como numa festa. Na festa é onde me sinto mais desconfortável: lá a alegria é o mais cruel imperativo.
Em toda festa que vou me lembro de Guilherme Arantes gritando querer o escuro de seu quarto à meia noite, à meia luz.
Acho que são essas mãos que não ficam bem no bolso, nem soltas. O olhar que não sabe onde se fixa. É sempre tão melhor não ter obrigação de falar. Por isso meu repúdio às reuniões, ao namoro sem interlocução, ao médico diante da consulta.


Imagem: Fotografia de Robert Parkeherrison. In: www.google.com.br

segunda-feira, 11 de junho de 2012

profunda oração


Tive tantos namorados: um que apenas tocou minha mão; outro que sequer me amou, e aquele que, na rodoviária, ao se despedir, me deu um saco de pipoca. Guardei o saquinho, hoje bastante fino e amarelecido, na caixa bordada com laço de fita. Não esqueci não, moço, aquela despedida eterna numa lanchonete de Feira, quando todo mundo passava vivendo em plena manhã de segunda; nunca mais vi aquele mormaço: seu rosto desapareceu nele, assim como todas aquelas pessoas, na multidão sem nome. E o seminarista? E o gari? E o poeta falastrão? Não, nem todos os meus namorados tiveram chapéu. Mas um eu me lembro bem, tinha um paletó antigo, era quase um homem do outro mundo. Em compensação outro era por demais terreno, gostava de carnaval, e de história da religião. Os mais amados foram os artistas, os cabeludos, os tocadores de música. Desses minha alma é devota, em profunda oração.


Imagem: "Flor de romã transformada". In: www.google.com.br

em busca do tempo

Um amigo na década de 90, bastante inteligente, sensível e culto, tinha uma fita cassete de Reginaldo Rossi. E enquanto tocava no seu toca-fitas "Mon amour, meu bem, ma femme", ele dizia com a voz emocionada: "Como não sentir um negócio por dentro ao ouvir isso? Dói!"
É verdade. Dói.
Sem contar com aquela  menina da cadeira de rodas e da roda gigante de Fernando Mendes. E aquela do hospital, na sala de cirurgia, de Amado Batista. Músicas que, quando menina, ouvia chorando, imaginando as cenas, sofrendo com aqueles personagens profundamente trágicos.
Teve outra que marcou minha infância; a história da música resumia-se mais ou menos nisso: o homem bateu na porta da sala, a mulher saiu pela da cozinha, ele perguntou onde ela estava, ela respondeu da casa da vizinha, etc, etc. No dia em que a rural de pai virou, estava tocando essa música no rádio lá de casa. A música em si não é triste, fala de marido traído, mas, relacionada à hora em que soubemos do acidente, ganhou uma tonalidade cinza como aquela segunda-feira da década de 70.
Música é perfume, de fato.
E "Luzes da ribalta" na voz de José Augusto?
Dói; Andaraí sai do retrato na parede.
Depois vem Legião Urbana, a festa do clube, parece cocaína mas é só tristeza; eu tenho muito tempo... Era isso o que eu não pensava: que eu não tinha todo o tempo do mundo.
Paulinho Pedra Azul, os mineiros todos, Lô Borges, Dércio Marques, Tadeu Franco.
Uma menina de cabelo comprido rebelde, uma franjona na testa, correndo atrás de tocador de violão. Cantando nas pontes, sob o coaxar dos sapos. Uma menina engraçada eu fui, afinal de contas, mesmo com aquela melancolia bem vista nas pernas grossas. Uma menina sem uma marca no rosto.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Baby



para Mã


Onde se escondeu a menina
que colocava rabo de papel nos transeuntes?
O que foi feito dela, a Baby de Raul Seixas,
namorando escondido?
O que foi feito de seus treze anos,
límpidos, como vitrines de outro mundo?

Tenho saudades dela,
livre da moral dos homens.
Tenho saudades dela,
primitiva, como os sonhos.

Seus cabelos cacheados estão presos
na fechadura de uma porta antiga.
É preciso que anjos terríveis,
aqueles que transgridem no céu,
soltem seus cabelos, esses cachos,
tragam de volta a menina.


terça-feira, 5 de junho de 2012

réquiem

Tem coisas que a gente tem vontade de esquecer. Daquele domingo, ao voltarmos sem ele. Tomei banho e acordei no outro dia assustada ao ouvir minha irmã falar ao telefone: "pai  morreu ontem". Não dava para acreditar, levei um susto e quase saí correndo para desmentir. De fato, ele não tinha vindo com a gente. Lá em casa ficaram sua camisa de listras, suas calças, seu paletó verde, seus sapatos. Nós três estávamos numa outra cidade, depois de tudo, para tentar esquecer. Desde esse dia - 05 de junho de 1994 -, eu, minha irmã e mãe não paramos mais em casa, somos estranhas espécies de nômades. Pensar que hoje faz dezoito anos que ele nos deixou, involuntariamente, me entristece. Não sou dessas fiéis que aceitam com subserviência a vontade de Deus; na verdade queria saber mais sobre essa vontade; sou por demais curiosa com essa vontade. Dia 05 de junho para mim é sempre dia de luto, dia fechado, sem alegria. Hoje sequer abri a porta da rua.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

um presente

Não gosto de - como dizemos na minha terra - me "amostrar", publicando coisas que acontecem comigo, mostrando nesse blog o que dizem, elogiosamente, de minha poesia. Mas o presente que recebi na manhã de hoje me deixou muito feliz: pois mais do que dizer de minha poesia disse de minha alma. Eu não sabia que minha alma desesperada produziria no olhar de alguém significados tão belos. Falo do poema de minha amiga Denise Magalhães, postado no blog http://vertigensclandestinas.blogspot.com e copiado abaixo:


A poeta
               (Para Ângela que me ensina a beleza e a liberdade, sem saber)

Houvera de andar, por aí
A colecionar detalhes
E tecer em versos
Raras minúcias
Fina agulha
No abismo mais temido da alma
Docemente atingida
Devassada
Sem saída
Houvera de andar, por aí
Escolhida pelas palavras   
Para o dizer
Mais improvável
Mais pungente
E provocar
Silenciosamente
O estranho grito de se ser
Houvera de andar, por aí
Com a força  latente da terra
Dos rios
Do mato
Impregnadas com suas garras
Na rebeldia de seus longos cabelos
Que ela esvoaça, por aí
Suavemente
E os bobos nem percebem
 Andar-aí.

Denise Magalhães