domingo, 31 de agosto de 2008

O olho

Não sei por que dificilmente a Aeronauta aparece no domingo. Fecha-se nalguma nuvem de Pasárgada, que é melhor. Domingo é dia de gente? É, sim, dia de gente alegrinha e chata. Daquelas que fazem o maior estardalhaço quando lhe encontra, e conversa sempre lhe elogiando o tempo todo, dando tapinhas no seu braço e pegando na sua mão. Ai!, tem algo mais odioso? Odioso porque você olha no olho dela e enxerga lá uma outra coisa, totalmente diferente. Lembrei agora de uma história engraçada, um fato que ocorreu na minha terra. Dona Maronita, coitada, que lavava roupa na beira do rio e viu uma jibóia. E, claro, a jibóia também lhe viu. Só que dona Maronita viu algo mais na jibóia: o olho, que trazia, extraordinariamente, a cidade de São Paulo inteirinha, toda iluminada, coisa que ela mais queria conhecer na vida! Então, as duas foram chegando perto: mulher e cidade, ou melhor, mulher e olho e boca de jibóia. Se não fosse um menino desses, que vive a vida inteira tomando banho de rio, dona Maronita ia mesmo conhecer para sempre, e de verdade, a cidade-alvo de seus desejos.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

As propagandas

Sempre senti as lacunas, os pontos em branco que a vida traz. Não conscientemente, óbvio: esse negócio de consciente/inconsciente entrou no meu mundo mais tarde. E ainda tateia, pois que só as palavras entendem seu código. Nós não; como disse Clarice Lispector temos patas grossas demais. Pois bem. Isso é só a tentativa de um prelúdio simpático para contar minhas esquisitices juvenis. Ah, e foram muitas, coisas de louco. Mas era tudo para sanar as lacunas, os pontos em branco. Acredito nisso por que não sei absolutamente nada sobre a vida. Estou aqui à toa. Vamos ao desenvolvimento deste post. Está difícil, não? É, falar de esquisitice de nós mesmos não é coisa fácil. Mas vamos lá. Dos onze aos ... (aqui não digo), eu colecionava cadernos: primeiro, diários; segundo: caderno de poemas; terceiro: caderno de confidências; quarto: caderno de músicas; quinto: caderno de recordações, onde as amigas escreviam; sexto: caderno de passos de dança (bizarro também); sétimo: caderno de propagandas de televisão. É bom falar assim rápido, a gente fica logo livre. Pois é, queridos, eu tinha um caderno onde registrava, ou melhor, onde transcrevia propagandas de televisão. Lembro perfeitamente de duas. Uma, Lady Francisco dizendo com a voz mais melosa e pontuada do mundo: "Ô meu preto, quem compra sapatos de homem, nas lojas santana, ganha uma karina, inteiramente grátis". A outra: Waldick Soriano cantando o início de "eu não sou cachorro não", tirando o chapéu e completando: "Só duas coisas me fazem tirar o chapéu: as minhas fãs e as novas balas apache hortelã". A mais engraçada de todas as propagandas é a mais sem-graça: "Essa transmissão da tv aratu chega a Itabuna e Ilhéus via Telebahia". Ah, não tem preâmbulo literário e psicanalítico que dê jeito a uma confissão dessa!

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Tio Abel

Como esquecer Tio Abel? Magro, cabelos brancos revestidos de uma pretensa dignidade sábia, irmão de meu avô por parte de mãe. Ia nos visitar sempre às segundas, dia de feira. Vinha com o mesmo paletó e a mesma lábia famosa. Falava muito, da hora que chegava até a hora em que ia embora. Atalhava mãe na cozinha e tome-lhe conversa. Nós - eu, minha irmã e as amigas - ficávamos cercando ele para todos os lados a fim de que lesse nossas mãos. Tio Abel tinha fama de sabedor das coisas: toda semana pegava nossa mão direita, colocava bem perto do olho (apurando as vistas) e via todo o futuro, falando e cuspindo. Coitada de Sílvia, amiga nossa: ele sempre lembrava-lhe que o destino estava lhe reservando algo tenebroso, aos 23 anos de idade. Oh, e a infeliz, na época, tinha só doze! Sofreu com esse vaticínio até chegar aos 23...

