terça-feira, 30 de setembro de 2008

É quase outubro


Vou lá em casa e já volto. A porta está no trinco: é só puxar o cordãozinho e entrar. O chão, vermelho e encerado, brilha. Dá até pena pisar com essa sandália suja de rua. Vou entrando, e nem preciso chamar por mãe, sei que ela está no fundo da casa, sinto o cheiro de café pronto. São nove e vinte da manhã, e ainda deve ter café na mesa. Pai está no sindicato e mãe preparando o almoço, agoniada como sempre. Às dez, dez e meia, e o almoço já prontinho da silva! Mas ainda não quero saber de almoço, quero é o cuscuz que está na mesa me esperando. Mãe, ô mãe, resolvo chamar por ela, corredor adentro. Ela, na janelinha que dá para o rio, conversa com alguém que passa do outro lado. Conversa telefônica: uma grita e a outra responde. Essa janelinha é um charme: pequetitita, porém dá para ver o rio e a imensidão toda do lado de lá. Numa segunda-feira, na agonia horrorosa desse dia, mãe jogou um dinheirão pela tal janelinha. Disse que estava agoniada e fez sem querer. A sorte é que o dinheiro não caiu dentro do rio. "Acode, meninas, vão pegar o dinheiro lá embaixo!" Escuto esse eco até hoje. Ah, mãe... Sempre com o cabelinho curto, motivo pra pai ficar com raiva e dizer que mulher tem que ter cabelo comprido, que ela precisa deixar o cabelo crescer, que daquele jeito parece mais é um homem. E ela: "Sai disso, Bino! Tu já me conheceu assim! Papai é quem cortava meu cabelo!" Essa conversa se repetia, e eu dou risada agora, ao lembrar. Já estou subindo as escadas que dão para a salinha. Nessas escadas, pelos buracos da porta que dá acesso à chamada "salinha" e à cozinha, eu, aos sete anos, espiava pai tomar banho na caixa d'água. Depois mãe tampou todos os buracos com papel higiênico. Agora as portas estão abertas e eu vou entrando. Na salinha a abertura para os sanitários, a caixa d'água e o quintal. Ah, o velho pé de carambola continua balançando suas folhas mornas... Mãe, debruçada sobre sua horta, nem me vê entrar, entretida. O rio está cheio, ouço o murmúrio dele, e sinto o cheiro de terra e pedra molhadas. Mãe me vê e sorri. É quase outubro. Que vontade de ficar.

Esse texto vai em homenagem a Nilson, lá do Blag (http://nilsonpedro.wordpress.com), e sua "Casa Tomada": entrei e senti saudades de minha casa antiga. Na foto acima, mãe sentada na porta.

domingo, 28 de setembro de 2008

"Recordações"


Um dia de domingo só presta para a gente olhar à janela e ter recordações. Palavra linda esta: "recordações". Parece que vem cheia de borboletas e flores na nossa memória, abrindo um escaninho de lembranças líricas. E são tantas. Essas eu faço questão de guardar bem-guardadas e só abri-las num dia assim, num dia vazio, no qual somente a imaginação poética pode nos salvar. Todas essas lembranças são de amor. Das possibilidades do amor. De todos os amores que já tive. Em suas mais diversas epifanias. Um riozinho correndo. Eu e ele diante de milhares de pedras. Ele pega uma pedrinha e desenha um relógio: eternos quinze para as três da tarde. Ele eternizou a nossa tarde no rio com um lápis que levou dentro do bolso. Hoje trago a pedra, ratificando liricamente aquela hora vivida.
Abro novo escaninho e lá vejo um professor de história. Tudo sabia sobre feudalismo, segunda guerra mundial, nova história, relações da história com a literatura, etc. Mas numa manhã de chuva, lá nas Lavras, me acordou perguntando o que era P.S. Até então ele não sabia o que era pos-scriptum, e tinha vergonha de perguntar. Nas cartas só usava o Obs. Eu nunca desconfiei disso, mas nessa manhã ele humildemente me perguntou, e eu caí na risada. A risada mais infantil e saborosa que já dei, e que levo - sonoramente - na memória.
Tenho vários escaninhos ainda para abrir. São tantos. Entretanto, já se faz tarde, meu corpo se cansa... E eu me lembro do amor mais tranqüilo que já tive, e que era "o meu repouso absoluto", assim mesmo como escrevi num poema: "manhã de chuva, vulto na varanda,/cadeira de balanço, descanso de tudo". Concretude de todas as possibilidades. Porém o amor exige mais, exige o que não existe. Nesse escaninho, então, todos os sonhos, e as palavras que não foram escutadas, se encontram. Nessas palavras me deito. E aguardo.

