sábado, 31 de outubro de 2009

a idade de Kafka


Com essa idade. A idade de Kafka. A vida inteira levei sem ter essa idade: hoje vejo a baliza. Nunca vi a baliza, nunca vi. Ora, quase nunca nada se vê. Ora, se vive. E eu nunca vivi. E nunca viverei. Não lembro de mim em mim antes, nunca. Superfície sobre as ondas, o que eu era. Não melhorei nada, continuo péssima. Não sei fazer um bordado, não sei brincar de estátua, não sei me locomover na cozinha. Continuo péssima. Indubitavelmente infeliz.
Com essa idade, a idade de Kafka, tudo piorou. A clareira se estendeu, as árvores ficaram cada vez mais longe, dando sombras inúteis ao resto do mundo. Ganhei - nesse deserto - uma casa, lá isso é verdade. Equipada com utensílios que eu almejava com frêmito, fanatismo dilacerado. Uma televisão, um aparelho de som, muitos cedês e alguns livros. Na parede, figuras de santos, inúmeras. De todas as religiões. No quarto, Cecília; e Drummond sério, circunspecto. Sempre quis isso: uma casa, meu sonho médio, com janelas para o quartel.
Tenho isso, com a idade de Kafka, com essa idade. Nunca a senti tão fatal. De cá posso ver os presos tomando banho de sol. Todos eles magros, belos, inclinando-se para o chão. Eu me inclino para vê-los. Por isso a corcunda: por conta do zelo de contemplá-los, de perceber a mudança nas cores de suas peles, eriçadas pelo vento que não veio, que não virá nunca.




Imagem: "laberinto de Kafka", por santiagus.
(www.flickr.com)

sem véu de alegoria


Há um tempo de mudez. E é este. Bocas tampadas com esparadrapo. Não é um esparadrapo de boa qualidade, pois que a demanda é grande. As farmácias quase que só vendem esse objeto. As próprias vendedoras enchem a bolsa, e quando os fregueses chegam ficam com ódio, querendo mais e não achando. Todos querem tampar a boca. Descobriram que é bom. Dar um alívio às cordas vocais, à saliva, aos dentes, enfim, aos movimentos palatais, pode ser, acreditam, o grande segredo. Mas ainda não conseguiram alcançar o silêncio. O costume põe a boca torta, e o que saem dessas bocas são grunhidos, no esforço da comunicação sem fala. De qualquer maneira, pois, a garganta não tem descanso: o grunhido vem de lá e espoca nos olhos perplexos quando se percebe que o que "disseram" foi entendido de outra forma. Para se chegar ao estágio de descanso absoluto da garganta e adjacências é preciso muito, muito esforço, percepção e exercício. Por isso essa mudez não trouxe ainda a felicidade. É bom que esperemos. Chegará o tempo em que todos jogarão fora o esparadrapo, por consciência plena do primarismo dele. Não, não é necessário o esparadrapo, gritará um iniciado em plena praça pública. E todos tirarão aquela parafernália da boca sem nenhum grito, sem nenhum espalhafato. Bestamente iluminados.




Imagem: "iluminados", por loquetemiro.
(www.flickr.com)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Rito


Desde o meu primeiro dente de leite caído da boca e jogado no "mourão", brinco falsamente com as perdas: Mourão mourão toma o meu dente podre e me dá um são. Claro que meu dente de leite não estava podre, eis o problema. Se estivesse podre poderia, sem dó, jogá-lo fora; estava novinho, mas caiu, saiu de minha gengiva. Mesmo assim fui obrigada a me livrar dele, lançando-o em cima da casa, com aquela cantiga falsa, cantada porque todo mundo cantava. Não importava a qualidade do dente, importava o ritual mentiroso.
Sofri muito com a perda de meus dentes de leite. Chorava pedindo a mãe meus dentes de volta. Esta foi a primeira imposição de desapego que a vida vociferou para mim. Ia comer e sentia falta deles; sorria e me via um ser sobrenatural. O pior foi o nascimento dos segundos dentes: cada um maior que o outro, maior do que eu, maior de que minha infância: dentões amarelos sem querer rir.
Ai, ai, brincar com as perdas. Pensar que o que vem depois é bom. Como gostar daqueles novos dentes? Como? Quadradões, impositivos, adultos? Eu queria era meus dentinhos suaves, discretos, inocentes. Brincar com as perdas. Pegar o dentinho de leite e jogá-lo sobre a casa com aquela cantiga besta. Ai, brincar com as perdas tendo uma lágrima por dentro. Volto a reiterar: meu dente estava saudável, saiu sem precisar ser amarrado com barbante, sem precisar ter ido ao dentista. Pronto: caiu sozinho, novo em folha. Essa configura a pior das perdas: a que se perde "naturalmente", que a natureza impõe sem conversa, sem réplicas ou negociações.




