quarta-feira, 20 de abril de 2011

abaixo do céu


Existem sombras em minha escrita. Clarice nela habita, ecoando o que acredito ser genuinamente meu. Sou sombra descarada de muitos, imitação barata de tudo. Cadê eu? Não habito esse mundo; sou sombra de meus antepassados; simulacro, repetição em cadeia, falo o que falam meus pais e meus tios e meus primos. Meu sotaque me denuncia, evidencia minha origem roceira, pé de pau fincado no mato, folha que balança sem vento. Tudo que escrevo muitos já escreveram, não há originalidade em mim; tenho um rosto comum demais e vocês bem sabem como é um rosto comum que envelhece: não há motivos para tristezas, mas para risadas. Sou uma piada, sem qualquer lirismo. Já fiz ioga, terapia, tentei o ommm e o espaço sideral: estou caída no chão mesmo, com meu rosto comum, que envelhece sem qualquer comoção. Cansei de pintar os miseráveis fios brancos, grossos, que se enxertam em minha cabeça e fazem uma coroa trágica acima de minha testa. Até nisso imito; imito a coroa branca acima da testa que mãe usa desde os quarenta. Será que minha dor é original? Que nada, todos a sentem, de maneira aguda, como uma agulha entrando sutilmente no pescoço. Nem meu destino é meu: nele você entra, com um cajado maldito, tangendo árvores e cantos para baixo, bem abaixo do céu; sou tão pouco original ao pensar, sempre, que quem faz isso é Deus.

terça-feira, 12 de abril de 2011

para os meus amados alunos


Muitos estudiosos da literatura passaram décadas anteriores questionando o que é a literatura. Como ressalta Compagnon, professor francês, o questionamento que se faz hoje é bem diferente: "literatura para quê?"
Todas essas questões, claro, pensando no âmbito escolar e universitário onde a disciplina literatura insiste, ainda bem, em sobreviver, mesmo diante da indiferença e da ignorância da maioria dos acadêmicos que não a conhece. A questão se agrava porque vivemos dias burronildos do politicamente correto, e, equivocadamente, exigem tal postura nos textos literários. Exigem dos escritores e por sua vez dos textos literários por eles escritos, "posturas funcionais", "corretas" diante da sociedade. O que nos resta fazer infelizmente é generalizar esse tempo de burrice geral. Ora, ineptos, vão ler qualquer livro de literatura primeiro, antes de ficarem teorizando ignorâncias. Antes de tudo, para se sentir vivo e lúcido, e não um papagaio propagador de discursos modistas, vá aprender a se inquietar com a existência de maneira visceral e não superficial e panfletária. Primeiro é preciso acordar e aceitar sua própria condição finita e infeliz. Você faz tanta reunião, se preocupa tanto com a burocracia que engendra a universidade, o curso de letras, as 'minorias', que não dá tempo pra saber-se um miserê mortal, interiormente tristonho, cego e enviesado. Acredita-se, muito pelo contrário, feliz e cumpridor do dever, enchendo papeladas e mais papeladas com resoluções burocráticas inúteis... Ó feiosos do mundo, quanto deveriam aprender com Bartleby!
A vingança homicida diante da tristeza inconsciente desses fulaninhos medíocres é autorizar reunião e mais reunião de seis horas no lombo de alguns poucos que querem apenas dançar, falar poesia, se encantar e se inquietar com a complexa existência, pois que só assim a alma humana se reconhece viva e propensa a possíveis mudanças. Só dessa maneira os indivíduos, reconhecendo-se enquanto indivíduos, saberão usufruir da mais bela e dura verdade: a solidão, e o que poderá fazer ou não fazer dela e com ela antes de morrer.
Literatura para quê? Já é minha a pergunta do professor Compagnon.
Para amenizar essa solidão desgraçada.
Para não ter culpa ao roubar um mero rolo de papel higiênico na rodoviária.
Para não ter coragem de “lutar contra a existência” de fato e de direito.
Para se aceitar inicialmente humano, terrivelmente humano.
Para tentar produzir palavras libertadoras diante do inevitável e obscuro.
Para tentar entender essa engrenagem metálica, mecânica, sofrível e perniciosa que é a vida.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

das misérias humanas


O pior do desespero é que não adianta lascar a roupa, tirar um chumaço de cabelo, ficar histérica. Não adianta espernear; devia ter ouvido isso quando criança. Não adianta espernear, não adianta dar chilique, gritar, berrar, soluçar, ranger os dentes. Talvez um calmante na veia, talvez. Ou uma mordaça, e braços e pés amarrados na cama. Já ouviu a expressão "correr pro mato"? "Fulano correu pro mato"... Isso significa o endoidamento de gente da roça. É só dar gastura no juízo que o varão campesino corre pro mato. Já tive vários tios que correram. Enfim, esse é o ápice do desespero. Um dos mais simples é perder uma noite de sono: vira-se na cama de um lado para o outro querendo desaparecer. Um dos mais tristes é aquele irremediável no seu sentido mais terrível, profundo: aquele que a morte escancara com seus dentes de ferro. Esse também não adianta esbravejar, não adianta. Aí profere-se uma palavra que está muito difundida no novo testamento: resignação. Resignação é algo parecido com o efeito que uma injeção na veia produz no malsinado. Só que sem a injeção. É apenas mera e dolorosa aceitação que acontece em virtude da simples obviedade: não tem jeito. O suicida, no entanto, é aquele que não se entrega, não se resigna, vai à sua última luta, o seu último esperneio.