sábado, 27 de setembro de 2008

Cosme e Damião


Na hora dos apertos maiores, colossais, de quem é que a gente se lembra? Dos dois, claro. São Cosme e São Damião! Oh, o quanto essa dupla já me ajudou! Confesso que sou uma pedinte de marca maior. Pedi aos dois para conseguir terminar minha tese, e prometi caruru para sete meninos. Consegui terminar. Mas fiquei de corpo mole pra pagar a promessa. Veio a hora da defesa. Pedi de novo à dupla pra me sair bem. Consegui. E dupliquei a recompensa: caruru para quatorze meninos. Mas nada de pagar a promessa. Isso levou quase dois anos. E o juízo martelando, aliás, os dois martelando no meu juízo, cobrando o que era de direito. E a preguiça encostando. Lembrei agora de um detalhe: no ato da promessa fui audaciosa - afirmei que a pagaria lá minha terra, na minha casa, com as crianças de minha cidade natal. Por isso a dificuldade toda para quitar o débito. Ou o corpo mole meu. Até que um dia dei um basta e resolvi pagar o que devia. O diacho era encontrar quatorze meninos num lugar em que não conheço quase ninguém mais. Então o jeito era eu procurar de um lado e mãe de outro. Resultado: na hora do almoço, na casa se encontraram uns trinta meninos! Assim, estou com crédito. O que vou pedir mesmo?

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Na Cidade Baixa

Puxei a pai no destempero, no horror, no nervoso. Besta é quem pensa que sou calma. Sou um turbilhão. Pai também aparentava calma; só de longe. Entrasse no fusquinha com ele que você iria ver o que era agonia. Ou melhor, fizesse uma viagem com ele dentro do fusquinha que você iria ver o que era horror. Ele dirigia com o corpo todo debruçado sobre o volante, trêmulo, numa afobação danada. E a afobação era falante: "Meu Deus, se esse carro não atolar agora não atola nunca mais!" Ou: "Nessa curva aqui já morreu não sei quantos! Perigosíssima!"
Nas célebres viagens que fazíamos em família - todos os domingos para a roça - as cenas se repetiam: "Meninas!" Ele gritava pra mim e pra minha irmã, já dentro do carro: "Meninas, vão olhando pra trás! Se virem algum rastro de fumaça dêem um grito, pra dar tempo a gente sair e correr!" E nós duas tome pescoços pra trás! "Fusca é o carro que mais pega fogo no mundo!" gritava ele lá da frente.
Isso tudo sem precisar contar, e já contando, que em determinadas partes da estrada ele nunca se esquecia de lembrar de um compadre, de um fulano e de um sicrano que ali morreram. E detalhava todo o causo: como foi a morte, como os parentes ficaram...
Estou lembrando disso tudo porque hoje, andando pela Cidade Baixa, me lembrei dele. Ele que adorava Salvador e trazia toda a família nos finais de ano. (De ônibus, claro.) Adorava, mas sempre alertando sobre os perigos. Quando entrávamos num edifício, ele dizia: "Não gosto de entrar nisso não! Pois se começar a pegar fogo lá embaixo, quem está cá em cima não tem pra onde fugir!"
Uma das coisas daqui de Salvador que ele mais gostava era o Plano Inclinado. Fazia questão de nos levar, dentro daquela "combi diferente", para a Cidade Baixa. No meio do caminho, praticamente no ar, ele, nervoso, nunca se esquecia de dizer: "Meninas, olhem como é bonito! Mas se esse negócio despencar daqui, já era! Não sobra ninguém!"

