domingo, 30 de janeiro de 2011

em branco


Não sei dizer o que sinto ao passar por aqui e não me encontrar. Talvez uma sensação breve de morrer. Ou eterna. Quando não mais voltamos, o último post serve como epitáfio; o blog se transforma num cemitério silencioso, gelado, e depois comum, como todos os outros cemitérios. Mas, que coisa triste um blog a repetir para sempre a última cena! Que coisa triste! Ao invés disso, melhor talvez seja tudo ficar em branco, sem lápide, sem nada: cemitério no ar. E para onde irá o corpo que foi escrito em névoa e fogo? Para onde? Não, queridos, não me enterrem, ficarei sufocada lá embaixo, e sentirei nojo do verme se aproximando de minha boca. Não tolerarei, em hipótese nenhuma, ser enterrada, em hipótese nenhuma. Joguem minhas cinzas, isso sim, no ar, para cima, para cima, sempre para cima, nunca no chão, sequer na água. É o ar que quero, a fim de aliviar esse sufocamento que é morrer sem palavras, morrer muda.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

tributo


Quando a avó morre uma parcela de memória se perde para sempre. Sou uma neta ingrata. Sou um desmantelo de gente. Tinha uma avó lúcida, guardiã de minha história, a mais recôndita, e fiquei sete anos sem vê-la. Não tenho um pingo de apego a nada, e herdei isso dela. Tenho uma preguiça de abraço, de beijo; tenho uma preguiça escandalosa de amar, e sei que herdei isso dela, de uma família distante e estranha e fria e sem tento. Que ela sabia de tudo eu tinha certeza: de mãe, quando nasceu; de pai, quando noivou; dos onze filhos, que mãe lhe ajudou a criar; do marido, "véi" ousado que ela velou há quinze anos atrás em noite de festa; dos anos que a vida lhe dava, à revelia; daquela casa miúda em que foi obrigada a morar; da água fria do pote de sua cozinha que ela fazia questão de encher, todas as manhãs. Sabia de tudo a véia Calu. Forte que nem um muro de pedra feito pelos escravos no início do século. A cabeça tinia de fotografia antiga, de história, de escárnio, de graça. E eu, como talvez ela o faria, não fui vê-la em todo esse tempo. Estava com preguiça.
No último domingo fui obrigada a deixar a preguiça de lado e ir vê-la no meio da sala, dentro de um caixão. Ali deitada, serena, tranquila, vestida com sua mortalha azul (feita e guardada há mais de onze anos), ela demonstrava firmeza. Eu do seu lado a olhava, e, ao fazer isso, olhava fundo dentro de mim e nada via, nada, só a bestagem que sou, a bestagem.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

"algumas palavras duras"


Ah, as palavras e suas delicadezas, seus tapas. Hoje estava no salão fazendo a unha dos pés, e a moça era um toro de madeira que cai nas nossas costas e nos machuca. Primeiro: ela fazia seu trabalho com muita preguiça e raiva de meus pés. Mão pesada, cada unha que ela tocava doía muito, sem contar na má vontade da peste, no conversê com a outra colega, na lerdeza, na má educação. Com grosseria ela me pediu para escolher a cor do esmalte; respondi que era vermelho claro e ela não entendeu; voltou a perguntar, num tom irônico, zombando de minha pessoa. A colega lhe explicou o que era vermelho claro e ela finalmente começou a pintar. Ficou no pinta e borra, mais borrava que pintava; borrava, apagava com acetona, voltava e pintava, num acabar nunca mais. Pra completar, perguntou se tal unha minha do pé direito era daquele jeito porque levou "porrada". Jesus, isso soou como um tapa na minha cara. O quê? Perguntei. E ela repetiu "essa unha levou porrada?" Dessa vez o "porrada" saiu com mais escárnio, como palavrão descarado. Com calma eu respondi que não houve nada disso, aquela marca era de nascença. Às vezes me acho uma pessoa tão pacífica, tão controlada. Mas um facão ali vinha em boa hora. Eu cortava sua cabeça e sairia daquele lugar maldito bastante aliviada, lhe ensinando, à custa de sua vida, a delicadeza com as palavras e com as pessoas.
Ah, meu Deus, há palavras tão delicadas, há gestos macios, como uma carícia, como um beijo, e a maioria das pessoas utiliza dos vocábulos mais endurecidos, como socos que dão bem no meio da cara de quem as escuta. Parece que é uma vingança contra a linguagem, contra o mundo, contra o outro, contra si mesmo.
Certas palavras me fazem chorar: são surras de chicote, surra de cansanção; e o pior é quando mansas são entoadas todas essas cantilenas malditas. "(...) Algumas palavras duras/ em voz mansa te golpearam/ nunca, nunca cicatrizam" (Drummond). As palavras duras em voz mansa são as piores, parecem agulhas pinicando nossas nádegas, nos deixando em total desconforto num de nossos lugares mais íntimos. Invasão, pois, inescrupulosa de privacidade, impossibilitando nosso livre e confortável direito de escutar, com deleite, a voz, sim, completamente delicada dos ventos.


