segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Amanhã, um grande momento




Conheço essa menina linda há muitos anos, pois que fui sua vizinha em 1958, no Chame Chame. Não sei se ela se lembra de mim desse tempo, quando eu ficava espiando de longe seus belos vestidos, costurados com tanta delicadeza por sua mãe. E depois retratada com tanto, mas tanto amor, por seu pai. Lembro-me que brincávamos juntas, de muitas brincadeiras, como boca de forno, cozinhado, pula-corda. E eu, que sempre tive medo de cães, aprendi com ela a amá-los.
Eis que se passaram anos, e um dia ela me achou na blogosfera. Foi no São João do ano passado. Amizade reencontrada, maravilhosa, que me rendeu outras. Com ela vieram Bernardo, Janaína, Judith, Edu, e muitos muitos outros seres desse mundo, inigualáveis. Com ela vieram para minha vida, como presentes que nunca findam, sua fotografia e sua literatura.

O rapaz bonito, também aí em cima, chama-se Nílson, e eu o conheci há um ano. Detectei a beleza de sua alma num dos posts mais corajosos que escrevi. Claro, porque a beleza precisa ser dita, proclamada a todos os ventos, sem nenhum pudor. Tal beleza nasce da conjunção do poeta e do homem que o habita. Tanta humanidade só pode resultar em poesia. É um dos mais completos poetas que conheço.

Essas duas pessoas lindas se encontrarão, amanhã, no Tom do Saber, autografando seus livros, para minha felicidade. Estarei lá, vestida a la década de 50, na fila de autógrafos. O convite está anexado: vamos juntos?



*Não aprendi ainda a colar imagens. Era para todas ficaram lado a lado. Não acertei fazer tão difícil coisa.
Foto de Nílson: Maria Sampaio.
Foto de Maria Sampaio: Mirabeau Sampaio, 1958.

domingo, 30 de agosto de 2009

Amor


Desde a quinta-feira vivo num transe, no qual nem sei como lidar direito. Desde a quinta-feira tenho recebido amor, mas muito amor mesmo. Claro, sempre recebo amor, mas dessa vez a dose tem sido muita, coisa de assombrar. Não sei o que houve no mundo nos últimos dias, qual a energia que ronda o último sol e a última lua; se os anjos resolveram se manifestar, com suas asas nas costas, feito querubins arrebatados; se Deus resolveu perdoar, para sempre, todos os pecados da humanidade. Ou se eu, finalmente, encontrei sintonia com as brisas do mar. Pois que desde a quinta-feira, por ando passo, vou recolhendo presentes: olhares de ternura, abraços intensos, rosas vermelhas, bombons de chocolate, cartões com palavras doces, e uma promessa, ah uma promessa de maciez e tranquilidade. O amor é isso mesmo? Essa coisa malemolente, semelhante a corpo balançando na rede depois do almoço? Essa vontade de ser mãe do mundo? É, levar o mundo pra casa, dar-lhe de presente todos os livros de poesia, afagar-lhe os cabelos longos... Ah, meus amados alunos, como agradecer-lhes a doação dessa coisa viva, pulsante, que traz água nos olhos e sentimento de felicidade? Ah, queridos amigos, como devolver-lhes o carinho da companhia agradável, driblando todos os tédios da existência? O que apenas posso dizer agora, diante dessa embriaguez, é que o amor faz com que a minha alma se parta, desapegada, em mil pedaços, voando sem endereço certo...



Imagem: cartão-de-flores, homenagem de meus alunos.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

se você deixar


Você tem jeito de homem da roça, trabalhador de enxada, sertanejo dos bons. Pouca fala, muito o que fazer. Pôr um cigarro de palha na ponta de sua boca e esperar a baforada seria algo por demais maravilhoso. Pegar você e colocar num banco, sentado na porta, que epifania! O melhor de tudo é sua singularidade: você não é estereotipado - nada pior do que sertanejo estereotipado, desses que a gente vê em certos teatros. Você é o que é, homem largado no mundo, sem se importar com as rugas no rosto nem com os botões da camisa. Personagem do velho Graça, paisagem transformada em gente. Ora árvore ressequida, galhos secos decorando a tarde mais triste, ora riacho fremente, devastadora cheia esverdeando tudo. Deve ser muito boa a sua companhia, para o resto dos tempos. Se você deixar, ficarei aqui, todos os dias, lhe olhando em silêncio, como quem escuta água em beira de rio.