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

excelentíssima vida

Se a reencarnação realmente existe, a constatação abre margem a uma pergunta: me digam por que diacho a gente quer voltar? Dizem que lá do outro lado nós fazemos de um tudo pra querer voltar pr'isso aqui. Jesus! O ser-humano é sem-vergonha mesmo! Claro que não vou deixar de dizer que a vida tem insights, epifanias, flashs de instantânea luz! Mas é muito pouco, e muito rápido. Primeiro porque a vida é ranzinza, lambisgóia e do contra. Alcoviteira é o que ela nunca foi. Ela parece um dos aqueles amigos chatos que querem aparecer a todo custo e por isso têm sempre a boca do "não". Ah, antipática, seu sadismo eu já conheço há muito tempo. E hoje, de pirraça, você riu de minha infelicidade numa esquininha qualquer. Ouvi até a gargalhada ecoando longe, querendo imitar a gargalhada clichê da madrata de Branca de Neve. Nem consegue ser original, a burra. O pior é que ela não aparece, vive apenas de nome. Vida, vida, vida. Pois é: excelentíssima vida, "magistrada" arrogante. Saia de seu gabinete, tire essa toga e venha ter dois leros comigo aqui fora.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O quase-amor e as diferenças de classe

A menina conheceu um moço no ônibus. Um moço até distinto, como se diz no interior. O moço estava sentado no corredor, ao seu lado, e a moça na janela. A moça e o moço (melhor chamá-los assim) começaram uma prosa boa. O moço loiro começou a retirar da pasta umas fotografias de familiares. Logo ficaram íntimos, amigos, paqueras, nas entrelinhas. Até então a moça só conhecia do moço loiro o lado esquerdo - coisas de perspectiva, estavam no ônibus e a visão se limita. O moço tinha um sorriso bonito, é bom fazer essa ressalva. Chegaram. Ah, o tal era destemido, quis levar a mocinha para casa. A mocinha ingênua aceitou. Clima no ar, o cabelo do rapaz, ela percebeu assim que desceram do ônibus, era loiro pintado, mas não tinha problema, continuava distinto. Ele ajudou ela com a mochila. Prosearam bastante no meio do caminho, clima de paquera. Ao deixá-la em casa, ele lhe deu um pitoque. E sorriu. Só aí a moça pôde ver que o seu sorriso largo era um sorriso comprometido, pois do lado direito os dentes eram só caquinhos, podrinhos. A moça sentiu um arrepio de repulsa, e tratou de apressar sua saída dali, o mais rápido possível.
Passaram-se alguns dias. A moça estava no ponto de ônibus para a universidade. O pescoço virado para o lado de lá, aguardando o ônibus. De repente, como ocorria todos os dias, passou o carro da Pavter, ou seja, o carro de limpeza da cidade. A moça nem olhou, estava acostumada com aquele carro passando todos os dias pela manhã. Só que nessa manhã o carro parou próximo ao ponto. E ela pôde ver, bem de perto, um monte de homens cor de abóbora (pois as suas fardas eram dessa cor). E um deles deu um pulo e veio em direção a ela. "Ué! Não é o tal rapaz distinto e que tinha os dentes...", ela nem completou o pensamento e ele: "Oi, linda!". Ele quis logo marcar algum encontro, e a sorte é que o ônibus dela bateu em cima, ela subiu e se livrou. Porém, o destino estava armando. Achou de ir trabalhar na Pavter um conterrâneo da moça, e lá o tal conterrâneo conheceu o tal moço loiro pintado. E, ao começarem um animado papo, falaram da moça. Oh, para quê?! Logo depois, a cidade natal da coitada ficou cheia que ela havia namorado, na cidade grande, um gari. Nada de mais, acredito, porém o povo, vocês sabem, tem preconceito de classe. Entretanto, o conterrâneo da moça apaziguou a situação ao encher a rua que o gari de quem falavam não era "propriamente gari", mas "cabo de turma": aquele que mandava nos garis, ordenando a esses pobres coitados, mais coitados do que ele, varrerem aqui, ali e acolá. Portanto, um chefe. Com roupa igualmente cor de abóbora, mas chefe. Com dentes podres, mas chefe. Só assim a moça voltou de novo a ter sua reputação, como se diz juridicamente, "ilibada".
P.S.: Segredo de pé de orelha: a moça aí é a Aeronauta.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Cheiro de mãe

