terça-feira, 30 de dezembro de 2008

"Soltar a voz"


Lê-se em meio à dedicatória: "minha mãe deixou em minha memória o som deste livro."

"Rosália Roseiral" - esse romance é uma composição musical - que me perdoem a rima. Eu que sempre sonhei, na minha audácia assumida, ser cantora, vibrei em cada partitura desse livro. Se demorei para dizer isso foi pro mode (aqui roubo vergonhosamente a espontaneidade da autora-narradora Maria Sampaio) o medo de desafinar. Maria não desafina nunca, em nenhum capítulo. E toda crítica não deixa de ser uma tentativa de arremedo frustrado da escrita. Eis, pois a "cisma": sei que a crítica sempre desafina, nessa tentativa apaixonada de contar sobre a leitura.
Os personagens desse romance são compostos pela linguagem harmoniosa e dessacralizada de sua autora. Se Joãozito O pusilânime (marido de Rosália), que usava "cuecas de seda", realmente existiu, não importa. Importa é a veracidade maravilhosa de sua pessoa, descrita numa verve irônica e jocosa, num primor de estilo:

"(...) Ele, se burro não é, não prima pela inteligência - é aquela coisa chata de rapaz esforçado, voltado para o estudo opaco, dirigido, lutando a ferro e fogo por boas notas. É o típico ignorante que fala besteiras com imponência.(...) (p.47)

"O bem querer chega a jato" (p. 92), concordo com isso, Maria Sampaio. Pois não é que me apaixonei, tal qual Rosália, por esse pusilânime vilão? E sinto pena quando o trapaceiro desaparece lá pela página 141, depois que deixou "barba e cabelo crescerem à moda de Antonio Conselheiro" e foi começar vida nova em localidades várias. Desculpe, Maria, mas vou reproduzir o que está impresso no livro como propaganda do médico pusilânime, vendedor de ilusões óticas nos lugares por onde passa:

TENDES OS OLHOS
CASTANHOS
OU PRETOS?
QUEREIS TÊ-LOS
VERDES
OU AZUIS?
PROCURAI O
DR. ALBERGARIA

Das 8 às 12 hs.
e das 15 às 18 hs.

Praça da Matriz

A cidade toda queria ostentar na cara tal milagre:

(...) Todo santo dia iniciam-se novas turmas, tudo de pagamento adiantado. Pingue-se uma vez por dia o milagroso colírio, ordena. (...) Ao chegarem os bestas para a feira seguinte vêem nos companheiros os castanhos e pretos olhos de sempre.(...) (p.141)

Daí em diante, pronto, o personagem "evacuou". Aproveito a fala do narrador e acrescento que errei "no verbo", pois "queria dizer evadiu-se, acertando, sem saber, na definição de Joãozito: um cagão."
Por esses fragmentos nota-se a natureza espontânea da linguagem. Tanto que esquecemos que estamos diante da leitura de um romance: o narrador é uma pessoa "de mesmo", talvez a própria Maria Sampaio a tratar tão bem os amores de sua protagonista:

(...) A evitar as paqueras de Carlinhos Veiga (até certo ponto... um dia não resistiu e só de brincadeira - para espanar um pouco a poeira da tabaca -, levou o amigo para casa, passaram uma semana de gozos e folias). (p.145)

"Rosalia Roseiral" é a composição musical de muitas vidas. Vidas reais que se cruzam misteriosamente com a ficção, nos deixando com as mãos abanando se nos debruçarmos apenas tentando buscar biografias. O mais interessante é o leitor perceber esses liames ao ler a história musical brasileira, reconhecendo suas pontes "reais" emaranhadas naquilo que não sabe se real foi (e o que é?). O que mais interessa, de fato, é a pincelada, sempre irônica, do narrador, quando se refere à personalidade de cada um desses seres que passam pela História, demonstrando, com isso, a força da narrativa, da construção romanesca:

"(...) A qualidade do toque de Fortunato fará falta nas tocatas, mas sua presença, coitado, nem tanto, sempre foi esmorecido." (p.155)

Romance com grandes revelações. Romance que, ao fecharmos a última página, nos deixa diante de um amplo salão escuro, repleto de perplexidades, e ao mesmo tempo de felicidade, afinal só a arte sabe conjugar tão aparentes dissonâncias.
Fazendo uma analogia com a música, ao virarmos a última página desse livro internalizamos o conselho de Rosália, que aprendeu do mestre Almiro: se queremos cantar devemos "soltar a voz". E, como diz o narrador, "Sempre de olho aberto - o longe que o olhar alcance, a voz irá."(p.150)
Solto pois, agora, a minha tímida voz. Na voz afinada de Rosália. Na voz afinadíssima de Maria Sampaio.


*SAMPAIO, Maria Guimarães. Rosália Roseiral. Rio de Janeiro: Record, 2008.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Cenas do cotidiano (2)


Mãe no rio lavando pratos e dois meninos perto dela besourando. Moravam na nossa rua. Rua da Ilha. Rio de um lado, rio de outro. O pai dos meninos era um soldado que ficou da janela, numa tarde, vendo um fazendeiro bater num empregado, sem fazer nada. Esses dois meninos eram remelentos, que nem a casa deles. O menor só vivia nu, pra cima e pra baixo, nunca o vi com roupa. A mãe era uma desmazelada, só andava nas portas falando da vida alheia. E os meninos no rio tomando banho. Foi numa tarde assim que o pai, à paisana, munido de uma máquina fotográfica registrou aquela cena corriqueira, repetida, cotidianamente igual. Porém hoje, extraordinária.

"Vai indo"

Já está decidido: esse ano passarei o reveillon em casa. Sozinha. Claro que isso não significa um auto-martírio, uma auto-punição ou coisas do tipo. Já passei, na minha vida, duas passagens de ano sozinha, e não foi coisa do outro mundo. Nem tive pena de mim.
Como diz mãe, vai indo a gente enjoa dessas festas. Não, ela nunca disse isso, mas o "vai indo". Acho ótimo e aqui repito: vai indo a gente enjoa dessas festas. Lá na minha terra é assim: segue todo mundo, a cidade inteira, para a beira do rio. Meia-noite em ponto é um tal de beija-beija, abraça-abraça, feliz ano feliz ano novo, feliz ano novo, coisa realmente patética, que não comove ninguém. A vida virou uma repetição besta de coisas, e as tais festas ficaram todas estigmatizadas, repetidas e artificiais.
Óbvio que não vou deixar de fazer minhas simpatias na virada do ano, na calada da noite, sozinha em minha casa. Obviamente que ficarei tocada quando olhar o relógio e pressentir, imageticamente, um novo número acoplado ao dois mil. Irei lembrar de muitas coisas, inclusive de pai, que tinha o sonho de visualizar esse tal de Dois mil. Oh pai, de 1994 para 2009 são muitos anos, destruídos pela mística de um reveillon de 2000 que passei em Tucano junto a um trio elétrico horroroso. Depois disso, percebi que 2000 era apenas uma data que eu escrevi no papel, quando criança, para saber que idade teria quando o mundo acabasse.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Meu aero-amigo


Meu aero-amigo Murilo Mendes está aqui, próximo ao computador. E ele me diz ao pé do ouvido sua "Ceia sinistra":

Sentamos-nos à mesa servida por um braço de mar.

Peço pra ele calar nesse primeiro verso. Não desejo ouvir os demais, muito menos ver os fantasmas que querem cear.
Mas faço, isso sim, ainda valer a sua voz para roubar-lhe a autoria, dublando-a descaradamente:

Então eu nasci na onda aérea,
Na idade mais recente do ar,
Me desliguei das camadas de ar,


Aqui suspendo o último verso.
E sentando-me à mesa servida por um braço de mar, junto a meu amigo, ouço pela milésima vez esses versos fatais, vindos das ondas, soando como marteladas numa senzala invisível:

Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras,
Mas na tua alma subsiste

- Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram -
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.