ORÁCULO

Irmão de meu avô,
Tio Abel era um velho magro,
vestindo um paletó surrado
com ares de sabedor do mundo.

Nós éramos meninas ainda,
Afoitas e destemidas, a sondar destinos
Que tio Abel bem os via, no fundo das linhas
Visíveis, de nossas mãos vazias.

Nelas, cruel, tio Abel lia tudo,
O futuro se mostrando, sem força alguma,
Com suas dores determinadas, uma a uma.

Sentenciava alto o que nos aconteceria
Num dia distante, com data e hora marcadas,
Enquanto, ao nosso lado, tossia grave,
Impávido, sábio, trazendo todas as chaves.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O Eremita

O que é que eu gosto no eremita? Ah, seu isolamento total de mim. Seu olhar vago, seu amor inacessível. Os cheiros que ele guarda, por mim adivinhados quando estou por perto, ou quando estou longe. Amo imensamente sua alma, escondida, sempre sofrendo, sempre sofrendo, querendo algo que ele não sabe o que é. Perde-se no círculo de meu destino, sem pouso algum; e me ama, eu sei, com a força de todos os séculos nos quais já vivi. E desse amor destila um alimento agridoce, que alimenta meu corpo no mundo.

A menina do tempo

Na minha vida inteira escrevi diários. Querem ver? Vão àquela gaveta ali em frente e leiam: são mais ou menos uns trinta, de várias fases de minha vida. Todos pretensiosos: comecei querendo imitar os diários de Luluzinha e progredi para os de Clarissa, de Érico Veríssimo. Só que os meus eram muito inferiores; isso porque na minha vida não acontecia nada de especial: e eu queria registrar o nada absoluto. Aí então eu desabalava a falar do tempo: "Hoje está nublado, parece que vai chover..." Ou "Hoje está um sol quentíssimo". Sem me dar conta, virei a menina do tempo - e que não despertava nenhum interesse em qualquer leitor curioso. Só para ter uma idéia, eu poderia deixar o diário aberto sobre o sofá que ninguém lia. Ninguém tinha interesse naquela vida que não acontecia nada. Só mais tarde fui me tornando mais densa, falava de sentimentos, sensações e não, necessariamente, sobre o cotidiano. Mas nenhum diário se salva, nenhum. Porém todos gritam uma verdade única e terrível: eu.

domingo, 24 de agosto de 2008

Em silêncio

Gosto do silêncio dos mais profundos, de pessoas silenciosas, de lugares sem rumores. Por isso tanto aprecio o vôo das borboletas.
Gosto por demais de uma conversinha caseira: mãe contando uns causos do tempo antigo, de antes de eu nascer. É puro silêncio.
E o olhar dele longe, longe, a me esquecer completamente... é silêncio dos mais sutis, como telefone sem voz em pleno domingo.
Sutis pra não dizer perversos, vocábulo barulhento como navalha.
Esqueça-me sutilmente mesmo. Silenciosamente.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A fotografia


(Mãe, aos 17 anos anos, década de 60, Fazenda Campinhos)

(...)

Ela sabia de tanta coisa!
(E nem sequer imaginava)
Seu sorriso acompanhava
O ritual da fotografia.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Creusa

A história de Creusa é muito triste. Triste mesmo. Meu coração dói de remorso quando me lembro dela: linda, enorme, toda bem-vestida e sentada em cima do guarda-louça de minha avó (e também madrinha). Aos sábados íamos todos fazer visita aos parentes. Visitas que eu odiava, mas que passei a gostar por causa de Creusa: aquela bonecona linda, que minha avó criava como se fosse neta. Teve até festa de batizado! Minha avó fazia-lhe roupas novas, penteava-lhe os cabelos e passava-lhe perfume. Creusa era uma deusa, que me perdoem a rima infeliz. Mas meu olho de criança egoísta estava marcado nela. Um dia não me controlei e pedi ela pra minha avó. Criei uma situação extremamente constrangedora: era a neta mais nova e afilhada quem lhe pedia algo precioso demais... Porém, como negar? Todo mundo foi contra: mãe, pai, minha irmã... Mas eu botei pé firme: "quero Creusa". Ô infelicidade de destino! Creusa passou para minhas mãos como um grande prêmio, e terminou seus dias não em cima de um guarda-louça, mas no sótão, com os cabelos desgrenhados e a roupa rasgada. Enjoei de ficar cuidando daquela boneca enorme.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Dois dedos de prosa