Estar doente é sinônimo de ter alguém, sempre por perto, cuidando. Você todo embrulhado na cama, e uma mão vindo pegar na sua testa pra ver se a febre baixou; lhe acordar para dar o remédio na hora certa; sentar-se à beira da cama com um prato de comidinha leve e um garfo para colocar a comida na sua boca. A casa em paz, pois a pessoa que está cuidando de você faz de tudo para que nada atrapalhe seu sono. Há um certo ar de preocupação por todos os lados, e por todos os lados a sensação de que você é bastante querido, bastante dengado, bastante amado.
Há um certo ar de infância em estar doente. E um cheiro de mãe percorrendo a casa; mesmo quando a ausência do mundo entra nela, e lhe esmaga sozinho.

domingo, 21 de setembro de 2008

Bem simples

É, já pedi dinheiro na rua. Estão perplexos? Vou contar.
Primeiros dados:
* Matuta, em plena Feira de Santana. Precisava ir ao hospital visitar pai, que estava internado.
* Sempre tinha a mania de sair, na cidade grande, com o dinheiro contadinho. Mania de quem vinha e vive no interior e que, ao sair para a rua, não precisa levar dinheiro na bolsa. Nem a bolsa.
Outros dados:
* Eu no ponto de ônibus do bairro Sobradinho. Iria para a avenida Getúlio Vargas.
* No bolso, somente o dinheiro do ônibus.
Mais outros dados:
* Eu peguei o ônibus que só iria até metade do caminho. Mas até então não sabia disso.
* Na metade do caminho, o ônibus pára. Todo mundo desce. Inclusive eu, a última a descer, sem entender nada.
* Não, aquela rua não era a rua do hospital... Onde era o hospital? Me responderam "na getúlio vargas".
* Isso eu já sabia. E soube depois que pra chegar lá, só andando ou pegando outro ônibus.
* Decididamente: se fosse andando me perderia naquele mar de gente e rua.
* Decididamente: não tinha dinheiro para pegar outro ônibus.
* O que fazer?

Vi uma mulher segurando a mão de um menino pequeno, em pé, no ponto, com a cara virada para os ônibus que chegavam. Claro que o ônibus dela não era aquele que chegava agora. Toquei no seu braço e lhe pedi o dinheiro de uma passagem. Tentei explicar porque estava pedindo e ela fez uma boca de riso. Abriu uma bolsinha pequena. De lá tirou os cruzeiros (ou cruzados, não lembro) que eu pedi. E botou na minha mão.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Desvario

O que fazer? Fugir dos retratos, como fazia quando era criança? Encher a pança, até explodir? Matar o primeiro que surgir na esquina, com uma faca de cortar bolo? Pegar uma briga boa com uma amiga da onça e arrancar-lhe os cabelos? Dar uma unhada no braço de um menino azedo? Encher essa casa vazia de formiga e barata voadora? Pegar um ônibus e ir parar no fim do mundo? O que fazer? O que fazer? Vocês nunca tiveram um comichão desses? Uma vontade de esgoelar versos sem sentido, para que a vida acuda? Uma vontade surda de sair doida pela avenida cortando canela de gente? Uma vontade de, com uma tala de fósforo, ajudar o mundo a acabar em fogo?