Imagem: www.revista.agulha.nom.br

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Série Espanto (2)


A infância recolhida perto do pote da cozinha. Um pote de barro, enorme, sempre gelado, próximo à parede. Janela virada para o rio, acumulando águas no olhar, no tato, no paladar. Água em copo de alumínio, água branca da serra, água vermelha do rio. Copos com os nomes gravados: meu, de pai, de mãe, de minha irmã. Letra meio tosca, escrita por um mascate de feira, aquele que vendeu os copos. Cozinha pequena; para o almoço chuchu, arroz e carne moída. Odiava comer. Mãe me beliscava para que eu comesse. Eu trancava os dentes e ela vinha tentando abri-los com a colher: Come, sujeitinha! E enfiava a comida na minha goela abaixo. Comer pra mim era martírio. Será que todo prazer é corroído de dor? Mas que prazer? Não havia prazer em engolir chuchu, arroz e carne moída. Ela e pai podiam comer todas as outras comidas: as perigosas. Nós não, nem feijão. Feijão dava dor de barriga. Imagine carne de porco! Nunca, nunquinha soube, na infância, que gosto tinha um porco. Até hoje me resguardo desse perigo. A última vez que fui em Minas e vi um leitão a pururuca, deitado sobre a mesa, tive medo. Parecia um velório de porco. Que Deus o tenha!
Ah, e os imensos cafés! Os rios de café na tigela! Às cinco horas da tarde mãe dava um grito da porta da cozinha: Meninas, o café! Na mesa, duas tigelas fundas, enormes, nos esperavam com um monte de bolacha creme cracker quebrada dentro. Na verdade um pacote inteiro: todas já bem molhadas, fofas. Nós corríamos afoitas e nossos amiguinhos espiando - achavam o máximo aquilo. Até hoje encontramos amigos que dizem ainda tomar café em tigelas, com bolachas quebradas dentro, na tentativa tardia de nos imitar.
Para nossas bonecas não tinha drama nenhum: comiam só folha de carambola e a própria carambola, que era o que havia no quintal. Folha de carambola também era dinheiro: comprávamos com elas o mundo todo para Carlúcio e Marlúcio, nossos bonecos. Bonecões brancos, de assombrar, mas que amávamos como filhos impossíveis. Eles faziam que comiam a carambola cortada que botávamos em suas bocas, nos enganavam, e nós sabíamos e adorávamos o engano. Que coisa mais verdadeira!
Até hoje me pergunto onde estão esses bonecos. Em que parte do Paraguaçu. Talvez o Paraguaçu que passa no outro mundo. Mãe jogou tudo no rio, assim como o tempo joga tudo pra trás, sem piedade, no mais banal dos clichês. E foi melhor assim; onde colocaria hoje Carlúcio? Não há mais quintal, muito menos folhas e carambolas. Ele estaria perdido, coitado, morreria à míngua.
Recolho o pote gelado, o pote de barro que fica na cozinha, como disse lá no início dessa prosa perdida. Puxo-o, retiro-o do lugar. O lugar tem muita umidade. Minha infância está ali, olhando o rio. Parada, quase finda.


*Foto: Eu, aos seis anos, assustadíssima. Retrato tirado pelo retratista da cidade na época.

Encontro adiado


Hoje, de supetão, uma amiga pelo telefone (que não sabe nada desse negócio de aeronauta e etc) me perguntou:
- Você conhece Maria Sampaio?
Levei um susto danado. Não sabia o que responder. Disse:
- Conheço.
- Maria Sampaio é um amor. Muito amiga nossa. Só vive aqui em casa.
Gelei. Disse apenas que conheço Maria Sampaio dos livros e de algumas fotografias.
(Nada de me referir a blogues, nada disso.)
Depois eu entendi por que essa amiga me falou de Maria Sampaio. O Destino lhe soprou no ouvido um futuro encontro: ela me apresentando à famosa escritora em sua casa. Eu, tímida, com uma nuvem escandalosa desenhada na testa. Maria Sampaio, esperta, dizendo: ah, é você!
E olhe eu então diluída para sempre numa poça d'água...


