domingo, 31 de outubro de 2010

lua em peixes


Sou do ar - mas tenho medo de altura. Medo não, pavor. Não entro em avião. Nem dormindo gosto de sonhar voando. A sensação, dentro do sonho, é sempre que vou cair. É isso: voar é sinônimo de queda. No entanto, vivo no ar. Nem é preciso, veja, terminar o raciocínio: vivo em quedas constantes. Mesmo caindo das nuvens e não do quarto andar - e aqui contrario Machado -, a queda é braba. Ando com as pernas feridas: as perebas se alastram, sem remédio. E os braços? Ficaram tortos. A pele é ressecada, pois que o vento acaricia quem cai, e carícia constante de vento dá ressecamento na pele - a ponto de envelhecê-la mil anos. Não, não caio no chão, é essa a fatalidade. Caio sempre em outro lugar.


Imagem: www.google.com.br

o que é belo no mundo


Pai com uma máquina fotográfica nas mãos e mil ideias na cabeça. Filhas indo para todos os cantos para tirarem retratos. Eu, incrível, fui me sentar para ser retratada no lugar mais feio da casa: o monturo do quintal. Nesse monturo tinha um um pneu jogado de lado, uma panela velha e um pedação, rasgado, de papel. Eu me sentei na pedra em pose de artista, com um laço de fita no cabelo e um vestido amarelo. Clique! Eterno.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Henry Fonda


Antes que o juiz divulgue a sentença, peço a Deus que Henry Fonda me absolva. Que reúna os onze membros à mesa, lá dentro, e me defenda. Os indícios todos me incriminam, todos. Mas eu não quero ser presa. E não é por nada não; é para não ser preciso aturar os congêneres na mesma cela. Não tenho, como vocês bem sabem, diploma superior. Isso me preocupa, de fato: aturar gente perto de mim, numa cela de poucos centímetros. Suor de gente, fala de gente, risada de gente: há coisa mais detestável? Se eu estou querendo ser o Antoine Roquentin? Se eu me acho parecida com Mersault? É, pode ser. Sou metida a besta, e, por isso só, mereço esse júri. Mas Henry Fonda está lá dentro, curvado, feio, sóbrio, honesto. E irá encontrar peças falsas que sempre existem em quebra-cabeças perfeitos. Entretanto, para que eu quero mesmo a liberdade? Para que é que eu quero ser absolvida? Mulher medonha, má, misantropa, cruel... o que mereço? Talvez nada, talvez nada. Então, que o júri se dissolva e nem pense duas vezes: culpada. E Henry Fonda, finalmente, se abstenha. Quem é culpado tem de pagar, aprendi isso desde menina, na palmatória envernizada da professora. Mas sou, de fato, culpada? O olhar de Henry para mim, perante a acusação do promotor, dizia que não. Por que então esse remorso me corroendo os cabelos, arrancando fio por fio, enrijecendo-me as virilhas?

sábado, 23 de outubro de 2010

no escuro


Não há mais o que falar. Esgotaram-se os assuntos. Fiquemos em silêncio, portanto, eu e você. Apaguemos as luzes. Não, não mais direi sobre solidão, nem lhe darei o braço na noite escura. Não mais gritarei ao mundo qualquer indelicadeza: sairei à francesa, com a trilha musical de mil novecentos e sessenta, numa esquecida película em preto e branco. Apaguemos, volto a pedir, as luzes. No escuro, tudo se transforma em literatura.


Imagem: cenas do filme "A moça com a valise" (1961), de Valerio Zurlini.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

outro lado do mundo


estou do outro lado do mundo, onde não há telégrafo; cortaram os fios do telefone, e o carteiro por aqui não passa há muitos anos. A televisão é só chuvisco, assim como a neblina lá adiante, afugentando o galho daquela árvore. Pergunto o que estou fazendo comigo num lugar desse; pergunto se alguém vê meu rosto na janela, na casa de platibanda, diáfana e desaparecida no pântano. Não, não me vêem, sou eu própria desaparecida, estatística que sequer se avulta - ninguém chega à rua onde moro segurando uma placa com meu nome, com aquelas inscrições esperançosas do insistente procura-se. "Ó sombra fútil chamada gente!", grita Álvaro de Campos aos pés de minha alma. "Fazes falta?" "Ninguém faz falta", continua gritando. E eu imagino agora como seria o encontro de Fernando P'ssoa e Cecília se não fossem os astros. Os astros moram, de fato, nesse outro lado do mundo: aqui onde desaconselham sempre o contato, a troca, o encontro.