Tributo ao rio


Uma das cenas mais líricas de minha infância sobreviverá, tenho certeza: eu descendo as escadarias do quintal de lá de casa, pela manhã, bem cedo. Ia escovar os dentes no rio. Um riozinho manso, raso, que dava para ver a areia: fininha... Lembro da pedra que acolhia meus pés quando eu chegava... Me debruçava sobre as águas, e o rio limpava meus dentes e minha boca do mingau das almas deixado na noite anterior. Aquele era um rio despretensioso. E eu dele conhecia tudo: sabia exatamente onde os pés atolavam; via cada mato que molhava suas folhas ali perto; das pedras me interessava o mais tolo e morno dos segredos: aquele de ali ficar, anos, tocando as águas, com seus frágeis dedos.

Momento de prece

ESPERA

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 16 de setembro de 2008

"É até morrer"

Igual a muitas meninas, tive minha fase de clariceana fanática. A cada aniversário pedia um presente aos membros da família: livros de Clarice Lispector. Assim, fiz minha coleção. Também semelhante a toda menina clariceana, tive o distanciamento. E fui procurar textos de uma Clarice um pouco diferente. Isso eu encontrei em A via crucis do corpo. Desse livro três contos me marcaram muito. Tanto que até hoje sei de cor as histórias de cada um. Claro que o enredo não é nada diante do jogo da linguagem, este que nos permite internalizar contos lidos há mais de quinze anos. Dois desses contos vou lembrar ligeiramente: um é a história de uma mulher e um gay, muito amigos, até entrar na amizade o amor de um homem. O gay humilha a amiga dizendo que ela não sabe fritar um ovo! Como eu me identifiquei com esse final! Eu que nunca soube fritar um ovo! O outro conto é a história de uma mulher que se vê num convento e doida para se casar. Aí ela se sente atraída pelo corpo de Cristo na cruz. A terceira história, e não é à toa que a deixei para o final, é de uma pungência, de uma urgência de vida, de uma tristeza sem perdão. Magistral a maneira como Clarice inicia a narrativa: "Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo". Só isso no primeiro parágrafo.
O narrador vai dizendo, laconicamente, que essa senhora tinha muitas vertigens, pois com ela "o desejo de prazer não passava". Foi ao médico. (O diálogo que transcreverei abaixo é trecho que fica gravado no nosso corpo como sentença.)

"- Quando é que passa?
- Passa o quê, minha senhora?
- A coisa.
- Que coisa?
- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
(...)
- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
- Não importa, minha senhora. É até morrer.
- Mas isso é o inferno!
- É a vida, senhora Raposo."

Daqui em diante não transcrevo mais nada. Basta por hoje.

Inconfidências

Tenho zilhões de provas para corrigir, mas é como se não tivesse. Nunca soube estar na realidade. Desde menina. E foi o que continuei ouvindo das pessoas, vida a fora. O último vivente que reiterou isso com precisão foi meu psicanalista. Mas que, igual a todos, ao tentar me trazer à realidade, fracassou.
O chamado real para mim é algo espesso demais. E ao invés de corrigir provas eu prefiro ficar aqui, dedilhando, tentando entrar em alguma nuvem. Podem me chamar de doida, que esse epíteto também me persegue. Vim de uma cidade de doidos, e pai falava que um dia iria embora dali, pois não queria acabar seus dias penando pelo mundo. Dizia que a serra esquenta o juízo. Meu juízo há muito vive quente. E se tudo é questão de nomenclatura, aceito essa de doida. Que doido pode fazer tudo, que doido tem a máxima liberdade, que doido tem a vida toda pra ele.
Pois é, sou doidona! Minha casa há muito não vê vassoura.(Ou seria porcona?) Há exatamente três semanas lavei umas mudas de roupa e nunca tirei do varal. Vou tirando à medida que preciso pra ir vestindo. Então as blusas ficam todas com uma marca no meio (do varal) que não tem ferro que tire. Trago na agenda vários telefones de diaristas, mas ostento o defeito de não gostar de ver gente se enfiando na minha casa, para lá e para cá. Só eu posso fazer faxina - quando Deus for servido. Livros? Ah, meus livros estão numa completa desordem nas estantes. São Longuinho trabalha todo santo dia pra encontrar pra mim o livro que procuro, no maior desespero do mundo! Todo dia é assim: São Longuinho por favor me mostre onde está o livro tal... E vai ele, coitado, trabalhar e encontrar o livro. E vou eu dar pulinhos e gritinhos e assoviozinhos. Isso é coisa de doido? É. Ou de preguiçosa: das duas uma. Ou nenhuma: pois não tem epíteto que nos defina: seres extraviados pelo mundo, com a idéia positivista, no consciente, da ordem e do progresso - que nunca virão.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O existencialista