Adoro lojas de santos. Adoro entrar e observar a cara de cada um, e poder comprar um deles, lógico. Fui na segunda-feira com minha irmã no shopping e, de repente, vi uma loja inteira repleta de santos para todos os gostos. Claro, minha irmã não queria nem entrar, fez caras e bocas (só eu entendo os significados de um seu virar de olho e riso controlado). Mostrei pra ela um quadro enorme de São Cosme e São Damião e ela me falou, baixinho, tantas coisas engraçadas a respeito que me acabei de rir. Enquanto isso fui olhando, olhando, sentindo aquele cheiro de incenso entrar na alma e lá se aquietar. Queria comprar tudo, mas me contive num Santo Antônio magrinho. Tão magrinho, o coitado, que me deu dó. E pequetitito. Puxa, nunca vi um Santo Antônio igual. Todos, que então eu conheci, têm corpo robusto, e aquele, coitadinho... Segurei-o com força e falei alto: "vou levar". Trouxe-o com cuidado, como quem leva um recém-nascido para casa. Chegando aqui, coloquei-o não no meu altar, mas na estante de livros - junto com São Longuinho. Meu sonho maior é que São Longuinho ensine a esse meu pequenino Santo Antônio - com dois dedos de prosa, diariamente - todas as agilidades do mundo.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Oh, meu facão!

É, Marcus, eu também, nessas horas, sinto falta de meu facão. Ele sumiu de uma hora para outra. Ou foi mãe quem o escondeu? Não sei. Só sei que cortar cabeça é a melhor coisa que tem no mundo. Depois de chorar e rir, é claro. Que sou afeita a muito choro e a muito riso. E a querer matar gente. Principalmente cortando o pescoço. Isso porque desde pequena ouvia pai dizer que pescoço é a parte mais importante do corpo: ele quebrando... já era. Então, só um facão muito amolado para dar cabo de muito pescoço grosso ou fino de gente nojenta. Gente que nos odeia em segredo. Um facão bom, comprado na feira, luzindo de novo, pronto para a suave empreitada: num só golpe cara despregada do corpo, voando longe.

Cumplicidade

Os versinhos abaixo resgatam a lembrança mais terna que tenho de mim, e que me foi contada por mãe. Marcam uma das minhas primeiras interrogações diante do mundo...

DIÁLOGO

Aos dois anos - depois eu soube -
conversei com um pintinho no quintal.
Perguntei a ele algo tão natural -
que até hoje me intriga, como o amor -
Perguntei se ele também sentia
dor de barriga, como eu.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Choronauta ou Lamentonauta?

Um anônimo - que eu sei quem é - sugeriu, no post anterior, que meu blogue deveria se chamar Choronauta ou Lamentonauta, e não Aeronauta. Estou pensando no caso. Quem vive no ar tem suas lamentações, seu choro convulsivo. E eu nunca vou deixar de chorar, muito menos de me lamentar. Às vezes, em pleno ar, a gente toma chuva no lombo. Ou um anjozinho traquinas vem e nos dá um beliscão. Ou então, um desses competidores de nuvem quer pegar um pedação pra ele e nos deixar ao relento: aí eu tenho a coragem, sim, de chorar até lascar os cantos da boca. Coragem que não tive para roubar o colo de meu pai. Nisso o senhor anônimo tem razão. Pois que essa coisa de coragem com nuvens é mais fácil de que coragem com gente.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Sem legendas


Que coisa estranha a afinidade! Era talvez o que meus olhos diziam, sempre tristes, sempre com medo. E numa festa! Eu e minha irmã com nossos vestidos de carrocinha de flores, iguaizinhos! Até os capotes... iguais. Minha irmã, com a cara mais sonsa do mundo, agiu rápido como sempre e foi se sentar no colo de pai. O que me esperava era o colo de mãe, mas não quis, fiquei somente perto dela. Oh, tinha fratelli na mesa, pai estava rindo, tão contente! Linda esta família, linda, linda. Meus olhos tristes diziam coisas pra mim, para eu hoje descobrir, olhando do lado de cá, continuamente só...