Imagem: fotografia de G. Branco. In: www.flickr.com

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Corpo na realidade


Todos já sabem que a minha doença é não sentir meu corpo na realidade. Acordo - o mais difícil momento - e vejo que preciso agir. Primeiro, meu corpo precisa levantar da cama. Que sacrifício! Já disse Borges que a prova de que o homem não é só matéria é que ele vive num outro universo pelo menos umas oito horas por dia (dormindo, claro), e é irrefutável que nesses momentos ele também está vivendo. Pois bem, Borges me entende. Pois que sinto que esse outro universo é melhor, porque acordar , de fato, é algo complicadíssimo. Chamem isso de preguiça, de indisposição, de depressão, de qualquer nome. Eu só sei é que acordar é a primeira grande batalha do dia dessa vivente aqui. Erguer meu corpo da cama, lavar o rosto, fazer o café e depois ir pra labuta, é como se preparar para ir para a guerra. Por isso muitas e muitas vezes prefiro não levantar; fico horas na cama, buscando me acolher em nuvens vagorosas e confortáveis. Mas o Mundo bate na porta com suas mãos de ferro, esmurrando. Aí eu tenho que mostrar serviço, pois estou aqui embaixo, e não lá em cima, apesar de minha cabeça dizer o contrário. Levanto e vou abrir a porta para a sua majestade, o Mundo, entrar. Ô homenzarrão bruto. Hoje ele esmurrou a porta, aliás, botou a porta abaixo, e deixou uma lista sobre a mesa, com vários itens: 1. lavar os acumulados pratos sujos na pia; 2. arrumar a casa; 3. comprar o gás; 4. fazer feira [aqui em casa só tem bolacha creme cracker]; 5. Viver, viver, viver.
Achei esse último item muito desaforado: "viver" escrito três vezes. Parece que com esses três "viver" o dito cujo me dá três tabefes na cara.
Agora me lembrei que ontem, conversando com uma amiga, essa me aconselhou a fazer algo para poder finalmente estar na realidade: sair do yoga e entrar no boxe. Vocês acham que funciona?


Imagem: "Dom Quixote desolado". Por Domingo Soto. In: www.flickr.com

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Cenas do cotidiano (I)


Hoje conheci, às cinco e meia da manhã, "Legal". É, um taxista chamado "Legal", vulgo Adalberto.
Nunca gostei de puxar conversa com taxistas. Aliás, eles também pouco conversam comigo. Só um, certa feita, me contou que sua cliente abriu a porta com o carro andando - pra não ter que pagar.

Porém hoje, logo que entrei no táxi, o motorista, "Legal", senhor de seus sessenta e alguns anos, perguntou se eu gostava de conversa. Disse que sim. Aí ele tratou de investir nas histórias. Contou que quando um passageiro entra no seu táxi ele percebe imediatamente se é antipático ou não. Que na semana passada levou uma senhora antipática para o Cabula que acabou com seu dia. Que deu vontades de abrir a porta, em plena corrida, e fazê-la descer. Que nesse mundo tem gente ruim e gente boa. E que quando nota que a pessoa é ruim, se faz de mudo, responde tudo com gestos. E que, veja só, um dia desses uma mocinha entrou e só disse isso: "Orixás center, politeama". Dois minutos depois, ele olhou para o banco de trás e não viu ninguém. Pensou: "Ué, a menina pulou a janela?" Quando olhou direito percebeu que a dita estava deitada, com as pernas pra cima. "Estava pernoitada, a moça, hi, hi, hi", concluiu, rindo.
Disse que conhece por dia milhões de pessoas. De todos os tipos. Há mais de trinta anos. Uns lhe dão sorte, outros não. Que levou um rapaz para o Canela e que esse pechinchou, pechinchou. Mas que logo depois encontrou outro passageiro, e ganhou um dinheirão: "Stella Maris. Sessenta e cinco reais".

