terça-feira, 31 de agosto de 2010

simplesmente


Já andamos pelas ruas de braços dados; eu com uma imensa saia rodada, você com o velho e conhecido paletó. Falávamos de nossos filhos crescidos, dos sortilégios que a velhice prenuncia e do último poema de Jaime Ovalle. Grave você ficava ao recitar versos, numa solenidade presunçosa de quem sabe que logo logo irá morrer. E foi na rua do Ouvidor que você se lembrou de uma velha ladainha da infância, cantiga que seu avô cantava para sua avó. Cantiga triste, amorosa, definitivamente perdida, soando na calçada, lépida, ligeira, para se acabar na eternidade. Depois você falou de uns folguedos, de umas histórias de província, e do desejo de ver Carlito. Ali, naquelas ruas, com tabuletas nas portas e pessoas indo e vindo.



Imagem: Capa do livro Coleção Melhores Crônicas de Manuel Bandeira. São Paulo: Global, 2003.

domingo, 29 de agosto de 2010

predestinação


Nunca me esqueci do cheiro de seus cabelos; um cheiro de mato, de vento, de areia. Nem da maciez deles, no toque inteiro do meu nariz. Nem do abraço que encaixava meu corpo no seu, minha boca tão perto, sem precisar eu suspender os pés. Tudo tão certo, predestinado, assinado por Deus.
Nunca me esqueci de suas mãos repletas de veias, verdes, saltando; seus dedos rústicos e ternos, a pele vermelha de seu pescoço. Áspera barba, entregue ao tempo dos mais eternos, indelével árvore, raiz suspensa no rosto. Costas largas, amparadas por um tronco primevo, gênese das coisas.
Como esquecer os traços mínimos de sua face? Perto da boca um laivo melancólico, nos olhos rastros de antigo reflexo: mar nas encostas. Tudo ali era meu, tinha conexão com minha face, com meu rio morrendo sem pressa.
Portanto, tudo era tão certo, predestinado, assinado por Deus. Deus, poeta idiossincrático, arquiteto vulnerável, fingidor, como todos os outros.


Imagem:Natureza wallpaper. In: www.google.com.br

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Antonio


Na hora em que fui autografar o livro dela, uma moça que não conhecia, vinda de Maceió e que estava em Salvador por conta de um congresso na área de saúde, ela me perguntou quem era Antonio. Eu fiquei sem saber o que responder. Como fico nas vezes em que isso acontece. Só que ali, na fila de autógrafos, fiquei mais desconcertada ainda. Talvez eu devesse responder "Antonio é a ausência", mas ficaria pedantemente lírico, coisa que não combina para uma noite de autógrafos na qual rimos, confraternizamos, sem necessidade de argumentos poéticos. Não respondi nada, e essa lacuna permanece, acordei com ela. É a lacuna que há entre o que é e o que não é e nunca será, entre a ficção que somos e a dor que guardamos, entre essa enigmática fronteira, bruma, neblina, geografia sem contornos, reino que só a Palavra acolhe.
Vivemos com pessoas e elas despertam em nós as nossas representações mais simbólicas; dentre elas, o amor. Há algo mais pleno de desencontros? Enquanto que o amor apenas é, simplesmente, sem necessidade de retórica e satisfações, nós todos insistimos em mantê-lo na eloquência vazia, no dever burocrático. Amor e arte se entendem, ambos sabem do que não é preciso explicar, o que existe na esfera maior das significações, maior, bem maior de que as contingências sociais.
Sei que pai estaria feliz, ontem, sentado numa das mesas com meu livro, como fez no primeiro lançamento. Antonio talvez seja ele, Antonio, Antonio, pensei que você apareceria no final da noite, atrasado, com uma rosa na mão.