Imagem: cena do filme "Flores partidas"(2005), de Jim Jarmusch.

inscrição para os desesperados


Cavemos esse túnel. Cavemos até o mais extremo do fundo. Sei que não haverá fundo totalmente, só superfícies em camadas. Tentemos desfolhá-las, sem qualquer pudor. Seremos duas criaturas ignóbeis, imundas, com as roupas sujas de terra úmida. O importante, se quisermos alcançar, é prosseguirmos, abrindo a passagem cada vez mais firmes. Esfarrapados, pois que as pedras que se misturam à terra são pontiagudas, e rasgarão nossas vestes. Fedorentos, descendo, em momentos nem seremos mais criaturas: talvez mortos sem caixão, nauseabundos como dois fantasmas sujos.
Cavemos esse túnel, talvez lá embaixo estejam arcas fechadas, guardando as verdades que procuro.



Imagem: Filme "Eu não tenho medo" (2003), de Gabriele Salvatores.

domingo, 17 de outubro de 2010

histórias de família


Em Romances Familiares, Freud traz algo que me comove muito. É a passagem, ressaltada por ele, em que desejamos substituir os nossos pais por outros "de melhor linhagem". O que me vem à mente agora é a substituição de mãe, que eu fantasiava. Queria que minha mãe fosse uma mulher vaidosa, com sobrancelhas feitas, batom na boca, usando sapatos de salto alto e brincos enormes na orelha. Diferentemente de tudo que mãe era: usava vestidos feitos por sua própria mão grossa, cheia de calos; as sobrancelhas trazia-as desalinhadas; nenhum batom na boca, carregando nos pés sandálias baixas e na orelha brincos inexpressivos. Era exatamente o inverso daquilo que eu queria ostentar como minha mãe. Principalmente nas reuniões de pais e mestres, em que as mães de minhas colegas, com aquele perfil sonhado por mim, apareciam na escola. Devo confessar que tinha enorme vergonha dela. Ora, por que, eu me perguntava, aqueles vestidos retos, florais, fora de moda? Aquelas sobrancelhas grossas e despenteadas? Aquelas sandálias sem graça, mostrando suas unhas mal pintadas? Tinha inveja de minhas colegas, desfilando pelos corredores da escola com suas mães aristocráticas e lindas.
Freud diz que ao fazermos isso não estamos descartando nossos pais, mas enaltendo-os, pois no fundo atribuímos a esses novos pais, substitutos, qualidades que têm origem nos nossos pais verdadeiros. As qualidades são aquelas de amor e tranquilidade da infância, que se perdem na fase crítica de distanciamento. Fase em que se descobre a distância do amor tranquilo. Portanto, se nos meus quatro pra cinco anos mãe para mim era uma mulher linda, rusticamente linda, nos anos que se seguiram virou um algoz de sobrancelhas horrorosas, que me batia muito; porém, na minha cabeça tudo talvez se justificasse se ao me bater ela estivesse usando um vestido de festa, de cetim, de organdi, com as sobrancelhas refinadas.


Imagem: www.google.com.br

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

duas grandes solidões


Duas grandes solidões se encontram, sempre, à distância de um palmo, nada mais do que isso. Tocam-se as mãos e só. Duas grandes solidões se compreendem, mas não se abraçam. Ibsen disse que o homem mais forte é o homem só. Somos fortes, portanto: um homem e uma mulher demasiadamente fortes, pois que choram sozinhos. Poucos aceitam esse destino: alguns dão dois mil réis por uma prosa qualquer. Não é fácil aceitar esse destino e já perdi as contas de minhas conjurações. E que não dão em nada: volto sempre murcha para casa. E, nesse sentido, minha casa não é sua casa, pois que duas grandes solidões, repito, não se abraçam. Olham-se, apenas, estupefactas. Assim como olho pra você, e vejo-a em seu corpo. Você é o grande dono, maior latifundiário que já conheci da Solidão. Muita terra à vista, arenosa, palpitante, terra boa, de boa guarida, mas completamente inalcançável. Conheço-a, já senti nos pés a quentura dessa terra, já comi das iguarias que ela doa, mas só isso. Ela nunca será minha nem de ninguém, não há doação possível de tal propriedade. Nela apenas se repousa sobre a árvore, assim como faço com você, à distância de um palmo.