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Tragicomédia

As crianças passam por grandes humilhações nas escolas. Desde que elas não saibam dizer não, a coisa fica bem pior. Eu não sabia dizer não e a professora me vestiu de Tiradentes. Me colocou no palco com uma mortalha e soltou as minhas tranças. Diante de mim um carrasco. E a corda? Não tinha. O menino que ficou de levar a corda não foi nesse dia. O carrasco fazia de conta que estava me enforcando com uma corda invisível, e eu parada, em pé, com a cara tristíssima... de vergonha. No fim do ato, saí andando, muito mais triste, ouvindo bem perto os risos algozes da platéia.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Noélia Lúcia

Noélia Lúcia, irmã que não conheci, morreu em agosto. Agosto é mês com rima desgostosa. E Noélia Lúcia foi embora num agosto na Lapa do Bom Jesus. Ficou lá, a coitadinha, com apenas sete meses de vida. De Noélia guardo apenas o sonho, sua imagem andando por todos os lugares onde vou, como a me lembrar de um pedaço de mim que está no ar...

NOÉLIA LÚCIA
(em memória de uma irmã que não conheci)

A casa povoa-se de novo -
Pai na sala recebe visitas
e mãe na cozinha escuta e fala.

São as vozes que vêm de longe
Tão súbitas, que quem as ouve
não sabe distingui-las.

Mãe sempre ouviu todas elas.
E foram muitas, uma delas
a de Noélia Lúcia.

Ainda menina, repousa
Quando a casa de novo se transforma
de seres vivos em coisas:

Ora o sofá antigo, ora as louças
que se colam uma a uma,
como a irmã outrora morta.

Noélia Lúcia está de volta.

"Sorri seus dentes de chumbo..."

Quando estou com raiva da vida não arrumo a casa. Cheguei de viagem ontem e a mala ainda está na sala. Na mesa um monte de sacolas, bolsas, livros. Na pia muitos muitos muitos pratos sujíssimos. No sofá um tédio do tamanho do cão. Em todos os aposentos da casa a Solidão achou de armar acampamento. A dita cuja gosta de lugar sujo, desarrumado, em desordem. Já eu não gosto. E por não gostar, fico fugindo: indo dormir, dormir, dormir. Mas coragem que é bom, nécas. Cadê coragem nos braços para enfrentar aquela pia? Para enfrentar a faxina do século? Cadê? A coragem está agora nas nuvens, brincando de se esconder com algum anjo cúmplice... Que esse negócio de trabalhar só é bom naquilo que a gente gosta. Oh, anjo cúmplice, dê-me uma palavrinha para eu fazer uma poesia. Vá, seja generoso... porque a Solidão, essa imunda, não inspira ninguém.

domingo, 10 de agosto de 2008

"Papai"

Estou vindo agora, emocionadíssima, do Licuri, blogue de Marcus Gusmão (http://licuri.wordpress.com). O pai mostra para o público sua linda Maria, aprendendo a engatinhar. Ele a incentiva, chamando-a de "papai". Que coisa mais doce, mais família, nesse dia de domingo em que os shoppings estão abarrotados de filhos comprando presentes de última hora. Em que minha sala vazia escuta uma voz ubíqua também me incentivando a engatinhar, a essa altura da vida, me chamando de "papai"... pois que foi sempre assim que ele me chamou.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Minha irmã no divã

Minha irmã escreveu esse texto no seu blogue (wwwmeninadailha.blogspot.com), e eu não resisti: leiam e conheçam de perto a figura...