Imagem: Perdas... por mhaulzanardi.
(www.flickr.com)

domingo, 25 de outubro de 2009

Oferenda


Mais uma vez, ontem, teu dia, não fui ao mar. Fui criada na água doce, águas do rio santo antonio desembocando no rio baiano, rio gafanhoto. Lá não tem onda pra me assustar. O máximo que tem pra dar susto é um limo aqui e acolá, uma escorregadinha, ou uma areia funda levando para as profundezas nossas pernas. Água vermelha, água preta, água amarela, água branca. Friazinha que dá gosto abrir as mãos em concha para bebê-la. Depois deitar o corpo nas pedras, sentindo o cheiro do mato e da areia.
Oh, minha mãe, perdoa-me o mau costume. Tenho medo de tuas águas. E já estou ficando velha para aprender a fazer castelos e abrir cacimbas. Noutro dia levei flores para ti, veio de lá uma onda de uns dois metros e quase me carrega junto com as flores. Sou desajeitada para te agradar, não sei vestir branco, muito menos azul, e nem cuidar do meu ori. Meu juízo é quente, minhas mãos fechadas, meu semblante triste.
Ontem, sábado, mais uma vez não fui à tua casa; então te ofereço, hoje, lindas rosas brancas aqui mesmo - nesse mar que tenho por dentro, azul, largo, infinito.




Imagem: "Iemanjá". In: www.flickr.com

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"Inscrições antigas"


LIVRO DA PELE

Ricardo Nonato

Deites
Quero riscá-la
Desenhar no alto
De suas pernas
Inscrições antigas
Lembrança dos faraós
Rupestres dizeres de nada

Deites
De braços abertos
Que vou segurando
Seus ombros
Remando levemente
Sons de Orpheu.

É madrugada
Sua pele desliza no vale
Dos meus olhos
Para beber fluente
Da carne
De minha boca.

Deites
Quero riscá-la
Arranhar em você
As estrelas do meu peito.

Com língua enlouquecida
Derramar teus sumos
Sabores
Pelo chão de nós dois.

Deites,
quero riscá-la
Na colina das tuas ancas
Plantar sonho haveres
Tronco tombado
Em teu vale

Deites,
Quero
Tremular meu desenho
Borrar seu retrato
Em meu peito.

O borro do gozo
No amor.



Imagem: "Anima e corpo", por Amperora.
(www.flickr.com)

domingo, 18 de outubro de 2009

pirlimpimpim


DEIXAI-ME, DESTINO

Deixai-me, Destino, ver-me menina
Andando num milharal antigo, a ouvir
Meus breves passos no chão...
Deixai-me.

Que nem é tarde ainda, mas minha mãe me chama
Para que eu a acompanhe...
E a manhã vai longe, caindo pelas casas
Que pouco a pouco encontramos...

Deixai-me, Destino, ir com ela de novo.
Meu vestido é curto, o mesmo de antes:
bordada na frente, uma carrocinha de flores.




Imagem: "Menina em Itatiaia" - Alberto da Veiga Guignard, óleo 1942
(www.flickr.c0m)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Arte bonita


Se Mallarmé estava certo e, de fato, tudo existe para resultar num livro, posso dizer que acordei cedo hoje só para ler microscopicamente essa frase de Mário de Andrade, solta num ensaio: "(...) artes mais ou menos bonitas que gozaram e gozam, com justiça, as galas e regalias da prostituição".
Soco na barriga.
O que seriam, hoje, "artes mais ou menos bonitas" gozando, "com justiça", as "regalias da prostituição"?
É arriscado responder a essa pergunta. É dar o pescoço à guilhotina.
Ainda mais agora que a aeronauta já tem rosto. E endereço no mundo.
O que seria arte bonita vivendo na prostituição?
E os escritores prostitutos? Onde estão? E o que é ser escritor?
De braço dado com o maniqueísmo sempre lutamos para defender os nossos, colocando-os em altares, livrando-os de toda má língua.
A literatura, a arte, que bom, evola-se do homem que a fez nascer.
O homem é uma peste, é um anjo, é uma peste e é um anjo, mas cria algo maior de que uma peste e um anjo.
Nas superfícies da história estão as "artes bonitas" que se prostituiram na sua época, ganhando muito em troca como publicações e nomes em voga, para depois entregarem os pontos de sua beleza diante de um leitor indiferente.
Kafka foi à luta para publicar seus livros. Fazia leitura dos seus textos nos cafés. "Não se isolou". Mas sua arte nunca foi bonita.
Cruz e Souza, conforme atestam os críticos, também participou de rodas literárias para depois "se isolar" em sua chamada "torre de marfim", morrendo na mais absoluta pobreza. Mas sua arte nunca foi bonita.
Drummond não quis saber de academia brasileira de letras, e sua timidez ganhou status de refinamento e respeito. Mas sua arte também nunca foi bonita.
O que é, afinal de contas, uma "arte bonita"?