Imagem: Noite. www.google.com.br

terça-feira, 12 de outubro de 2010

salve, salve


Mãe me liga nesse feriado, bem cedinho, para me desejar feliz dia das crianças. Dou risada doméstica e digo-lhe que não sou mais criança há muito tempo. Ela retruca que para ela sou sim. Conto-lhe que sonhei essa noite com meninos me derrubando da cama. Ela imediatamente sugere que foram São Cosme e São Damião, crianças a quem recorre como proteção a mim e a minha irmã desde que éramos bebês. "Eles são assim, gostam de brincadeira". Interessante é esses dois meninos derem o ar da graça logo hoje. Se é o seu dia, ela diz. É verdade. Pois que ainda tenho uma criança birrenta, agressiva e tola aqui dentro. Pois que ainda tenho uma criança assustada, insone e que brinca de casinha no sindicato em que o pai trabalha. E que ainda insiste em ter um bonecão horroroso com o mesmo nome: Carlúcio. E o bonecão envelhece a olhos vistos, a cada dia mais branco e desbotado. E o plástico que lhe cobre o corpo está fino e depurado. Mas ela insiste em carregá-lo, niná-lo, abraçá-lo. Estúpidos, loucos, eu assim os chamaria olhando-os de soslaio, rindo deles como sempre ri de mim, vestida de anjo em festa de largo.


Imagem: Festa de Nossa Senhora da Glória (1977). Fotografia de Mozart Santana.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

a Miserável


A quem era atacado pela tuberculose naquela época era exigido o mínimo de bom humor. Segundo Manuel Bandeira* a digníssima, "uma mulher meio romântica", "excessivamente magra, a boca muito vermelha de rouge", e que sempre aparecia tossindo, foi batizada pelos poetas de a Magra.
Num contraponto a essa distinta a Magra, que nome daríamos à dissimulada doença do nosso século?
A Gorda? A Obesa? A Bozenga? A Esticada? A Murcha? Que nome, gente, daríamos à Depressão? Não consigo ser engraçada nesse momento, e ainda tem o perigo de cair nas armadilhas do politicamente incorreto.
Diferentemente de a Magra, ela (a Depressão) não é nem um pouco romântica; muito pelo contrário: é em demasia pragmática, e lhe exige vida ativa a qualquer custo. Você amanhece indisposto, com vontade de curtir um dia sem trabalho, aí ela lhe joga no cocuruto a Culpa: primeiro e inocente vírus que lhe levará à Grande.
Culpa, culpa e mais culpa - é igual a tosse, tosse e mais tosse. Só que a Magra tinha boca vermelha de rouge, enquanto que a de cá nem boca tem, quanto mais vaidade. É algo disforme, mais pra monstro, com duas garras nas mãos, e que lhe abraça com gosto de morte. Morte consciente, que deve ser a pior das mortes. Você numa espécie de duplo lhe vendo morrer, pálido, sem sentidos: sem tato nem paladar e nem olfato.
Naquele tempo se as pessoas sabiam que você estava de namoro com a Magra, mesmo querendo distância de você com medo do contágio, pelo menos lhe aconselhavam a tomar os bons ares de Minas, quiçá da Europa; na pior das hipóteses lhe desenganavam da vida e desde então lhe tratavam a pão de ló. Com a Miserável de cá muito pelo contrário: lhe desenganam é da morte, e o que lhe dão como pretensa medicação é um tanque cheio de roupa suja para lavar.
Como legitimar a Miserável? Batizá-la com outro nome é o primeiro passo. Exige-se também que tal nome seja engraçado. Hei de encontrar humor em tempos tão severos. Hei de encontrar.



*In BANDEIRA, Manuel. Crônicas escolhidas 2. São Paulo: Cosac Naify, 2009, pp. 34-35.

