quarta-feira, 31 de outubro de 2012

as mães e nossa memória


Toda mãe se reconhece como mãe porque repete mil vezes a mesma coisa. A minha sempre repetiu, azucrinou, encheu o saco falando a mesmíssima coisa: a gente na frente e ela atrás falando e repetindo. Por isso nossa memória guarda tudo. Elas, as mães, eternizam nossa memória. Mas de todas as repetições de mãe, não gravei as azucrinantes, gravei as mais adoráveis: como aquelas em que ela se reportava a meu avô. "Porque papai tocava sanfona", "Porque papai nunca me bateu", "Porque papai queria que eu estudasse em Ponte Nova", "Porque papai era muito alegre". Porém, de minha avó, sua mãe (ah, Freud...), não eram repetições muito agradáveis: "Porque mamãe me fez criar todos os dez filhos que ela teve", "Porque mamãe não deixou eu brincar quando era menina...", "Porque mamãe não quis que eu fosse estudar em Ponte Nova, disse que eu iria era aprender a escrever carta pra namorado"... Terríveis essas lembranças, dela e minhas. Prefiro relembrar "Porque papai me levava para as festas", "Porque papai me levou com ele para a Lapa: é essa foto aqui, veja". Ouvi estas palavras e vi esta foto milhões de vezes. Continuo ouvindo e vendo.
                       Eu me esqueci de uma outra repetição adorável: "Porque era papai quem cortava meu cabelo"

domingo, 28 de outubro de 2012

distintivo

Hoje resolvi participar de um seminário espírita cujo tema era o passe. O palestrante muito bom, bem articulado, bem humorado, soube conduzir de maneira brilhante toda a sua palestra, sem que os ouvintes pestanejassem ou tivessem sono. Pela manhã e pela tarde. Pela manhã foram os conceitos teóricos, e à tarde foi a parte prática. À tarde, pois, ele chamou cobaias à frente, para que os presentes vissem como se dá um passe. A cada pessoa que ia lá à frente, ele perguntava qual o problema que tinha.
Eu queria, eu necessitava com toda a urgência do mundo de um passe. Desde ontem a depressão se acentuou; ela que vinha me rondando em doses melancólicas, ontem à noite entrou de vez no meu corpo; diria que encarnou em mim, e foi com ela encarnada em mim que saí em busca de uma ajuda espiritual. Acordei hoje, portanto, dia de domingo, bem cedo, coisa difícil, para poder entender os mecanismos do passe, receber um, e até, quem sabe - pensei numa temeridade de leiga  - aprender a dar o autopasse.
Pois bem, na hora em que o palestrante começou a chamar as cobaias, eu me aticei na cadeira. Queria por queria ir logo. Tive que conter minha excitação, e depois da segunda cobaia eu levantei e fui à frente. Eu sabia de todos os riscos de exposição que eu corria, eu sabia. Mas eu precisava do passe, e para isso valia a pena correr o risco da grande exposição.
Fui à frente, e antes de me sentar na cadeira que ali estava me esperando, ouvi a inevitável pergunta: o que eu tinha. Eu disse "depressão". Ai, na frente de todos. Ele quis brincar, perguntou se eu não estava amando... Ri sem graça. Era o momento da cobaia aqui ser representante da grande doença espiritual que ataca tanta gente e poucos assumem. Principalmente em público, e numa cidade pequena.
Antes de mostrar como se aplica o passe num depressivo, o palestrante falou bastante sobre a doença, com exemplos. Depois foi indicando, aos olhos de todos, como se aplica esse passe específico, ilustrando em quais chacras as mãos deveriam agir. Senti que eu ali à frente, assumindo uma das piores doenças do mundo, era uma heroína. Uma heroína sem graça, desprotegida, mas uma heroína. Tímida que só o trem ruim, eu era naquele momento a mulher mais corajosa do mundo. De lá já sentia o espanto das pessoas que me conheciam de vista e que não imaginavam que eu iria me declarar doente; e doente dessa doença. Senti um compadecimento geral. E depois que me levantei da cadeira, os olhos dos outros eram diferentes. Pode ser impressão minha, mas senti que as pessoas me olhavam diferente, misto de pena com desconfiança. "Será que a professora é doida?" "Coitada dela!" Imaginei - e levem em conta aqui a mania de perseguição própria a essa doença - imaginei que eles estivessem falando essas coisas por dentro.
Pronto, já tenho um distintivo. Como os judeus tinham.


