domingo, 26 de fevereiro de 2012

Amiga,

para Mônica Menezes

Desde os 15 anos sei que vou morrer
a qualquer momento.
Descobri isso não num velório,
sequer num enterro,
mas lendo Clarice,
num dia, à toa,
totalmente sem aviso.

Desde os 15 anos, portanto,
meu corpo desfalece
quando acordo.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

manifesto espiritual

Não quero escrever requerimentos
muito menos ir a reuniões
nas quais a vida é debatida
sem qualquer mistério.

Quero o esotérico
e nele os contos fantásticos
de Edgar Allan Poe.

Não nasci para viver dia a dia;
me perdoem, mas a máquina de escrever
foi a única que em mim restou,
lírica, do universo burocrático.

Porque não tenho paciência para papéis
que não trazem uma palavra poética
Por isso meu curriculum vitae
há muito tempo não se atualiza.

Quero mesmo é o cataclisma das leis
pois aí poderemos, enfim, amanhecer lendo
o que há de mais inútil em Edgar Allan Poe.

Abaixo as mensagens e a moral das fábulas.
Abaixo as palavras dos documentos oficiais.
Abaixo ainda mais aquelas palavras
com que todos se vestem para fazer reuniões.

Quero, repito à exaustão
o terror, os conflitos espirituais,
os fantasmas de Edgar Allan Poe.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

poema para os dias inúteis

Tem dias em que tudo se faz inútil.
Nesses dias não devemos abrir a porta.
Devemos fechar as persianas, e desse modo
Destruir o homem.
Ou a mulher que insistir
em chamar seu nome.

Lá fora sempre irão lhe chamar.
E lhe repito, é melhor não abrir.
Feche tudo com trancas de ferro
Dessas de trancar presídios.
Sele sem vestígios sua presença
inalterável para o mundo.

Para que isso tudo
se o vulto que somos
não atinge o escuro?

Desça bem fundo
verticalmente,
suma

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

a câmara clara e a sétima arte: elucubrações sobre o real


Estamos acostumados com uma existência previsível, cotidiana e cansativa. Nela nos arrastamos, comendo e dormindo, sem percebermos sua transitoriedade e seus signos, visíveis em cortes quase que cinematográficos. Para cada lugar que olhamos é certo que ali se recorta o enigmático, a pulsação de tudo que é inesperado e secreto. O mundo é amplo, nosso ângulo de visão fragmentado; portanto, nosso espírito age como diretor, recortando as cenas principais.
Todo esse preâmbulo para dizer que no domingo que antecedeu ao último, no início da tarde, passei por um final de rua em Feira de Santana. Naquele exato instante, havia milhares de jovens conversando. Meu olhar recortou apenas o rosto de um, e o recortou em primeiro plano, com bastante nitidez. Ele sorria, e usava boné.
Quatro dias depois soube que esse mesmo rapaz havia sido morto por dois homens que pilotavam uma motocicleta.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

festa no mar


Minha mãe querida,
Aqui não há mar, nem água, nem nada.
O que faço para te saudar?
Onde arranjar flores brancas, velas azuis,
perfume para teus pés?
Onde colher conchas, onde jogar pentes
e coisas para teu deleite?

Minha mãe querida,
Livra-me dos perigos, mesmo sem presentes,
sem mar, sem pentes,
nesse dia de festa.