Imagem: "Havaianas e acessórios em tecido", por cintiacmc25.
(www.flickr.com)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

em silêncio


Acalma-te, Hamlet. "Vê como a Dor te transcendentaliza!" Jesus, depois da revolta, entregou-se. "Muss es sein? Es muss sein!" (É preciso? É preciso! É preciso!) Dias inteiros sem mistérios, sob um céu de artifício, onde nada explica, nada acontece. Acalma-te. "A injustiça não se resolve". Tudo permanece, imóvel. Deus, entre as flores do campo, se esconde de ti. Não busque-o, deixe-o brincar, mover-se entre os mortos jasmins. Tua oração precisa ser branca, inerte, parada. Enfim, dilua-te no vinho, na água. Beba-te inteiro, sem exageros, quieto. (Tua mágoa apenas entedia o universo.)



Imagem: "Mar revolto, por Marina Palmeira.
(www.flickr.com)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

grades


Essa sempre foi a minha pergunta mais íntima: por que os presos seguram nas grades. Por que eles não ficam lá no seu canto, sem precisar apertarem as mãos naquelas grades sebentas. Ou então, que permaneçam em pé vendo a paisagem do corredor mas que não segurem nas grades sujas e enferrujadas. Eu, por exemplo, aqui na minha casa, não me grudo nas grades da janela. Assisto a tudo solta no ar. Não gosto de fixar minhas mãos nas coisas. Não gosto. Sinto gastura quando, nas poucas vezes em que vou à rua, alguém toca de raspão na minha pele. O contato suorento do outro me dá um nojo do cão. Gente é um trem nojento, essa frase é a minha cara. Meu primeiro marido gostava de escovar os dentes pela casa toda, e aquilo me dava uma raiva. Era uma lavação de dente zoadenta como se estivesse lavando pratos. Passeava por todos os cômodos naquele chap chap dos diabos, mais de uma hora fazendo isso. E a gengiva continuava sã, a raiva que me dava era essa, por que a gengiva não se descolava de vez. Se sou assassina? Estou em prisão domiciliar. Daqui posso dizer que entendo tudo de solidão. Seu corpo duro é uma tábua no prego. Mas não seguro em grades, não seguro. A ferrugem que habita nas grades entra para sempre na pele dos dedos, incrusta nas unhas e cutículas, levando o desgraçado para outro mundo.



Imagem: "Grades?", por Viniciusmaquifer.
(www.flickr.com)