domingo, 22 de agosto de 2010

Poemas para Antonio, parte 2

Eu era louca para publicar um livro. Tinha cadernos e mais cadernos cheios de poemas há mais de dez anos quando surgiu a oportunidade de publicar um. Beira-Vida caiu nas minhas mãos numa manhã de sábado, vindo pelos correios, e eu quando o toquei chorei ali mesmo, na frente de todo mundo. Tinha nesse dia vinte e dois anos de idade. Saí com meu amor e minha melhor amiga para comemorarmos. E fomos para a beira do rio, naquela manhã nublada, nós três rindo muito, numa felicidade cúmplice: minha amiga tinha feito a capa, meu amor tinha me dado a epígrafe, e eu estava com o livro publicado. Era demais para uma moçoila tímida que aos dezoito anos, indo ao cartório pra tirar o título de eleitor, foi recebida com perplexidade pela escrivã: ela não sabia que meu pai tinha uma outra filha. Onde andava você, menina?, me perguntou. Pois ali, naquela manhã, sentada nas pedras do rio, comemorava a estréia para minha primeira grande exposição pública. Lancei o livro em 21 de julho de 1990. Com um pimpão enorme no cabelo e usando uma calça jeans horrorosa, dei autógrafos. A família e os amigos presentes; pai trouxe seus parentes da roça e a cidade aplaudiu a moça que resolveu sair da toca. Daí em diante me transformei na poeta municipal.
Quatro anos depois veio Poemas escritos na pedra. Tinha vinte e seis anos. Já cursava letras vernáculas quando ele ficou pronto, e o recolhi não mais nos correios de minha cidade, mas nos correios de Feira de Santana, numa avenida movimentada. Porém a emoção foi a mesma. Nessa época pai estava muito doente, e nos raros momentos de lucidez falou sobre seus três últimos sonhos: ter tempo de assistir ao casamento de minha irmã, de ir ao lançamento desse meu segundo livro e de ver o ano 2000. Minha irmã se casou e ele não pode ir devido à gravidade da doença; e quando meus livros chegaram ele já estava quase partindo; mesmo assim o lancei, por ele, em sua homenagem, em 04 de junho de 1994; em 05 de junho, o domingo mais triste de minha vida, ele morreu, só não realizando, infelizmente, de nenhuma maneira, seu sonho de ver o ano 2000.
De 1994 para 2010 são dezesseis anos. Nesse tempo participei de algumas antologias poéticas, mas livro individual de poesia havia se transformado em algo quase impossível.
Entretanto, com a acolhida terna de amigos, na próxima terça o triângulo se formará: será lançado Poemas para Antonio. Três livros de poesia, acredito, já são três largas histórias, ainda que pequenas, para uma única e tímida vida.

sábado, 21 de agosto de 2010

Poemas para Antonio, parte I


Quem é Antonio? Não me interessa nem um pouco saber. Interessa a você?
Quando alguém toma a forma da palavra, a forma humana desaparece.
Não há pessoa de carne e osso que coincida com a palavra escrita.
O ser humano é perecível, imperfeito, faz doer.
O personagem é algo mítico, sobrevive na busca do estado de perfeição. Sobrevive no imaginário. Ronda caminhos etéreos e felizes.
Quem é Antonio?
É o santo.
E ponto final.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

destino


Que destino é reservado para os presentes que não chegaram, que desistiram de sua rota? Será que foram para outra pessoa? Ou então ficaram com seu dono, já certo de que sempre seriam seus?
Intrigam-me os presentes que num instante foram meus, mas não vieram depois para minhas mãos.
Ou as dedicatórias recusadas, que não chegaram ao livro publicado.
Ou os amores de uma noite, que na manhã não vingaram.
Para onde vão os afetos cortados?
E se seguissem, para onde iriam?
Ah, a casa é grande, dá tudo nela: presentes, amores, afetos.
Dá tudo aqui, nem pense em me poupar. Achou besteira o que iria me dar e por isso desistiu?
Não, olhe como é grande esse jardim. Ali, perto daquela pedra, acolhem-se direitinho seus pés. E nesse cheiro de vento, seu hálito abre uma manhã cinzenta e lírica.
Ah, a neblina... tudo é cena. Não desista.
Quero o brinco simples, o pingente de fosco cristal, o anel de pedra falsa, seu afeto quase parado.
Em mim recolho toda e qualquer renúncia.