"Desde pequena tenho a consciência que não sou uma pessoa de coração puro. Onde começou minha primeira maldade? Fecho os olhos e me vejo no nosso casebre na roça e um galpão ao lado da casa... Tinha quatro anos. Entrei no tal galpão e lá encontrei uma galinha com um monte de pintinhos. Tentei tirá-los de lá, mas com o meu tamanho era dificil, e a galinha corria para um lado e para o outro. Fui me irritando e comecei a jogar os pintos para fora com toda a força que tinha. Nesses arremessos um pinto morreu. A galinha saiu enlouquecida atrás dos seus filhotes. Eu era muito pequena, mas não me lembro de nenhum arrependimento. Lembro do medo que senti de minha mãe. Ela sim, me apavorava constantemente. O assassinato não passou em branco. Fui punida e condenada na forma da lei de minha mãe. Depois lembro de mim com uns sete anos, já morando na cidade, e uma menina de uns três anos que ia sempre na minha casa acompanhada da mãe. Não sei o porquê, mas não gostava daquela criança. Um dia, aproveitei que minha mãe estava numa conversa séria com a mãe da criaturinha, a chamei com a voz disfarçada em bondade e mandei a menina colocar a mão no bolso do meu vestido. A inocente nem pestanejou. Quando senti sua mãozinha dentro do meu bolso, como a presa que atrai para matar, dei-lhe um beliscão. Até hoje escuto os gritos da criatura. Não me lembro se apanhei. Acho até que a pobrezinha não conversava direito e não soube explicar o que tinha acontecido. E eu, pelo que me conheço, devo até ter tentado ajudar a mãe na busca de saber o que realmente aconteceu. Depois fui crescendo e, segundo relatos da minha irmã, cometi verdadeiras atrocidades com a coitada. Já dei nó no cabelo, não deixava brincar com minhas amigas e outras coisas que ela insiste em lembrar e que muitas vezes tenho até explicações. Outras não, mas nada que uma boa terapia não resolva (para ela), é claro, pois comigo nunca dei sorte com terapeutas. Mas, minha irmã também não é lá flor que se cheire. Depois de grande, tentando recuperar a maldade perdida, me ensinou a matar gente chata com um facão imaginário. E nós duas juntas já podíamos pegar prisão perpétua pelos corpos que mutilamos nesses anos todos. Entre uma raiva ou outra, pois, vou seguindo, e invejando Virgulino Ferreira. Aquilo sim era homem feliz. Fez o que quis na vida. Tinha todo o mundo aos seus pés. Uns dizem que ele viveu pouco. Mas isso não importa, o pouco que viveu foi bem vivido. Nem de traição tinha medo. Por que quem era doido de olhar atravessado para Maria Bonita? Porque com ele não tinha negócio de ter certeza não, bastava a desconfiança e o cabra já era. Eu desejo ter uma vida semelhante. Só queria ao meu lado quem fizesse todas as minhas vontades. Um bico de entojo e pronto: beiço cortado. Um olhar enviezado...: pronto: olho furado. Uma demora em trazer uma água...:pé cortado. Como me vejo? Durante o dia deitada numa espreguiçadeira toda acolchoada, rodeada de mucamas me abanando, muitos empregados massageando meus pés, outros trazendo comida. Visitas? Só de vez em quando e assim mesmo de quem estivesse do meu lado. Chegava um e eu só queria elogios. Nada de perguntas, problemas, queixas ou palavras que pudessem me contrariar. Quando enjoasse, mandava ir embora. Se puxasse bem o meu saco, podia ficar uns dias, mas tudo do meu jeito. Homem? Ah, esse para poder usufruir da minha preciosa companhia, tinha que provar que era bom mesmo. Nada de arrotos, puns e outros excrementos. E nada de ficar atrás de mim numa ânsia louca por sexo. Era quando eu quisesse e tivesse vontade. Tinha ele que viver para me satisfazer. Nada de mau humor ou cara feia. Era para já acordar de dentes abertos e passar o dia em sobressaltos, tentando adivinhar o que me dava alegria. Conversa?, muito pouca, não tenho muita paciência para conversa de homem. Porém, como ainda não tenho esse mundo perfeito, vou agüentando todo tipo de gente chata; e, como o marreco que por cima da água nem balança a cabeça e vai se acabando de tanto bater as pernas sob a água, pego o facão doado por minha irmã e vou deixando corpos mutilados por esse mundo de meu Deus."