domingo, 11 de outubro de 2009

Caminho dos alfinetes


Minha vida intrauterina, assim como a de todos vocês, foi uma maravilha. Dizem os psicanalistas que no útero materno vivemos o estado de completude do desejo, o estado absoluto do amor: duas pessoas se juntam e se completam, sem conflitos. Mas eis que um dia nascemos para o mundo, e o mundo é a perda, a falta, todas essas palavras que estão aí para nos desequilibrar quando cá entramos. Aqui a nossa mãe já não nos completa mais, nos frustra, nos castra. E é preciso ser castrado logo, para que não levemos a vida toda com a psicose de querer sempre o estado de absoluto paraíso. Porque do lado de cá do útero da mãe, é certo: completude total nunca irá existir.
... Por que todo esse intróito?
Apenas para dizer que meu processo de castração foi dos piores.
Saí do útero e minha mãe me tratou a minha infância inteira como se eu lá permanecesse. Só que, óbvio, eu estando do lado de cá do mundo, e não mais no pleno sossego de Thanatos e Eros que era sua barriga.
Oh, lembro-me aos quatro anos, amamentado-me nos seus seios flácidos. Não é uma lembrança lisonjeira; muito pelo contrário, é uma lembrança perturbadora, constrangedora, em que o asco se junta a um profundo compadecimento de mim mesma.
Mamava em pé, na frente dos outros, ou no quarto, às escondidas. Não lembro do gosto daquilo. Percebo apenas que naquela época eu já deveria ter sido castrada completamente, mas vivia ainda o faz-de-conta impossível de uma vida intrauterina.
(Não sei a quem possa interessar tal relato. Nem mais ao meu psicanalista, que abandonou meu caso. Acho que só a mim mesma, à maneira de busca simbólica.)
Toda a problemática é que o estado de frustração, normal ao vir da castração absoluta, feita nos primeiros anos de vida com a retirada do leite materno, em mim permaneceu, em doses dilacerantes, muito mais que nos meus quatro anos de mamação. Isso formou um elo dos mais terríveis entre mim e minha mãe.
(Talvez essa aqui seja uma "Carta à mãe", de maneira indireta.)
É nítido demais o sofrimento das separações a que ela me impunha. É nítida a dolorosa lembrança de um dia em que ela, às escondidas, viajou sem mim. E eu, enganada, na casa de minha avó... Quando me dei conta da traição esgoelei o dia inteiro, gritando por ela. Minha avó, que nunca teve paciência com criança, disse que iria me bater. Aquilo doeu mais fundo e esgoelei mais alto ainda. Os passantes na estrada em frente, curiosos, perguntavam o que acontecia àquela criança ensandecida.
Terrível elo, terrível dependência, terrível hierarquia.
Não são à toa os alfinetes, os sonhos que tenho com alfinetes. Neles ela está sempre presente.
Hoje lendo sobre a primeira versão de Chapeuzinho Vermelho, descobri que o lobo pergunta à menina se ela vai para a casa da avó pelo caminho das agulhas ou dos alfinetes. Chapeuzinho responde "das agulhas". O lobo vai pelo caminho dos alfinetes e chega primeiro. Tudo começa assim.



Imagem: "alfinetes", por Marcus V.
(www.flickr.com)

sábado, 10 de outubro de 2009

Poeta Baiano


EURICO ALVES:



DESLUMBRAMENTO

Diante da tua beleza e do silêncio da tua alma,
a minha alma fica feito uma criança
que folheasse inocentemente um livro de missa...



TRANSUBSTANCIAÇÃO

Um pouco de leite fresco, orvalhado que dormiu ao sereno...
Ah! Eram os teus seios pálidos de frio
dentro das folhas trêmulas sonhando...



ORAÇÃO

Ave, Senhora feita de árias de luz!...

As minhas mãos múrmuras beijam-te os pés.

E, se nunca hás de viver no meu amor,
deixa a tua alegria bailando no meu pranto,
para o deslumbramento interior da minha angústia.





*In: ALVES, Eurico. Poesia. Salvador: Fundação das Artes/Empresa Gráfica da Bahia, 1990.

Imagem: "apego".
(www.flickr.com)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Clarice


Clarice não passa na vida de ninguém impunemente. Levo Clarice nos ossos. Já quis ser Clarice. Escrevi livro tentando imitá-la. Tenho todos os seus livros. Cito Clarice nas aulas. E falo mal de Clarice. Me perdi no mundo por causa dela. Meu horror pelo mundo vem dela. Minha salvação pela escrita também. Ela para mim era uma santa. Acendia velas. Depois comecei a perceber seus pecados, seus defeitos, sua verborragia, seus dramas inverossímeis. Descobri Galinha Cega de João Alphonsus e fiquei com raiva de sua Uma galinha. Não tem quem faça mais eu trafegar em sua A Cidade Sitiada. O Lustre? Que ele fique lá, na estante, dormitando minha adolescência perdida. Maca não, Maca está aqui, pertinho de mim, por mais que tentem fazer de A hora da estrela um livrinho popular e bobo. Ah, minha amiga Clarice, são tantos os anos de convivência! Já quis ter um cigarro igual ao seu, sabia? Já quis uma varanda perto da praia... e sua insônia recheada de cafés. Já lhe imitei usando uma máquina de escrever no colo, sentada no sofá... só faltaram os filhos por perto. Queria ter aquelas pernas de siriema, altas; queria ter aqueles olhões misteriosos. Por que será que você é tão demoníaca assim com as meninas, despertando nelas essa vontade esquisita de ser você? Será isso inveja? Loucura? Besteira? Suas fotos da década de quarenta, lindas. Seu amor por Lúcio Cardoso, tão triste amor. E aquelas entrevistas que você fez com meio mundo de gente, publicadas em "De corpo inteiro"? Ninguém, no mundo, fez entrevistas daquele modo. Você lia o corpo de seu entrevistado, os gestos, a alma. Uma das entrevistas de que mais gosto é a que você fez com Marques Rebelo. Gostei da parte na qual ele pergunta: "Clarice: você se considera uma escritora brasileira?" E depois: "Perguntei-lhe isso, Clarice, porque em geral a literatura brasileira sofre de ausência de densidade, e você é densa." Palmas para Rebelo. Palmas para você.
Clarice ultimamente é alvo de minha maior irritação. Reli "O búfalo" e me decepcionei profundamente: minha alma juvenil, perplexa, não estava mais lá. Levei "A bela e a fera ou A ferida grande demais" para a aula, e no meio de minha leitura fui ficando triste, triste. Achei aquilo tudo tão falso, tão fake, tão teatro de pequena categoria. Aquele outro conto, do cego mascando chicles, meu Deus, não dá mais não: esgotou. Oh, minha querida, o que fazer contigo no meu coração? Vou salvar para sempre suas crônicas que viraram contos. Por exemplo "Felicidade Clandestina". Gosto muito ainda também de "Os desastres de Sofia", mas se pudéssemos conversar sozinhas lhe pediria pra fazer alguns cortes. Estou ousada, não? Vá desculpando minha temeridade. E aqui finalizo repetindo suas palavras: "a prece profunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais".