Imagem: www.google.com.br

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

desaparecer


Meu corpo sabe morrer. Horizontaliza-se e busca os sonos empilhados. Um a um eles vêm, caindo das pernas e se rendendo a mim. Aí eu durmo com gosto e me despeço, temporariamente, do mundo. Um amargor deposita-se em minha língua, pastilha da desolação. Engulo-a e fecho os olhos. Sonhos loucos me esperam por esses mundos aos quais me entrego. O quarto preserva a atmosfera muda, fechada, como se me condecorasse. O telefone desligado faz parte do ritual macabro. É quando quero morrer, me dão licença? Morrer, morrer, devo ter esse gostoso trago. É uma droga, dê-me licença pra eu me drogar? Quero desaparecer. E o sono me leva. Tampada com uma coberta xadrez, preto no branco, e um travesseiro feito de almofada. Lanço-me no abismo, fecho os olhos e espero. Pra mim, nunca foi fácil pegar no sono, nunca foi fácil morrer. Demoram-se anos, às vezes, eu à espera, olhando o telhado. Deve ser assim pra todo condenado, com dia e hora agendados. Mas afinal, a vigília anuncia que o corpo vai ceder: na mente as imagens se juntam desconexas, e eu sinto a felicidade de desaparecer. Já está vindo, o corpo amolece no lençol, o travesseiro aceita, quase com amor, a cabeça pendida...
Enfim, corpo e alma em águas desconhecidas.



Imagem:www.google.com.br

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

cerimônia do adeus




Sempre é hora de ir embora. Três tortas de chocolate, vídeo, salgadinhos, brigadeiros. É farta a cerimônia do adeus. Outra torta enorme, branca sobre a mesa, mais salgadinhos e refrigentes. Outro vídeo. O aniversário de infância que não tive e ecos de um posterior parabéns. Meus filhos de vinte anos chorando. O mais novo me levando de moto, pelas ruas, bem devargarzinho, numa delicadeza antiga, duas horas pra me deixar em casa. Uma caixa de bombom de presente: pendurado aos chocolates o nome saboroso de cada um: Jéssica, Hiuton, Jairo, Kedma, Maria do Rosário, Rafael, Eduardo, Agna, Izabel, Letícia, Josimara, Simone, Eliene, Valquíria, Luciano, Adriana, Itamar, Marileide, Francieli, Camila... Todos eles, habitantes de um reino que jamais será perdido. Amor. Havia isso, naquele dia, dentro do retroprojetor, num poema que alcançou Eliene e imprimiu-lhe a alma. Poesia, requinte e desespero, simplicidade do fogo e da água, Ponge nos alcançando. Amor, palavra de luxo, já dizia Adélia. Rotina feliz, como se cortássemos a finitude do mundo. O abraço nos olhos, a descoberta, e a festa. A festa de se descobrir vivo, o carpe diem de quem não se sabia mortal, os olhinhos vivos, límpidos, mas nunca prontos para o final.


(Esse post é em homenagem aos meus alunos da Uneb, campus XXIV)
Fotos dos alunos do 1o. semestre. Não anexei as fotos do 5o., da festa-surpresa com as três tortas de chocolate, porque não as recebi ainda (não fiquem com ciúmes!).

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Desista


(...) Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. (Clarice Lispector, em Felicidade Clandestina)


