quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Prece

Iemanjá, querida mãe, está chegando o dia dois de fevereiro, dia de tua festa no mar. Não poderei, mais uma vez, ir ao Rio Vermelho levar flores pra ti, muitas vezes, como fiz, furando a fila. Mas cuida de mim minha mãe, nesse confronto com a vida; nessa reclamação sem fim que é o mundo. Ensina-me a alegria na hora de batalhar: a usar sempre a caneta ao invés da faca. Oh mãe das águas, dê-me um banho de mar aqui mesmo onde estou, sem precisar o recurso do sal grosso. Com teus fluidos vitais, minha mãe, cicatrize todos os meus chacras enfermos. Com tua luz de inspiração, mande-me um poema sagrado pelas ondas que permeiam as nuvens.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

a mais legítima

Vivi até os 20 anos tendo, como guru, Mariquinha da rua dos Sete Pecados, rezadeira de todos nós. Melhor rezadeira que aquela não existia, não existe e nem existirá. Como sempre fui dada a quebrantos, era só amolecer o corpo que mãe me levava aos seus cuidados. Quando cresci aprendi a ir sozinha. Às vezes mãe mandava eu e minha irmã, as duas amolecidas, aquebrantadas, pois que não adiantaram os brincos e as pulseiras de figa e fitas vermelhas pelo corpo que ela nos enfeitara como escudo. Então, mesmo sem conseguirmos andar direito, tamanho quebranto, íamos eu e minha irmã bater na rua dos Sete Pecados, entrando casa adentro, chamando Mariquinha, ô Mariquinha. Estava ela lá no fundo do quintal. Magra, negra, bonita que só vendo, nos seus oitenta anos, Mariquinha nos levava para o meio do quintal, uma estradinha. E tome-lhe mato e reza: girava o nosso corpo pra frente e pra trás, e com o matinho ia nos dando tapinhas nas costas, no rosto, no cabelo e dizendo: "Com três lhe botaram, com dois eu te tiro, com os poderes de Deus e da Virgem Maria"; e até nos pés os raminhos iam. Sua voz fraca e ao mesmo tempo potente com os poderes celestiais, continuava: "Se é no calçar, e no vestir, e no andar, com dois eu te tiro..." "Onde Maria põe a mão, Deus põe a vertude". Essa "vertude" de Mariquinha sempre foi a maior virtude que já encontrei por esse mundo, a mais legítima.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

crônica "nacionalista"

Viver num mundo em quem o grande deus é o dindim, o vil metal. Viver num país em que a idolatria aos estrangeiros beira à cafonice, à idiotia. No ano retrasado inventei de passar o são joão no Capão, e o que lá encontrei foi bizarro: um monte de neohippies ricos e cheirosos e cabeludos, a maioria gringos, vendendo e comprando a rodo tudo o que se vendia e comprava, e era muita coisa. As casas dos antigos moradores, nativos, foram transformadas em restaurantes com estilo natureba e lojas de miudezas chiques, rua com cara e vestimenta de um enorme shopping center. Estrangeiros de todo o mundo, ganhando dinheiro com pousadas e restaurantes. Não vi um nativo sequer. O consumo roubou o lugar de todas as ideologias, e Che é comprado aos montes, assim como Raul Seixas, em camisas de oitenta reais. A mesma coisa agora vi em Itacaré, lugar que até então não conhecia. Milhões, zilhões de estrangeiros com resorts, pousadas, restaurantes e lojas, todas caríssimas, e os nativos sucumbidos em suas quintadas de cadeiras de plástico amarelas, ou, tristemente, vendendo queijos na praia. Os estrangeiros branquelos paparicados como nenês bem nascidos... Todos nós estupidamente colonizados, de novo, e sempre.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

crônica de todos nós

Mesmo em dias amenos, incrível, mesmo em dias amenos, sinto-a ao meu lado, impondo sua presença invisível. Se em estado de deleite, aproveito o mar, ela faz questão de me cutucar mostrando as ondas enormes, não para constatar a beleza indiscutível, mas para lembrar a força esmagadora que têm para me engolir; claro, ela me lembra: você não sabe nadar. Entro num ônibus e ela ri gigantesca, sem dentes: "uma balançadinha só nesse treco,nessa curva, e você já era!!!" Tampo os ouvidos e fecho os olhos, sobrevivo à curva. Prossigo, frágil, com ela ao meu lado, vigilante cruel, mostrando-me sua onisciência e onipresença perversas; mesmo entrando em casa, depois de dias de total perigo, ela me lembra de sua existência enorme, maior que a casa, maior que a vida.