Aos dezoito, dezenove anos fui professora de datilografia. Entrei em sociedade com um professor que havia me ensinado - aos quinze anos - como bater na máquina sem olhar para o teclado: fiz o curso inteirinho e ainda tirei primeiro lugar. Ganhei de presente uma bolsa marrom e horrorosa da Hermes. Pois bem: convite feito pelo professor, sociedade realizada: ele entrou com as máquinas, eu com o trabalho. Só que as máquinas eram do tempo do onça, todas muito antigas e pulantes. As pessoas da cidade se matricularam e, logo de cara, começou a reclamação do pula-pula e corre-corre das máquinas. A primeira lição do "asdfg" era um transtorno, pois ao baterem o s, este saía a quilômetros de distância do a. Então, era um tal de tira-papel da máquina, rasga e pede outro, 'fessora. E eu doidinha, sempre entre uma máquina e um aluno, e sempre com um livro na mão; literatura, óbvio. Com o tempo os alunos se acostumaram: aprenderam a domar aquelas remingtons e olivetts de pernas, ou melhor, de teclas soltas. Só assim eu poderia ler meus livros em paz sem o famigerado chama-chama.
Foi numa dessas manhãs de paz, que travei conhecimento com meu amigo "Bicho do Mato". É, esse mesmo, o que comenta alguns posts aqui. Eu estava com um livro de Sartre nas mãos quando o dito parou no passeio da escola e entrou. Sartre muito o interessava, ele que não conversava com ninguém, tinha um ou dois amigos no máximo, e não exalava um tantinho assim de afetividade pelas pessoas. É, pois é: Sartre fez ele entrar e vir falar comigo. Conversamos muitas horas seguidas. E assim nossa amizade foi crescendo e crescendo. Um dia ele me emprestou "As palavras" (de Sartre) e me disse que Dó (seu único amigo) lhe chamava de "O existencialista". Achei o máximo aquilo: estava na fase de querer ser atéia, de deixar de ser certinha. Foi num desses encontros na escola que ele me confidenciou algo que nunca esqueci. Disse que queria que sua mãe morresse para ele poder herdar a máquina de costura. Ah, Bicho do Mato, bons tempos! Naquele dia você foi um herói, pois ao ouvir aquela frase sair de sua boca com tanta tranqüilidade, eu quebrava todos os tabus que ainda tinha com certas palavras...
Dessa maneira meu amigo Bicho do Mato entrou para sempre na minha vida. Com idéias existencialistas ou não, é alguém que o mundo elegeu.