Enfim, chegamos. Ele ressaltou como foi boa a nossa prosa, pois a viagem foi ligeira e alegre. Preço: vinte e dois reais. Ao descer, depois de ele repetir mil "bom dia" pra mim, fiquei pensando se lhe daria sorte nessa quinta-feira.


Imagem: www.flickr.com

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

triângulo amoroso


Tenho grande amor por muitas coisas. No primeiro lugar de todas elas, meus livros. Algo quase doentio, de posse mesmo, de ter ciúmes quando alguém não me entrega do jeito que foi. Livro meu é algo sagrado, desde quando comecei a comprá-los, ainda menina. Lembro-me bem, e já contei em algum lugar nesse blogue, que os escondia de minha irmã, irrequieta profanadora de livros. Ela os lia comendo carne frita, gordurosa. A gordura da carne, óbvio, caía nas páginas, e isso me deixava nervosíssima. Aprendi a escondê-los e ela aprendeu a achá-los de madrugada, quando eu dormia, para poder lê-los à vontade, arreganhando páginas e miolo.
Todos os meus namorados sempre souberam, de antemão, sobre a importância dos livros na minha vida. Muitos tiveram ciúmes. Outros tentaram se aliar a eles para não perderem espaço. Só que as brigas vinham quando tomando-os emprestado me devolviam completamente diferentes de como foram. Ou então quando pediam emprestado e enrolavam, enrolavam, não liam e nem queriam me devolver. Isso sempre se tornou, para mim, uma grande decepção amorosa.
Certa tarde, peguei no flagra um então namorado lendo uma antologia de Pessoa, de propriedade minha, numa rede lá de casa, se balançando todo, comendo um pão enorme com manteira: a manteiga derretendo em seus dedos, braços, cotovelos... Quando vi aquilo dei um grito! Ele saiu correndo e se trancou no banheiro; claro, levando o pão com manteiga e Pessoa junto. Ah, senti muita ira! Bati com tanta força na porta que ele, se acabando de rir, resolveu me encarar. Me entregou o livro e o que eu fiz foi logo verificar página por página. Havia um borrão imenso de manteiga num poema de Mensagem. Quase morri de ódio.
Outro namorado tinha verdadeiro ciúme de mim com os livros. Era só eu escolher um livro pra ler e ele ia atrás puxando assunto. Quando eu pegava embalagem no primeiro parágrafo tinha que parar pra responder a uma pergunta sua. E nisso ele ia ganhando terreno. Aí eu de novo recomeçava a leitura interrompida. Então ele resolvia se sentar perto de mim e começar uma prosa longa, que por mais mais que eu quisesse não poderia me livrar. Ao perceber que tudo isso era estratégia, ciúme, acabei o namoro e fui ler meu livro em paz.


Imagem: www.flickr.com

domingo, 14 de dezembro de 2008

poesia para a vida inteira


Este foi o primeiro livro de Manuel Bandeira que comprei. Pelo reeembolso postal. Na folha de rosto lê-se: "Aeronauta, 29-03-83". Dá pra notar que ele ainda está novinho, a despeito da idade que ostenta. Eu era uma menina e deu-se o alumbramento: poesia para a vida inteira. Como esquecer o "Boi morto"? Poema que lia, lia, não entendia, mas entendia. Poesia é de verdade o terrível encantamento.
Ah, com a poesia de Bandeira "Eu vi os céus! Eu vi os céus!"
A "Noite morta" era a minha rua que, quando chovia, "junto ao poste de iluminação", os sapos engoliam mosquitos. Ouvia-se "a voz da noite...", e era mesmo a voz da "noite" que dizia Bandeira, entre parênteses: "(Não desta noite, mas de outra maior.)"
Com Bandeira aprendi a beleza do "Desencanto", e a reconhecê-lo, maravilhada, tanto tempo depois na voz de alguém que tudo me falou sobre os impossíveis carinhos:

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Banzo, Spleen e uma Elegia


Quando um negro "banzava", ele parava de trabalhar, nenhuma tortura em chicote, ferro em brasa, o fazia se mover. Ele ficava ali, sentado, "banzando", "banzando". Vinha o desejo de comer terra. E, comendo terra, voltar para a África, através da morte. Um negro, com banzo, era uma peça perdida.
(Leminski em: "Cruz e Souza")

J'ai plus de souvenirs que si j'avais mille ans.
Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
(Spleen, de Baudelaire; tradução de Ivan Junqueira)

Estou "banzando", totalmente "spleenética".
Asa machucada, colei com durex. O durepox não encontrei em casa. E mertiolate não funciona.
Agora é esperar tempo de vôo. Esperar que o durex dê jeito.
Enquanto isso, com a voz de Cecília faço parelha e repito baixinho o que ela cantou:

Minha tristeza é não poder mostrar-te as nuvens brancas,
e as flores novas, como aroma em brasa,
com suas coroas crepitantes de abelhas.



Imagem:www.flickr.com

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

ausência


sou o que sou, nas escolhas, nos vazios, no medo de atravessar a rua, em desistir de prosseguir. sou isso. umbigo escondido pela roupa entreaberta. festa animada que não quis ir. ferida exposta para que todos vejam. sou isso aí. não esperem nada de mim: nem alegrias, nem poemas, nem músicas de botequim. nem aquela seleção clássica que contém una furtiva lacrima. eu nem estou aqui.



Imagem: www.flickr.com

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Noctívaga


Lembro quando li pela primeira vez a palavra noctívaga. E foi numa noite de insônia, como essa. Fiquei feliz: estava ali uma palavra que era minha, só minha. Sentada no sofá da sala lendo um livro, e quase ouvindo o galo cantar, li a palavra mágica. Não me lembro qual livro era; lembro-me da palavra. Que a partir daí comecei a usar a torto e a direito. Notívaga, noctívaga, etc.
Comecei a achar romântica a minha doença: essa de ter o olho cru, de não conseguir dormir. A palavra noctívaga (assim com o c) é muito linda. Portanto, me reconciliei com a falta de sono e comecei a sofrer menos com esse negócio de ver a noite passar em claro.
Porém, o duro mesmo era ouvir, do sofá da sala, a roncaria rotineira da família. Tinha uma inveja. Ouvir o silêncio de uma cidade que dorme, uma cidade inteira e mais o de sua família, é algo de uma dimensão que nunca consegui pensar direito: dá arrepio na alma. Certo que um cachorro ou outro latia, quebrando o silêncio; um jegue ou outro derrubava o balde de lixo na rua; ou um bêbado qualquer passava tropeçando, num discurso engrolado. Mas o que imperava mesmo era a estranheza do silêncio em que todos dormem. Menos você.
Aqueles que estão acordados agora podem sentir. Ouçam, ouçam. Ouviram?
O que eu escuto agora, como prova do silêncio de que falo, é o sonzinho do computador. Esse silêncio emite significados que minha percepção nunca conseguirá colher. Apenas sentir. E não tem palavra que nomeie. Talvez só mesmo "noctívaga".
Sou noctívaga, pois. Vigio a noite enquanto tanta gente sonha.