Imagem: "Duas rosas vermelhas", por Eduardo Almeida.
(www.google.com.br)

sábado, 8 de janeiro de 2011

o sonho e a morte


O que tenho mesmo é essa preguiça enorme de viver. Ser disposta, acordar com gosto, dar um salto da cama, esticar as pernas e com muita coragem rumar para a cozinha, fazer uma vitamina de banana e, cantarolando, preparar o café?! Qual nada. Tenho uma deliciosa preguiça de viver. O corpo todo remói na cama, quer continuar dormindo até o final dos tempos. Fazer vitamina e café cantarolando? Deus é mais. Quero só dormir infinitamente, e que viesse do céu um batalhão de anjos dispostos e me trouxessem o café na cama. E me trouxessem a vida na cama, de bandeja, sem qualquer esforço de minha parte. E nada de contas para pagar, fila para pegar, respostas para dar, provas para corrigir, telefones para atender. Nada, nada, só um imenso e inquestionável sono. Se isso é morte? O que me importa? Estrangeira em todos os mundos, o sono é onde melhor me encontro. Lá, faço tudo sem mover uma mão, um braço, uma perna. Lá existo, sem dúvida, e sem precisar dar provas disso com disposição física. Só a mente, a alma, trafegando entre nuvens e pedras; pulando precipícios e voando - com asas invisíveis. Para que algo melhor? Deixem-me, portanto, dormir um dia, dois, três, minha vida inteira, nessa cama larga do outro mundo; deixem-me escolher entre o sono e a vida, o sonho e a morte.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

elegia intensa


Tenho nas entranhas terra de cemitério. Aos seis anos ouvi essa história verdadeira; todas as histórias são verdadeiras, e mãe contou-a e eu a escutei, nem sei se foi atrás da porta. Ela se arrependeu, talvez por isso o remorso também está nas minhas entranhas. Depois ela negou com veemência, não comeu nenhuma terra de cemitério, ela jamais faria tal coisa, foi uma festa aquela gravidez inesperada. Talvez também por isso trago dentro de mim a ilusão, a peste da ilusão, do engano feliz. Mas sinto demais essa terra revolver-se dentro de mim, cinza, desesperada, cheia de ossos alheios, cabelos que cresceram na umidade da solidão. Essa terra me compõe, e em certos dias ela grita como a morta que não quer ir, que quer sair daquele caixão abominável e cruel, quer seu noivo, tão belo à sua espera. Terra que se recolhe na minha barriga, molha minha cabeça, fazendo-me estremecer, em certos dias, feito jasmim que se recusa a morrer, cheirando cada vez mais forte, entorpecendo pessoas que chegam perto... Sinto agora essa terra, mortífera terra de cemitério, circulando nas veias de minha mão direita, oxigenando, como uma elegia intensa, a vida que um dia não conseguira expulsar.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

cantiga de ninar


Se eu pudesse, menino, lhe daria sua infância, e lhe abraçaria na saída da escola; você com sua bota nova e a farda azul, a merendeira vazia, eu lhe suspenderia no alto, fazendo você rir; você suado, eu lhe pegaria pela mão e iríamos juntos para casa. Ah, menino, cultivo seus olhos, tão doces, e neles entro e lhe levo para o banho, para o parque, para a merenda da tarde. Rimos muito, eu lhe fazendo cócegas, você correndo pela casa, desarrumando livros, sempre com uma asa torta; sempre com uma asa torta, e a outra solta, evaporando no caos. Mas como eu cuidaria desses braços longos, dessas costas largas, desses pés no chão, sujos de poças d'água; como eu cuidaria do seu resfriado aos seis anos, de suas lembranças esquecidas... Mais do que isso, eu lhe daria sua infância, menino, se pudesse; e com ela um cavalo de verdade, meu pequeno fidalgo de la Mancha.