Quem lê Clarice conhece muito bem o fragmento acima, que faz parte de um dos contos mais lidos da literatura brasileira. História de sadismo. De masoquismo. História de amor. Amor aos livros. E que se aplica a todo e qualquer outro tipo de amor. Quem ama deseja seu amado, mas tem sempre alguém que quer impedir isso. Daí você sofre. O outro, o que quer impedir seu amor, regozija com seu sofrimento. E você, por conseguinte, apega-se a esse sofrer com gosto, aceitando, deixando o outro cada vez mais feliz.
Como a menina do conto de Clarice, comecei a sofrer cedo. Minha colega de classe e amiga também tinha muitos livros e não me emprestava. Usava minha amizade nos momentos em que seus amigos preferidos não estavam presentes. Me rechaçava quando esses apareciam. Depois que iam embora ela me chamava de sua porta com um aceno, e eu ia. Podem me chamar de cara de pau, eu era mesmo cara de pau, ou melhor, como diria minha irmã, eu não tinha vergonha na cara. O que eu queria era ser amada. E quem quer ser amado nunca tem mesmo vergonha na cara.
Cresci, portanto, sem nenhuma vergonha na cara. Pedindo, mendigando amor. O outro, ao saber a profundidade disso, sempre me deu o sofrimento; porque dar o sofrimento em troca do amor pedido é uma forma de felicidade torta. A pessoa que lhe nega o amor se torna forte, glorioso, e por isso feliz: tem o amor do outro a tal ponto que o nega - eis a mais cruel força do poder. Negar amor e pisar em quem lhe ama é uma sabedoria às avessas: quem usa essa arma é sempre tranquilo, robusto, cevado, tem o rosto saudável. Ao contrário, do lado de cá o rosto se molha, linhas vão vincando a testa, a pele se rasga...
Desista!, diria Kafka, e eu agora repito, tenazmente forte.


Imagem: "Desamor2". In: www.google.com.br

domingo, 8 de agosto de 2010

nesse domingo


Acho quase impossível você ler esse texto; na verdade, nem sei se você ainda existe, se continua a trabalhar no banco, e ainda tem aquelas rugas profundas na cara. Acredito que sim para todas as coisas que pontuei, mais ainda que não lerá esse texto. Isso, porém, não me faz desistir de escrevê-lo. A escrita, portanto, legitima a sua ausência definitiva e toma parte dela, ocupa-lhe o lugar. E é melhor assim: não sei se será bom um novo contato. Isso porque eu continuo a mesma menina do final daquela tarde quando, sentados num barzinho à beira do rio, ouvi de você a leitura de meus olhos límpidos, pequenos, transparentes.
Você tinha a minha idade, mas com rugas fundas no rosto. Você era casado. Já tinha mulher e filhos. Você já era velho. Bancário. E encontrou de repente aquela menina ali, perdida naquela cidade, sem saber de nada. E me disse coisas sobre meus olhos serem ternamente límpidos, e o imenso perigo disso.
Hoje, nesse domingo, meus olhos estão turvos, vermelhos, nublados. Já se passaram mais de vinte anos. Porém, a menina continua lhe escutando, à beira do rio, no final da mesma tarde.


Imagem: www.google.com.br

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

nós dois


A minha história lírica eu a coloco no álbum antigo, com rendas nas bordas e aquele papel fino que antecede a fotografia. Os retratos são ovais, em preto e branco, e nós dois, sempre nós dois, lá nos encontramos. Em flashs oníricos você está sorrindo, e os olhos claros que sei verdes e fortes me acompanhando. De repente, de um salto, você estaciona o carro na porta e me espera: amigos, sempre amigos, entre um beijo e um abraço furtivos, amantes antigos, eu na sua casa, escondida, e a cidade em vigília. De muitas maneiras nós dois éramos puros, como crianças libidinosas, e nos amávamos, sabendo tocar o sonho e a realidade com dedos delicados. Nenhum de nós se feria; apenas cantávamos, e, sem saber, íamos a cada encontro colocando uma foto nesse álbum, que hoje nos observa.


Imagem: "Cien sonetos de amor", por Isa.
(www.flickr.com)

domingo, 1 de agosto de 2010

Brisa


Se aos dezessete eu tivesse uma filha,
teria seu nome: Brisa; e viria
com esse riso vívido, antigo,
de menina que um dia faria o colegial.

Se aos dezessete eu tivesse uma menina,
seria você, Brisa, a declamar poemas,
me ensinando coisas pequenas para quando
eu tivesse quarenta e dois anos.

Se aos dezessete, enfim, eu tivesse você,
Brisa, e você fosse minha filha,
eu te tomaria no colo, para sempre,
nos seus eternos seis anos.

Dentro de nós

Dentro de nós uma pedra
onde uma cachoeira desce,
macia,
aquosa,
farta,
mundo se transformando em água.
Um prédio enorme implode, e incólumes nos unimos,
suspensos em fios de sonho fatal.
Parece que Deus,
sublime e terrível,
nos alcança inteiros com sua mão.