Voltando

Oh, queridos, tive que desaparecer por alguns dias. Meu corpo pesava demais e minha alma estava empanturrada. Eu trazia a cara de mil anos e o corpo de mil e um. Por isso fiz um intervalo entre duas nuvens: nesse intervalo caí várias vezes... Que nuvem suportaria tamanho peso? Fiz jejum, dormi, li, fui para o outro mundo, só pra ver se voltava a ser o que era: peso 48, vacilando em 49. Desbastei gorduras e gorduras de tédio e melancolia, vontade de matar e vontade de morrer. Lembrei-me das galinhas que mãe matava no quintal de lá de casa: na maior frieza, na maior naturalidade, como se tivesse matando uma muriçoca. Foi isso que fiz comigo, só para ver se recuperava uma leveza mediana, que fosse possível voltar ao blogue. E aqui estou, querendo prosa, numa segunda-feira de setembro, mês com nome bonito, com nome florido, e com uma data mais bonita ainda: quinze. Olho para o mural aqui em cima do computador e vejo Cecília. Peço-lhe ajuda. Seu olhar entra fundo na minha alma e me faz lembrar das coisas mais imprestáveis do mundo. E que eu guardo. Não, ela não manda jogar fora, como todo ser holístico faz. Ela diz para eu ir visitá-las: lembra-me que estou lá, no meio dos diários bestas, dos cadernos imbecis, dos poemas de rima paupérrima. Eu estou lá. Ela reitera para eu ir visitar-me. Ainda sussurra: Leia, leia a epígrafe que está naquele caderno de músicas! Olho para o caderno: capa forrada de papel de presente. Abro e leio na primeira página: "Músicas, canções": "Não há coisa mais linda de que o eco de uma canção". Ano: 1981. Ah, deixe-me rir, Cecília!! Ela não agüenta e ri também.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Apologia ao grotesco

Sempre tive uma certa queda pelo grotesco. A maioria de meus namorados nunca entrou na chamada beleza padrão. A beleza física não me comove tanto quanto a feiúra. O mundo é dos feios, fiquem sabendo. A família de pai, por exemplo, foi distintamente marcada pela feiúra. Todos, como dizem por aí, de mamando a caducando, são feios. Menos pai, claro, que sobressaía: talvez isso tenha atrapalhado um pouco nossa relação de filha e pai. Mas, convenhamos: há feios e feios. Há feiúras diferentes, que nos repugnam, ao invés de nos comover. Um dos paqueras que tive aos vinte anos era assim: repugnante. Parecia um ET, tinha a cara triangular. Até mãe, que nunca achou ninguém feio, quando o conheceu me chamou na cozinha com o olho arregalado, me perguntando o que era aquilo. Mas este, de fato, era feio mesmo; e um feio diferente, porque se achava bonito. Era arrogante: tirava fotos suas e mandava pra meio mundo de gente: chapelão preto na cabeça, relógio oriente enorme no pulso, corpo deitado na rede com um violão nas mãos; dedos de tentáculos segurando as cordas. Cor branca, de um sapo branquelo e envelhecido; vasta cabeleira preta, magrelo e metido a besta. Como se comover com tamanha feiúra? A beleza dos considerados feios está justamente na humildade comovente de se saber feio. Esse não: por isso retirei-o do caminho o mais rápido que pude. Fui me apaixonar anos depois por uma fera: tinha a cara de um bode e o mundo todo brilhava nos seus olhos. Era baixinho e me alcançava em todas as nuvens.

Encenando para Deus

Às vezes vejo a vida como dias amontoados, uns sobre os outros, sem lógica nenhuma. O mesmo sol, a mesma bruma, a mesma nuvem, a mesma ausência. Por trás de suas cortinas, Deus deve rir de nós, espertalhões que desejaram viver. Deus deve rir seus risos mais sarcásticos, mais irônicos, mais límpidos: Oh, ilusórias criaturas humanas, és simulacros, ao cabo e ao fim! Do outro lado escuto e digo, encenando para Deus: Oh diretor experimentalista, esse teatro me cansa, me entedia; me ensina uma de tuas danças, um de teus poemas, uma de tuas canções!
Deus, impassível, rege sua orquestra sem graça, de costas para mim.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O sapato de tia Nói