Imagem: "Flor noctívaga em rua mil vezes percorrida". De paulomrocha. In:www.flickr.com

domingo, 7 de dezembro de 2008

Nós e Papai Noel


Eu era bem feliz no tempo em que Papai Noel existia. Ele vinha sempre quando nós - eu e minha irmã - já estávamos dormindo. Não descia pela chaminé, entrava pela janela mesmo. Pai e mãe o ajudavam. Ele chegava e ia direto para o nosso quarto. Eu e minha irmã dormíamos em camas geminadas, separadas apenas por uma grade, e com um grande mosquiteiro em comum. Ele abria o mosquiteiro com os dedos mais leves do mundo e depositava meu presente aos pés da cama. Depois, com muito esforço, por causa da gordura, debruçava-se para colocar o presente de minha irmã nos pés da cama dela também. Tudo igualzinho. Em seguida, no mais fundo dos silêncios, ia para a casa vizinha.
Como esquecer o barulho que fazia meu pé batendo no papel de presente, ao acordar? Como descrever aquela felicidade? Não conseguirei não. Acordava minha irmã. As duas felizes, felizes, felizes. Papai Noel era bom, atendia direitinho aos nossos pedidos. Só duas vezes nos desapontou. Primeiro foi comigo, ao deixar no lugar do presente uma carta dizendo que naquele ano eu não ganharia nada: andava mentindo e respondendo aos meus pais. Chorei muito. Mas no final da carta ele mudou o tom da prosa e me deu mais uma chance: a boneca que pedi estava debaixo da cama. Entretanto, se eu continuasse malcriada, aquele era meu último presente de Natal. Lembro que passei os anos seguintes vivendo na tentativa difícil de ser sempre boazinha. Acho que continuo até hoje.
Com minha irmã foi muito pior. Aos dez anos, às vésperas do Natal, ela não pediu a Papai Noel nenhum brinquedo, nenhuma boneca, nenhuma panelinha. Pediu, isso sim, um par de sapatos. Parece que o pedido não foi visto com boa vontade, pois na noite de Natal o que estava em sua cama era algo no capricho do mais feio horror: um sapato branco, enorme e mal-feito, parecendo ter saído das mãos de Urbano, o sapateiro da cidade. Acordei com minha irmã sentada na cama chorando, dizendo que quando amanhecesse jogaria o sapato no rio.
Ela queria crescer, ser moça logo, sair desfilando pelas ruas com um sapato bonito. Mas, sabemos, Papai Noel não gosta dessas coisas.


Imagem: www.flickr.com

sábado, 6 de dezembro de 2008

Sinal fechado


Uma das coisas que mais me faz falta é de ter uma amizade a tiracolo. Daquela que temos na infância, na adolescência e quando freqüentamos a faculdade. Na infância tive a companhia de Sílvia, que mesmo demônia era minha amiga inseparável. Na adolescência ela também me acompanhou. Nós duas, aos vinte e poucos anos, aprontamos muito. Uma sabia dos segredos da outra; nos encontrávamos todos os dias na praça pra prosear, além de, nas festas, dividirmos os pileques. Engraçado, nos pileques eu só falava em literatura: todo mundo virava um escritor celébre. Tenho um amigo que até hoje atende pelo nome de Gregório. Gregório de Matos, claro. Nesses pileques já fui Clarice, Cecília. E berrava aos quatro cantos poemas de Bandeira. Um vexame, que a amiga fiel compartilhava.
Na faculdade tive outra amiga, inseparável. Quando voltava de viagem, no domingo, ela era a primeira pessoa para quem eu ligava. Pela manhã, os papos atualizados, as fofocas e os risos em dia, flanávamos pelos corredores. Nas provas, nos ajudávamos, assim como também ela me ajudava no meu pendor para os amores clandestinos. Coitada, mesmo atônita com meu jeito louco de viver a vida, entendia. Às vezes dava conselhos, mas no fundo eu sabia que ela me admirava, que estava do meu lado pra qualquer coisa. Ficamos comadres. Batizei sua filha, minha linda afilhada que tanto amo. Mas hoje não moramos na mesma cidade.
Nunca, nunca mais será como antes. A cidade aqui é imensa, tenho tantos amigos queridos: todos vivendo do outro lado da tela do computador e nos fios telefônicos. Tenho amigas com os mesmos gostos, as chamadas afinidades eletivas, mas o encontro é sempre difícil: o mundo não permite. Vez ou outra Olá como vai, eu vou indo e você tudo bem, tudo bem eu vou indo correndo