Imagem: www.google.com.br

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Uma saída


Aprendi com o ex-macaco kafkiano que não existe por que sonhar com liberdade, mas apenas com uma saída. É preciso encontrar uma saída. Dentro da jaula, embalada para o circo de variedades, preciso encontrar uma saída, e por aqui mesmo. Batendo com minha cara no caixote. É preciso que eu me curve, minhas costas doem, meu pescoço tem um nó bem naquele lugar perto da coluna, chamado vulgarmente por minha irmã de cupim de boi. Eta nó desgraçado de grande e dolorido. É preciso que eu me desentorte, fique em pé com as mãos na cintura, buscando quem sabe o sonho de ser bailarina; mas o lugar é limitado para minha altura, ficar em pé nem pensar, mesmo eu medindo um metro e cinquenta e dois.
A saída que preciso buscar não pode ser a mesma do macaco kafkiano. Não quero imitá-lo, nem aos homens nem às mulheres que vêm à jaula observar meu sofrimento. Busco outra saída, e passo ao largo das imitações. Não quero outra condição humana, quero continuar sendo eu, mesmo dentro dessa morada apertada, com as costas lavadas de suor, as pernas agachadas, e a corcunda feito um morro. Quero, a todo custo, preservar minha sensualidade dessa limitação de estar em muito menos de um metro quadrado de cubículo. A sorte é que guardei minha cara do espetáculo público: joguei nela uma máscara qualquer, desenhada a bico de pena por um desenhistazinho que chegou um dia para me ver. Condoído daquela minha exposição ao sol e ao vento, ao riso e ao escárnio, desenhou num papel, e depois cortou, o rosto de uma atriz. Não a conheço. É melhor assim. E a primeira das saídas talvez seja mesmo esta: ninguém imaginar o que há por trás desse meu outro rosto.



Imagem: "saída", por eduhhz.
(www.flickr.com)

nonsense


Qual é o segredo mesmo? Meu coração bate, espreita o seu, em vigília permanente. De sua casa saem pai, mãe, minha avó, e entram numa caminhonete. Chego de madrugada, a lua cai sobre uma kombi verde, estacionada na porta, indo sozinha, silenciosa e triste. Dentro dela um, de seus onze filhos, dirige para trás. Toco a campainha, vejo que você toma banho, o chuveiro forte ressoa cá fora. Toco a campainha. Duas mulheres, à maneira de porteiro, vigiam a porta. A casa está cheia: muitos parentes você tem, talvez agregados, casa pobre, você lá dentro, tomando banho. Isso é o que elas dizem, mulheres de lábios grossos, perguntando o que quero com você. Com medo do julgamento, digo a coisa mais inocente, mais pueril. E para que me deixem entrar, pergunto por sua mulher. E eu, que pensava que finalmente sua mulher tindo ido embora, vejo - mostrada por elas - sua mulher lá fora, no jardim repleto de cadeiras de igreja, inclusive sentada numa, me vigiando também. O mundo em vigília, e você ainda não apareceu, o banheiro lhe esconde. É feriado, 24 de dezembro. Já tirei muitos alfinetes do chão, depois que lhe vi abraçando a filha da amante que foi de meu pai. Ela lhe abraçou, me atacando de um passado herdado de graça, sem nenhuma dor. Mas você veio ao meu encontro, e me abraçou também. E ela vigiando, de perto, o álbum de retratos que você me mostrava. Depois mãe e pai e minha irmã se deitaram naquele chão, naquele chão, cheio de alfinetes. Era feriado. Eu voltava para casa, e vi que estava no meio da rua apenas com as roupas de baixo, e fiquei morrendo de vergonha de minhas gordurinhas que precisavam se esconder num vestido, enquanto me lembrei que deveria ter pedido à mãe aquele xale que ela levava nos ombros enquanto dormia na sala de alfinetes. Voltei então, voltei à sua casa. O chuveiro forte ressoava na porta. Duas mulheres de lábios grossos vigiavam. Qual o segredo, meu Deus?, qual o segredo? Meu sonho não mostra. Ele quer apenas sua cabeça no meu colo, seus cabelos sob meus dedos, assim que você sair do chuveiro.