Imagem: Medusa. In: www.google.com.br

domingo, 10 de outubro de 2010

castigo primordial


Não sou heroína de nada, nunca salvei ninguém que estava se afogando, nem que iria se jogar do décimo andar. Por isso o castigo que me deram foi a liberdade total, provinda da solidão mais solta, mais desconectada, quase voadora. Estou aprendendo a amparar-me nas paredes, colando nelas figuras de artistas, escritores, recadinhos de seres que estão no passado, ou uma oração, uma santa, pois que preciso de ajuda do além; quando meu queixo cai por exemplo: se não fossem as entidades enfermeiras que me acompanham, hoje eu estaria com a boca tortíssima, com o queixo pendurado no pescoço. Tenho crenças, meu amigo, crenças fracas, às vezes fraquíssimas, mas crenças. São elas talvez que me sustentam nesse silêncio isento de qualquer bulha. Oh, como gosto dessa palavra: bulha. Palavra antiga, lembra crianças gritando, azáfama de pratos tilintando na cozinha, festa de família, festa de domingo. Mas se nunca fui heroína, por que mereceria uma bulha dessa? Nunca fui sequer mulher de herói, nunca serei Penélope. Para que distintivo, portanto? Mereço, e bem merecido, essa liberdade inútil. Liberdade que tolhe os movimentos, que lhe joga na cama, e lhe ensina aula prática de solidão. Aula prática de solidão é assim: corpo inerte. Aula teórica é entendimento filosófico-existencial dessa coisa verdadeira que é a solidão: você sai da aula entendendo tudo, e bem forte - compra mil livros e mil filmes e vivencia bastante essa coisa rica que é finalmente entender-se só. Dorme tranquilo, só, e acorda, tranquilo, só. Porém, na aula prática você é um verme, sabe-se verme, e sequer tem vontades de abrir o olho pela manhã. Vira personagem sartreano, camusiano, sabe-se parte de um estrangeirismo sem limites, e nem se importa se for condenado à morte sem culpa. Nada lhe importa. Esse é o resultado da aula prática. Às vezes evoluo muito na aula teórica. Faço ricas autoanálises, e em grandes momentos acho-me madura, quase heroína de mim mesma. Mas o meu maior rendimento, de fato, é na aula prática. Cair é sempre mais fácil, dormir idem, se ausentar, morrer, aceitar sem revide, deixar de existir. Esse é o preço módico de ser livre; castigo primordial por nunca ter livrado alguém de um naufrágio ou do suicídio.


Imagem: "crime e castigo". www.google.com.br

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

a solidão


Sim, já tentei colecionar selos, também cartão postal, também papel de carta, também vinis de Caetano, também livros de Lispector, etc. Já tentei colecionar pedras, assim como a colecionadora de areia a que Italo Calvino se refere no seu belo livro de ensaios Coleção de Areia. Só que colecionar pedras dói bastante o corpo do vivente, ao carregá-la no lombo tal qual Sísifo extremamente cansado. Lembro de mim descendo as serras das Lavras Diamantinas, e extraindo de cada lugar uma pedra, a fim de depositá-la na velha mochila. Minhas costas sangravam, minha coluna se acabava, mas uma pedra dali eu tirava, levando-a para a minha coleção. O pior é que eu punha na pedra o nome, à caneta, do lugar de onde veio. Ou seja, eu profanava, com uma tinta azul, algo bastante natural, vindo do ar e da água daqueles lugares. O que eu queria com aquilo? Como sugeriu Calvino, será que eu queria reter os momentos passados ali, ou mesmo o lugar? Mas a pedra não trazia tudo, o habitat, o ar, o sol que caía nela, o vento. A pedra vinha só. Um belo ensinamento, pois, sobre a solidão. A pedra vinha só, mesmo acompanhada de várias outras pedrinhas que porventura eu trazia do mesmo local. Entretanto, o cheiro de lá estava nela, e eu cheirava, e lembrava. A sinestesia sempre me salvou como consolo do que nunca pude reter, aquilo em que a solidão põe suas garras feridas.
... Então certa época inventei de colecionar cabelos. Guardei um fio deles dentro de uma caixinha de lembranças. Trazia o cheiro de seu dono: cheiro de pedra, mormaço, vento, lavras. Mas numa tarde de muita raiva joguei-o no balde de lixo. Assim como na infância desisti dos selos, dos cartões postais, dos papéis de carta. E mais tarde abri mão de ter todos os vinis de Caetano e todos os livros de Lispector...
Para que tentar reter, reter, reter numa ordem inabalável, coisas e seres, se tudo apenas sobrevive de sua inteira e larga solidão?