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

das boas maldades (II)

Ontem, minha irmã, com seu modo nada politicamente correto de ser, dentro de sua mais genuína sabedoria, me falou pelo telefone que seu sonho era ficar só ela no mundo. E de vez em quando, pediria a Deus para mandar dois viventes para fazê-la rir. Quando enjoasse botaria os dois para correr com os olhos furados.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Achados e Perdidos

Hoje acordei dostoievskiana, com vontades de matar só para ver se sentirei remorsos depois. Tive a coragem de desbancar santos e milagreiros. Cheguei a dizer pela manhã que o único santo que presta (tirando, claro, Santa Cecília) é São Longuinho, simplesmente porque ele acha tudo o que a gente perde e pede. Os outros santos ficam na demora, na sabedoria, na sobriedade, enquanto São Longuinho é prático: pediu achou. Outro santo danado de ligeiro também é Santo Expedito. Dois poderosos santos. Mas sinto que São Longuinho, com sua lanterninha, no altar de minha estante, me entende mais de que os outros. Só que ele não pode encontrar gente perdida, só objetos. Gente perdida é objeto de outra espécie, e haja pulinhos e gritinhos para pagar promessa. São Longuinho não quer saber de vela, nada de pagamento de promessa com vela (sua lanterna o livra de desejar isso), ele quer mesmo é pulinho e gritinho. Tão simples, tão despretensioso, meu santo querido. Certamente, agora, ele está rindo de minha maldade infantil. Não leva a sério minha potencialidade para o mal. Escuto de cá sua vozinha irônica me perguntando quantos pulinhos e gritinhos darei se ele achar a dita pessoa perdida. Ah, meu querido santo, esqueça. Ou melhor: encontre-o e o esconda o mais possível de mim, debaixo da terra, ou em cima do céu, ou nos bueiros da esquina, onde nem sua luminosa lanterna possa novamente encontrá-lo. Assim poderei ter, saudavelmente, e de novo, perna e boca para pular e gritar em tua homenagem.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

deuses sem deus

Sempre amei errado, errado, errado. Meu amor desperdiçado extravasa nas bordas de tua alma. Que não me quer. Tua alma não me quer. Já fui em taróloga, cartomante, mãe de santo... em todos os lugares as cartas e os búzios diziam que tua alma me queria. Vejam só: o mundo místico pregando peça em mim, pois que os deuses sabem que sou crédula e resolveram armar uma pegadinha... Devem estar rindo agora, festejando mais uma coisa que não pode ser nesse mundo cão. Eles querem que desse sofrimento saia poesia. Os deuses dão tristezas aos homens para que eles possam cantar - está lá em Homero. Mas hoje, deuses, fiquem esperando: que não estou aqui para cantar não, mas pra prestar conta com vocês.

As antigas fotografias

Mais uma segunda-feira que vem não sei de onde. Sei que ela entra pela janela do meu quarto sob a forma de um sol morno. E eu vislumbro daqui pessoas andando pela rua, e fico tentando entender a vida que as move de um lado para o outro. O que as impulsiona a irem ao médico, ao shopping, à avenida Sete...? Ou à Rua do Salete, ao Campo Grande, ou mesmo a voltarem para casa? O quê? Um controle remoto que alguém de fora comanda? Um instinto, por estarem nessa vida? Será que elas sabem de verdade o que há nas antigas fotografias? Será que elas já viram de fato as antigas fotografias?

Se uma dessas pessoas que estão agora na rua quiserem responder a tais perguntas, vão ao blog "continhos para cão dormir" (http://continhosparacaodormir.blogspot.com): lá as antigas fotografias e a dona do blog contam tudo.

domingo, 3 de agosto de 2008

Palhas de milho

"Toda hora que eu acordo com o murmúrio
Das palhas desse milho
Assustado, esfrego o olho e sonho
Que é meu amor que vai chegar

Vou plantar uma nova estrela
Três grãos, dourado milho
E lá no alto
O brilho dos seus passos
Vai ser murmúrio das palhas de milho
Cá do meu roçado..."

Música "Palhas de milho". Assinada por Patinhas e Capenga. Lindamente gravada na voz de Dercio Marques. E que tocava fundo na minha alma de vinte anos. E que continua tocando ainda hoje, com a mesma intensidade. Nem preciso dizer o motivo. Se eu pudesse colocava a melodia aqui. Se eu soubesse mexer nessa máquina encontrava ela na internet e vocês iriam ouvi-la. Mas não sei fazer isso. Sintam então cada som das palhas de milho, seu murmúrio. E sonhem.