Imagem: "about my admiration for alejandro jodorowski II", por sternenrauscher.
(www.flickr.com)

domingo, 23 de agosto de 2009

brincando com Deus


O domingo serve para mostrar o quanto a vida é besta. Besta, bestíssima. E isso não é um lamento. É uma constatação. O domingo serve para jogar no meu estômago uma bola de meia, daquelas de antigamente, dos baleados no meio da rua. Só que essa bola de meia está vazia, não tem meia dentro. É oca, inteiramente, e por isso o meu estômago dói mais. A bola bate e volta, bate e volta, bate e volta.
Fico prostrada nessa brincadeira boba, sem forças para sair dela.
Sinto vontades de chamar Deus, brincalhão nato, que acha graça dessas vidas abestalhadas, sem rumo nem missão.
Implorar-lhe tirar esse domingo de minha frente, essa bola de meia oca.
Mas ele faz melhor. Rindo de se acabar, joga de lá pra cá uma bola maior, de futebol.



Imagem: "Ressonância existencial", Por Beccari Arts.
(www.flickr.com)

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Diante da lei


Como dois seres diante da lei, te espero em casa. Escolhi, de muito bom grado, uma calcinha vermelha, um sutiã vermelho, e um lindo, lindo vestido vermelho. A lei nos espera, como quem tem hora marcada; por trás dos telhados, dentro das portas dos sanitários, nos buracos das fechaduras: a lei nos olha. Que importa? Diante da lei seremos mortos? Que importa? Importa é que toques no ponto mais erótico de minha alma, e o resto que se dane. Se quiseres, matarei o primeiro porteiro, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, até chegar ao grande soberano. É justo chegar até ele. Chegaremos juntos, se quiseres. Se não, me espere, até que eu, sozinha, mate todos eles. Não restará vestígios de qualquer delito, pois que diante da lei não se pode ser ingênuo. Guardarei minhas inocências sob o tapete do soberano, empurrando-as, uma a uma, para fora do mundo. Estarei frente a frente com ele, num espelho. Calma, me espere em casa. Estarei indo, de vermelho.



Imagem: "amarelo sob vermelho", galeria de orxeira.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Um baile


O que mais gosto na Aeronauta é que ela é corajosa. Diz tudo o que sente, não engole nada, não sofre de indigestão. Não deixa as coisas que a atormentam passarem em branco: delata. É a justiceira de si mesma e do mundo. Enquanto que eu fico no "ah é, é?", ela já tem a resposta na ponta da língua. Por isso falta-lhe meu senso de humor. Deveria ser o contrário, mas não é. Vá lá entender as criaturas humanas. Aeronauta não é bem humorada, mas tem o humor ácido, ferino. Eu sou mais aquela que gosta de dar gaitadas, levar na flauta da brincadeira meus ódios mais intensos. Fico horas com minha irmã ao telefone, rindo de tanta coisa besta; mais horas com M., e mais horas com Renata. São minhas amigas de riso ao telefone, que traduz uma sustentável e maravilhosa leveza diante da vida. Aeronauta não, empertiga-se e tenta construir um riso literário. Aeronauta pode ser linda no imaginário de quem a lê, enquanto que eu sou baixinha e não cumpro, graças, nenhum padrão de beleza. Nunca consegui sair da roça, Aeronauta sabe disso e me aprova. Ela sabe de minhas mais feias esquisitices, da minha falta de requinte, e acha isso verdadeiro. Eu não. Acho isso breguice. Mas sou e preservo, não quero mudar. Aeronauta me ajuda a me aceitar assim. Devo muito a ela, lá isto é verdade. Só o fato de não me engasgar com injustiças, é uma dádiva. Oh, minha querida Aeronauta, já fui muito injusta com você. Vamos fazer as pazes? Que tal um baile? Lá escolheremos o mesmo rapaz para a dança, a dança que começa com uma valsa; e que seja uma valsa tão grande, tão grande, que nunca nunca acabe...