Imagem: "Sinal fechado", de Ducarvalho. In: www.flick.com

Ainda fora da moda

Acordo hoje razoavelmente cedo. Vou à cozinha. O que vejo lá é uma cena dantesca, melhor nem descrever. Só digo pra vocês que o coador fracassado reina mais do que fracassado no meio do horror. O que fazer? Tomar café na rua. Pois que não sou besta de trabalhar em jejum.
Saio, tranco a porta e chamo o elevador. Escuto um barulhinho de porta fechando e resolvo ser caridosa: seguro o elevador para esperar a vizinha. Vizinha de vista, algumas vezes de prosa avulsa, sem maiores intimidades.
Nós duas dentro do elevador. Aperto térreo. Vejo que ela sente necessidade de puxar prosa avulsa, e fala do calor. Como Salvador é uma cidade quente; marca pra chover e não chove! E se abana, coitada, toda vestida de roupa esporte para o seu cooper matutino. Até de boné a dita estava.
Nisso, o elevador pára no primeiro andar. Entra uma senhora, vestida para ir à missa. E faz uma festa quando encontra a outra!
- Ô Lia [estou inventando o nome], Ô Lia, você melhorou?
- Um pouco.
- Um pouco não! Olhe lá, pensamento positivo! Po - si - ti - vo!
- Mas estou melhor.
- Não pode dizer que está melhor! Tem que dizer que está ótima! Ótima! Ótima! Ótima!
Fiquei só observando. Só observando. Queria defender a outra, a que ia fazer cooper, e que estava melhor, mas que não estava ótima, porém apenas desci, dei tchau para as duas e fui tomar meu café.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Distante da moda


Desculpem, o tempo é de noel, pingüins e presentes. E o texto que segue é mórbido, mas deve haver uma similaridade. Começa pela pergunta que coça agorinha na minha garganta: como é que se vinga do mundo? Aproveita um fusquinha que vai passando e se enfia entre seus pneus doces? Ou não seria melhor se enfiar nos pneus nada poéticos de um coletivo pirracento, como "praia do flamengo", que só chega no ponto de três em três horas? Não; anonimato, e menos ira, por favor.
Com Macabéa foi involuntário: e o Mercedez era amarelo, "enorme como um transatlântico", carro "de alto luxo"! Morreu sonhando, a pobre Maca.
Hoje olhei diversos carros na rua, e nenhum me pareceu digno de qualquer último ato. Uma caçamba! Que tal? Nele iria todo o lixo do mundo, no qual me incluo, e seria depositado no fim dos tempos, com o sol fazendo cócega numa manhã insistente e insípida... querendo, chatíssima, mais uma vez surgir.
Oh!, perdoem minha dor. Minha incapacidade de existir. Há muito tempo descobri que odeio Polyana: as duas - a criança e a moça. Não gosto de jeito nenhum da bestajada do jogo do contente. Perdoem, e não deixem de me amar por causa de tão obsoletas palavras: sei que a moda é ser feliz. Mas nunca consegui ficar na moda. Minhas roupas atravessam séculos, e tenho um espartilho e um chapéu antigos guardados com suave cheiro de um passado jamais colhido.
O pior é que, de novo, noel invade as ruas com sua roupinha vermelha antipática. Como odeio noel de shopping iludindo aquelas criancinhas no seu colo! Todos os noéis deviam ser presos, algemados. Já pensaram numa cela cheia de vermelhinhos? ô, ô, ô.
Perdoem minha tirania. Assim como vocês, tenho vontades de esganar todas as falsas alegrias de final de ano. Todas as falsas alegrias de viver.
E de tirar de dentro da garganta essa próspera vocação para a infelicidade.


Imagem: "Morbidez", por Manuteix. In: www.flick.com