Imagem: "Clarice Lispector", por aclbraga.
(www.flickr.com)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

até o pano


Saudade dos vendedores de livros que passavam de porta em porta com aqueles livrões encardenados. Na rua, desciam do carro e iam cada um para uma casa. Com sorriso vasto, jeitão próprio de quem convence a uma compra grande, batia palmas lá na porta. Eu abria com outro sorriso. A família toda na sala. Livros saindo das caixas, ah tantos, parecia que brotavam dali num passe de mágica, sem parar. Machado de Assis, capa vermelha, letras douradas; Aluísio Azevedo, capa cinza, letras douradas; Jose Lins do Rego, capa marrom, letras douradas; José Mauro de Vasconcelos, capa azul com letras douradas. Ali era tudo dourado, ouro legítimo. Pai, na sua generosidade, fazendo cheques. E nós arrumando a estante. E mãe comprando bicho branco de louça para enfeitá-la diante dos livros. Lembro de um cachorrão de dois metros de altura que ela colocou logo abaixo da coleção preferida de pai: o mais amado por ele, Jorge. O cachorrão era mal encarado, não combinava naquele mundo de brilho, onde os livros juntinhos se colavam numa intimidade amorosa. Mas por nada nesse mundo mãe tirava ele dali. Fazia guarda, só Deus sabe se aos livros ou a sua televisão, misturada àquele mundo de papel em pompas. É, os livros eram pomposos, próprios para enfeitar casa de interior. Tanto eram para enfeitar que, depois de arrumados, para tirar um de seu lugar dava trabalho; eles se colavam uns nos outros, parece até que não queriam ser lidos. Não sei que cola era aquela, invisível, que se esgueirava na encardenação luxuosa. Briga boa: eu puxando os livros, desarrumando tudo, mãe reclamando, os bichos saindo do lugar: bois e gatos se desmoronando em tempo de cair. Menina, menina, cuidado com meus bichos! Enfim, saiu daquele horror, inteirinho, Vamos aquecer o sol, de Zé Mauro. Zé Mauro, Zé Lins, tudo gente íntima, morando lá em casa, naquela estante cheirando a óleo de peroba. Que cheiro inesquecível. Até o pano, meio preto meio branco, embebido no óleo, minha memória guardou.



Imagem: o brilho ausente do nosso lembrar, por stop me.
(www.flickr.com)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Encontro



E finalmente se encontraram. Coincidentemente, de verde.

fuga


Sou mais leve que a euforia de um anjo, verso de Raul de Leoni que me marcou a semana. A euforia de gente é alegria de folião, e de anjo? Oh, caminhos da poesia! Como gosto de andar por eles! Nesse inverno primaveril em que Iemanjá me olha de lado lembrando-me de suas flores, e meu anjo da guarda reclama suas velas, só tenho preguiça. Uma preguiça tão grande, uma preguiça tão lírica, me estico na cama sonhando o mais absurdo dos sonhos. Quebrei, com minha lassidão, as fronteiras do possível, e olho o chuvisco da janela pensando como seria bom fugir para dentro de um livro. Levanto-me e vou à estante: Aura, de Carlos Fuentes.



Imagem: "fluidez", por vabemor.
(www.flickr.com)