Imagem: "valsa aérea", de Tati1211.
(www.flickr.com)

domingo, 16 de agosto de 2009

Domingo, 02 de agosto


Alguns deles ali, sentados na porta do restaurante, à nossa espera. Maria Sampaio, Marcus Gusmão e sua filha Luísa, e Nílson. Chegamos eu e Renata, juntas. Já conhecia Nílson através dos lugares-comuns e não-comuns armados pelo Destino. Tinha visto Maria Sampaio e Marcus, certa feita, de longe. Saber da existência de alguém virtual, notar sua presença em corpo físico, é uma emoção muito grande. E naquele finalzinho de domingo eu viveria isso, agora de perto, no lugar da outra. Nunca competirei com Aeronauta, ela já conseguiu - e muito bem - seu lugar no mundo. A chorona Aeronauta parece que sabe conquistar gente. Confesso que tenho dela um certo ressentimento, uma pontinha doentia de inveja. Porque eu, ah eu sou um desapontamento. Notei isso logo de cara, na porta do restaurante. Para esse dia resolvi comprar um vestido cor de rosa choque (quando o comprei, lembro que refleti: esse levanta até defunto), mas de nada adiantou. Ali nitidamente eu era uma intrusa. E me portei como deveria: no meu lugar. Uma intrusa boca fechada. Não sabia o que dizer. Dizer o quê, meu Deus? Disse umas besteirinhas para cada um deles, e entramos, sentamos. (A primeira vez que senti aquele negócio estranho que estava sentindo, foi aos seis anos, no meu primeiro dia de aula.) Marcus Gusmão, conversador nato, abriu a prosa, e a prosa ficou mesmo lá entre ele, Maria (linda!), Renata, Luísa e Nílson. Eu olhando para o oriente. Não, meus queridos, Aeronauta não estava ali. Quem estava ali era eu, euzinha, com aquele vestido cor de rosa choque, deslocadíssima. Vocês notaram? Oh, queridos, vocês são tão educados, nem riram de mim, obrigada, tá?
Decididamente eu e Nílson, mesmo estando frente a frente na mesa, não conseguíamos conversar. Isso porque somos dois tímidos refletidos. Aeronauta consegue tirar dois dedos de prosa de Nílson, mas eu, eu não. De repente chegou Marta e família. Marta, conhecida minha de mais de quatro séculos. Aí começamos uma prosa boa, de literatura, de escola, disso e daquilo. Claramente quatro grupos se formaram: Maria, Gusmão, Renata e Luísa; eu e Marta; Nílson e Haroldo, marido de Marta; e as duas meninas que vieram com eles. Fui ao banheiro, Marta e os seus foram embora, e Maria, perspicaz, notando minha falta de entrosamento, trocou de lugar comigo, me colocando no meio deles. Aí eu pude mostrar minha verve menina da ilha. Marcus Gusmão adorou. Viu que tenho a língua envenenada, gosto de comer carne de cristão. Maria se acabou de rir. Como gostei de Maria! Nílson também riu das besteiras que eu disse. A noite acabava. Na saída, nunca esquecerei o que ouvi de Maria:
- Gostei mais de você que de Aeronauta.


Foto de Maria Sampaio.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

somente Kafka


Kafka deveria ter sabido profundamente sobre essa coisa que está aqui. Somente Kafka. Mais ninguém. Como é? Para que saber? Vá rir seu riso mais alegre, que aqui não há espaço pra isso não. Se estou fazendo apologia à tristeza? Que seja. Que o mundo se acabe. Que não estou aqui pra ser seu livro de autoajuda. Estou aqui inteira, com o cabelo horroroso, unhas idem, querendo virar mula sem cabeça. Ria, isso, ria. Quero fazer graça pesada, como desejar a infelicidade alheia. Está com medo de mim? Sou isso, meu bem. Uma praga, erva proliferando dentro de casa, formigas invadindo as estantes. Sou Kafka. Não, Kafka não, senão vai parecer mania de grandeza; sou a formiga mesmo. Buscando legiões de outras formigas para liquidar contigo. Que esse choro cortando meu pescoço é guilhotina no tempo antigo. Gui-lho-ti-na. Cor-tan-do de-va-gar. O choro não sai, apenas o pescoço se afina mais. Na multidão, você me assiste morrer. Você não queria, você faz apologia à felicidade, à harmonia, à esterilidade dos que não morrem, dos que apenas balbuciam, sem gemer.