Imagem: Van Gogh, claro.
www.google.com.br

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

flagrantes familiares



De retrato familiar tínhamos dois na parede da sala. Um de pai, de gravata e paletó, pintado à mão - e que mãe implicou tanto que acabou tirando da parede e dando para uma parente - e outro, de nós quatro, de cara apenas, um sobre o outro, em preto e branco: eu embaixo da cara de mãe, e minha irmã embaixo da cara de pai. Um retrato engraçado, enorme, tipo poster. Mãe com os cabelos encaracolados, sedosos, um olhar caído. Pai de paletó e olhar compenetrado. Eu, horrorosa, sabendo de minha feiúra e por isso entristecida. Minha irmã com a cara mais limpa do mundo, cabelo lustrando, com boca de riso, porque foi uma dificuldade para ela obedecer ao retratista: não rir naquela hora tão séria, tão solene.



Imagem: só para imaginar como era nosso retrato: uma cara em cima da outra. In: www.google.com.br

domingo, 7 de outubro de 2012

o poeta da roça

Não consigo ouvir A Triste Partida, na voz de Luiz Gonzaga, e não chorar. Visualizo de novo pai cantando essa música com a voz embargada, chorando a sua dor de partir para São Paulo quando eu e minha irmã éramos bebês. A letra dessa música é de Patativa do Assaré, como talvez alguns poucos saibam. É o que dá ser compositor, e, no caso de Patativa, ser poeta e ter seu poema musicado, e cantado por outro. Mas não é isso que importa aqui hoje. Importa pra mim hoje a presença de pai. A presença de pai nos "repentes" na roça, levando a tiracolo eu e minha irmã. Lembro bem de um grande amigo seu, chamado Zé Esposo, mais um nordestino que deixou sua roça e foi morar na capitá de São Paulo, e de lá voltou de óculos escuros, gravador no ombro e sua velha viola na mão. E ia lá pra casa fazer graça na sala, rimando para Deus e o mundo, para quem passava na rua e para quem entrava em casa. A gente ria a noite toda. Pai feliz, orgulhoso. Pai tinha um orgulho danado de ter vindo da roça. Pai era um amante da roça, odiava a cidade, dizia que um dia ainda voltaria para o mato, sem luz e sem geladeira. Mãe, eu e minha irmã gritávamos "não, não, não" - já estávamos contaminadas pela ilusão besta de sermos citadinas. Pai, que não fazia versos, era um poeta da roça, como Patativa do Assaré. Não queria viver ali, naquele meio de gente ingrata; ele queria era a sua roça, seu pé de milho, seu pé de fulô. Mas infelizmente foi ali ficando, ficando, ficando... Uma ou duas vezes na semana ia para a rocinha que comprou, com muita dificuldade; e plantava alguma coisa, que nunca dava. E que permitia que mãe lhe jogasse na cara: "Tá vendo aí, Bino? Pra que roça? Roça só serve para perder dinheiro!" Ele não ouvia, era um apaixonado. Gostava dos tabaréus e de sua parentalha que lá ficou.
Eu era jovem demais para entender isso tudo. Eu era metida a besta. Lembro que no lançamento de meu primeiro livro, ele, entusiasmado com a filha, levou para o lançamento todos os roceiros seus conhecidos e  os parentes. Aquele povo todo descendo da camionete, numa felicidade, e eu nem ousadia dei. Metida a biscoito de sebo, escritora da cidade, negligenciei  a verdadeira poesia: aquele povo ali que, vestido com roupas diferentes e cheiros diferentes, aplaudia a poetisa besta, filha de Bino, este, orgulhoso da menina ingrata, maquiada de coisa nenhuma. Pai sim era o poeta da noite, e eu nem sabia.
Esse orgulho das origens roceiras, sertanejas; essa alegria de beber água em pote de barro e de conversar com quem verdadeiramente sabia tudo da vida, pai tinha de sobra. Pai era um sertanejo verdadeiro, assim como foi Patativa do Assaré. Falo isso porque há muito poeta por aí tirado a sertanejo e não é não; esses moram em apartamentos e nunca sentiram o verdadeiro cheiro de sovaco, proveniente de um dia inteiro de alguém repousado sobre um cabo de enxada em tardes de sol quente.
Hoje, dia de voto, esse texto é para ele: pai, o único político honesto que conheci. Foi vereador, vice-prefeito  e nunca esqueceu seu povo - que o elegeu. Nunca teve dinheiro guardado no banco, e o que mais queria na vida era voltar para sua roça. Morreu na cidade, mas foi enterrado no meio do mato, como pediu, num cemitério de beira de estrada, onde estão seus parentes - todos roceiros. Não atendemos ao seu pedido de voltar para a roça, mas atendemos a esse seu último pedido de voltar à terra de onde veio, de se tornar verdadeiramente terra, o que sempre foi.


Imagem: eu, aos 17 anos, acompanhada por ele e sua ternura, no encerramento de estágio do magistério (1985).