Imagem: Cena do filme "Um dia muito especial"(1977), de Ettore Scola.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Saudades de Maria Sampaio


Hoje acordei com imensas saudades de Maria Sampaio. Sonhei com ela; perambulamos juntas por esses espaços nebulosos trazidos pela noite, espaços de festas e de alegrias, de encontros. Acordei e senti saudades de seus comentários nesse blogue, e, principalmente, de sua plena vocação para viver. Ô essamenina, a saudade está grande, viu? Como é, já proseou muito com São Pedro por aí? Ele tem boa prosa? Ele já te apresentou a Irene preta, Irene boa? Como ela é? E o reencontro com sua mãe e seu pai? E o batuque? No céu tem caruru? E Jorge, o Amado? Já te pediu pra digitar algumas páginas do novo romance? Tem trabalhado aí, mulher? Acho que não. Acho que você só tem feito é festa, reencontrando os amigos todos que se foram antes. Nas festanças daí você dança Cajuína com quem? E as fantasias? Quais tem usado? Ah, minha amiga, são muitas perguntas. Perguntas de quem ainda passeia do lado de cá, convivendo com aquilo que mais se materializa nessas bandas: saudade.


Fotografia: blog de Maria Sampaio: http://continhosparacaodormir.blogspot.com

domingo, 3 de outubro de 2010

infância


Freud me encanta, e a cada livro dele que leio saio inebriada, algo inerente à literatura. Concordo e muito com o que ele acreditava ser a grande dificuldade dos homens: sair da infância. A infância nos persegue assim como, quando crianças, perseguimos a verdade, aquela que os adultos escondem com medo.
Digo a vocês, como quem proclama uma verdade inútil: acreditei na cegonha. Até hoje vejo-a sobrevoando o quarto, levando-me no bico (isso não é trocadilho) e depositando-me na cama, naquele mês de novembro em que mãe me esperava na mais terrível solidão. Essa é uma verdade, foi a minha verdade, tristonha e perdida. Isso porque acreditei nela, acreditei sem nenhuma dúvida, até minha irmã me mostrar, com todas as cores, a fotografia de uma mulher parindo. Como livrar-me, portanto, da crença mais antiga e do desencanto mais cruel? Eu tinha dez anos e era estúpida demais. Aquele mundo de carne e sangue me assombrava, eu que preferia acreditar ter vindo da limpeza do ar, trazida por uma ave lírica.
Minha irmã, desde aquele dia, me dava as notícias do mundo. Mas eu acreditava era em mãe, e no almanaque sadol que nas suas páginas me mostrava uma cegonha perfeitinha, levando um bebê para alguém. Parecia-me cruel demais a natureza: nascer em meio a sangue, grito e dor. Isso era mais castigo que felicidade. Foi minha irmã também quem me disse como é que os bebês se formam, o que os pais fazem, etc. Não, não eu não queria saber, tudo devia ter muita dor, sangue e desespero. Por isso aos doze anos tive pena de uma noiva que assisti casando. Durante a cerimônia do casamento eu imaginei o quanto aquela criatura iria sofrer na noite de núpcias, que seria de muita dor e sangue. Libero a risada de quem está lendo. E assumo a total estupidez.
Assumo porque, volto a dizer, eu não entendia nada, absolutamente. Somente sentia. Sentia muita coisa. A natureza em mim não trazia decodificação, palavra: era vento batendo na pele, sensação, à revelia, de que eu era dolorosamente viva.


Imagem: infância. www.flickr.com

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

exposição


Não consigo entender uma arte que não nasce da carne, da profunda dilaceração da carne, da ferida, da dor da ferida exposta, das moscas sentando em cima. Se a arte não nascer disso, é decoração, é paisagem amorfa, é epifania barata, é bordado. Camus, aqui perto, sopra no meu ouvido: "... a obra de arte deve servir-se, em primeiro lugar, dessas forças obscuras da alma". Não quero cantar roda não, menina, quero mostrar minha ferida exposta. E não é apologia ao sofrimento, é o próprio sofrimento, exposto. Quer ver? Esqueça então um pouco o seu bordado no bastidor e venha cá. Você já teve uma ferida dessa? Oh, não? Então terá, aguarde, é uma questão de tempo. E se tiver, não tente tampá-la com um mero bandeide. Deixe-a exposta ao sol da manhã. Deixe o sol cair na sua ferida, deixe-a doer, não fuja da dor. Para que, menina, vestir uma calça comprida a fim de esconder as perebas de sua perna? Não gosta da palavra "pereba"? Oh, deixe de ser decoradora de exteriores. Pois que a vida talvez seja só um grande salão interno, profundamente interno, amplo, branco, vazio; e nós, aristocratas vivendo nela, acreditamos triunfar com móveis caros.


Imagem: "Vazio". IN: www.google.com.br