Imagem: "O insustentável peso do ser", por Thabata Guerra.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

forte, sem nenhuma doença


Ontem viajei o dia inteiro, cheguei à noite muito cansada, e só abrindo os blogues me dei conta de que era o dia dos pais. O que imediatamente me lembrei foi do sonho que tive com pai na noite anterior. Só que não foi um sonho feliz. Foi um sonho triste, a repetição daqueles seus últimos momentos, quando bem doente ficou pequenininho, frágil, parecendo uma criança. Isso já faz quinze anos, e ele, puxa vida, continua doente. Quero-o forte, como antes, assistindo ao jornal nacional e me explicando as constantes mudanças da moeda, aquelas enigmáticas siglas urv. Era autodidata, conhecia muitas coisas; bastante dramático e honesto. Aqui decalco o que encontro numa pasta sua que trago comigo como maior herança: "Fui ameaçado de morte pelo telefone no dia 25 de julho, as 2 e meia da tarde. Disse a pessoa que se eu não renunciasse ao mandato de vereador dentro de 48 horas, eu estava preferindo a morte, e a fala foi de...(...)" Corajoso, disse de quem era a fala. No final, escreveu: "assino-me..." E datou: "Em 28/07/85." Cresci ouvindo-o contar sobre as ameaças de morte que recebia em razão de defender lavradores. Aliás, essa palavra "lavrador" era dita por ele o dia todo, de manhã à noite. Além de uma outra, que não sai do meu juízo, tal o tom de voz em que a pronunciava: "grileiros". E afirmava, com veemência, ser lavrador, mesmo quando já não pegava mais na enxada e discursava na câmara municipal. Era esse meu pai: forte, sem nenhuma doença, vestindo aquele paletó e calça verdes nas festas do Divino Espírito Santo, postado na frente da igreja lotada, conversando com os amigos. Ou então em posição de sentido, tirando retrato na praça recém-inaugurada, perto da placa com seu nome gravado. Tinha orgulho da "vereança" (como mãe pejorativamente denominava), de ter fundado o sindicato dos trabalhadores rurais, e de ter duas filhas: uma linda, desfilando no clube e ganhando o concurso de broto estudantil, e a outra lançando livro, poeta como seus tios repentistas. Esse era meu pai: forte, sem nenhuma doença, com um relógio grande no pulso esquerdo e óculos bifocais nos olhos ternos.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

essas palavras


Escrever é medicamento.
Jamais semelhante aos que tomava na infância, como, por exemplo, aprilin. Cor de rosa, de uma boniteza que era só enganação: seu gosto me deixava na maior tristeza do mundo, menina acabrunhada num canto com a boca manchada: mãe passava a colherada pincelando meus lábios.
Outro que me marcou foi "o remédio dos carocinhos". Este era maldito: branquelo, disfarçado de coalhada, com um monte de bolinho encaroçado no meio. Eu tinha que enfrentá-lo de uma gole só, com os olhos fechados.
Mas, o pior de todos, pior pior pior era o tal do imosec. Comprimidão grandão, meio esverdeado, descia amargo goela abaixo, acabando com tudo.
Ah, como dói aliviar nossas dores.
Escrever é medicamento que dói menos. Dói quase nada. Parece uma cirurgia mediúnica: de lá tudo é tirado em total silêncio e invisibilidade.
Hoje estou meio adoentada. Essas palavras vêm injetadas em saquinhos de chá, dormitando numa xícara de porcelana, à minha espera, na antiga mesa da sala.



Imagem: "xícara de porcelana" (www.google.com.br)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Pavões sem nenhum mistério


Oh, vaidade, o que escrever sobre ti?
Certa feita estava num grande auditório na Ufpe, ouvindo Ariano Suassuna falar. Nem preciso dizer que me diverti muito. E uma das coisas que ele enfatizou e assumiu com muita graça foi o gosto pelo elogio.(Adoro honestidades.) Contou-nos que conversando com um confrade, e este falando isso e aquilo do seu último livro, esperava com ansiedade o elogio. Que não vinha. Vinha tudo: particularidades do livro, capa, linguagem, coisa e tal, e nada. A conversa se esticando. A ansiedade aumentando. Aí ele não aguentou e pediu: "Rapaz, dê cá logo meu elogio!"
Enfatizei lá em cima, entre parênteses, que adoro honestidades. No plural mesmo. O que me exaspera é o fingimento, a vaidade enfatiotada de disfarce, ou o seu extremo: o mais descarado cabotinismo. No mundo acadêmico e no meio artístico alguns seres dotados desse dom se instalam como pragas, nos levando a pensar em dois caminhos: ou enviar o tal condenado direto ao manicômio, ou, ouvindo-o do auditório, de lá mesmo mandar-lhe uma bala na boca (aqui assumo minha ferocidade sertaneja).
Não, nada de matar, vamos aguentá-los e buscar o humor dilacerante de Gogol. Essas criaturas de quem estou falando são risíveis demais, não merecem morrer. Na hora de falar, postam-se ao microfone com um tom solene, e acreditam em tudo que dizem. Acreditam, a ponto de emitirem um tom monástico, destilando seu eu como se destila Deus em doses homicidas.
Numa mesa de congresso, quando precisam dividir a fala com seus congêneres, é como se estivessem sozinhos: o que os outros disseram não foi escutado. O discurso, pomposo e cheio de tons apocalípticos, se desvia dos demais, buscando o brilho cômico da exibição, na vontade exuberante de serem o melhor. E saem dali sempre acreditando que foram o melhor. No olhar, é nítido o menosprezo por aqueles que compuseram a mesa com eles. Afinal não se dividem brilhos épicos - repletos de condecorações.


Imagem: "Vaidade", por Gustavo Carrijo.
(www.flickr.com)

sábado, 1 de agosto de 2009

a jovem poeta


Já senti nos ossos e na vaidade essa coisa de ser chamada "jovem poeta". Melhor, vivi um tempo em que recebíamos no correio cartas com a seguinte destinação: Para a jovem... Romântico, absolutamente romântico esse tempo, que acabou. Mas não acabou a excelência do jovem poeta, o jovem que escreve. Como sei bem o que é isso, e vivi minha glória interiorana com glamour, hoje posso dizer o quanto é interessante. E bom. Só que eu, naquela época, nem tinha a noção do que é ser jovem. O que gostava era da aura, do fato de me olharem e me tratarem diferente por ter publicado um livro. Diziam: "Oh, tão jovem!" Puxa, nem aproveitei o "tão jovem". Mas aproveitei a felicidade de notar todos bestas pelo fato de eu ser escritora. O que eu pensava ingenuamente mesmo era que, com o livro, teria o mundo aos meus pés. O "mundo" seria, claro, os amados mais impossíveis que porventura iria conquistar com minhas palavras escritas e impressas. Ah, que doce equívoco! Doce, dulcíssimo. Aliás, tenho uma ternura muito grande por esse equívoco - que é uma das marcas mais inocentes de meu caráter.
Não conquistando o amor, o que fazer? Sair lançando livro pelas redondezas. E foi o que fiz, com a maior cara de pau. Meu Deus, que vexame era aquele? Mas acontece que eu tinha - na minha larga pretensão - mil exemplares dentro de casa. O que precisava fazer era isso mesmo: sair com as caixas debaixo do braço, lançando livro a torto e a direito em todas as cidadezinhas das lavras. O povo me acolhia. Um fenômeno: "tão jovem!" E os livros sendo vendidos, devidamente autografados, eu me sentindo una grande celebridad.
Como disse, vendi alguns livros, mas nunca cheguei aos mil, obviamente. Até hoje eles perseguem minhas moradas, meio amarelecidos, mas renintentes, na sua teimosia de continuar existindo. E, como se não bastasse, quatro anos depois lancei outro livro. Mais mil. Haja pretensão. E ainda era jovem, muito jovem. Continuei sem entender direito esse epíteto; porém, aproveitei, e bem, a aura de ser escritora.
Logo após fui fazer faculdade, vinda do interior. E os professores me tratavam diferente. Eu, uma tímida pavorosa, aproveitava as chances que meus livrinhos bobos me davam. E foi assim até chegar aos trinta. Os trinta anos nos tiram a aura. E nos dão um profundo ceticismo e autoanálise. Foi nos trinta que interceptei essa coisa de mais um livro com edição de mil exemplares. Fiquei nas fronteiras das antologias. Muito mais tímida. Desconfiada. Querendo dar um fim absoluto aos dois primeiros "filhotes". Negar, para sempre, a existência da jovem poeta.
Desde então me escondo, me escondo. Não nego o sonho de novamente publicar um livro. Com a modéstia perversa de cinquenta exemplares. Sei que agora não há mais aura; publicar é a coisa mais corriqueira que existe. Mas a "jovem poeta" persiste apenas num detalhe: ela continua abraçando cegamente o doce, dulcíssimo equívoco de com palavras escritas e impressas conquistar amores impossíveis.


Imagem: "Sem título", Rayani Melo.
(www.flickr.com)