Tem muitas coisas nas atitudes humanas que jamais irei entender. Como, por exemplo, o que deu na cabeça e nas mãos de tio Rael para ele resolver fazer um sapato de madeira. O homem nunca teve sapataria, nunca vendeu sapato, e de uma hora para outra encasquestou e fez um, dando-o de presente à esposa, minha tia: tia Nói, Noêmia. Mulher de pulso forte, fala corrida e muito nervoso nos gestos. Mulher que nunca levou desaforo para casa, e sempre gostou de tomar umas pinguinhas. Mulher danada de forte e braba. Mas que se rendeu aos encantos do sapato de madeira que tio Rael fez: não sei se pra agradar ao marido ou porque gostou mesmo. Só sei é que ela foi à feira da cidade com o dito cujo nos pés, feliz da vida. Deu muitas voltas na feira, foi na prefeitura, no banco, em todos os lugares. Mãe a encontrou se arrastando no passeio da rua, se apoiando nas paredes, com passo curto e pés calejados. Perguntou: "Noemi, o que foi?" Ela só gemia e mostrava o tamancão de madeira, feito literalmente a facão. Tentava andar, mas os pés estavam em chaga viva. As pernas já iam abertas, coitada, quando, ao se apoiar nas paredes, desistiu e pediu pelo amor de Deus que a salvassem. Mãe prontamente lhe ajudou, e ficou perturbadíssima com o que viu: um sapato do tamanho do mundo, madeira viva, altíssimo, com dois pregos quase soltos no solado. Mais perturbada ainda ficou pelo fato de não entender absolutamente nada sobre a intenção de tio Rael ao tirar da cachola e das mãos uma idéia miserável daquela.

Bilhete de um grande amor

"Só posso te ter em sonhos
E lá é tão só."

domingo, 7 de setembro de 2008

A estrangeira


Pai e mãe eram padrinhos de muitos meninos. Nesse batizado, realizado na Igreja de Nossa Senhora das Graças, foi o momento do retrato. Vejam que eu me escondia atrás do povo. E mãe tentava me tirar de lá. O retratista não esperou, mandou o flash. A menina da ilha agarrou-se a pai, mais uma vez, que ela não era besta de fugir daquela luzinha que saía da máquina.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Esse texto é pra vocês

Gosto de imaginar essas pessoas todas que passam por aqui. Pessoas que são, mais de que seres virtuais, viscerais: Bernardo, Maria Sampaio, Personagem, Críticas, Carlos Rafael, Marcus... Fico pensando se eles um dia me reconheceriam na rua. Ou se nalguma tarde já passamos lado a lado na calçada. Ou se, melhor ainda, numa manhã na livraria nos debruçamos sobre a mesma estante... Quem sabe? Também fico pensando como seria um encontro nosso. Essa idéia, logo que penso, rechaço. Todos esses seres virtuais e viscerais têm uma imagem minha que nunca vai corresponder ao que de fato sou. Aeronauta é um personagem. Eu sou eu. Parafraseando Deus, sou apenas "aquela que sou". Não tem um adjetivo que me justifique ao mundo. "Sou" apenas, repito.
... Enquanto que a Aeronauta vive atrás de coisas, correndo atrás de motivos, de sentidos, de nuvens, eu apenas observo. Também não só é a Aeronauta que mora em mim: há uma legião. Mas é ela quem me dá mais sutileza, mais sensibilidade para poder ver vocês. Acreditem: vejo-os profundamente, sinto a textura do olhar de cada um... Afinal os sentidos que conseguimos através de nossos personagens servem para isso: para finalmente tocar o que nos parece invisível.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Em tempo


Olha ela aqui recuperada, e já desfilando em concurso de beleza...

Vejam essa!


Ah retrato do fim do mundo! A coitadinha estava um fiapo de gente, de sarampo, e ainda vaidosa que só ela. Deitada, bastou ouvir mãe falar a palavra "retratista" para a sujeitinha dar um pulo da cama e gritar: "quero tirar retrato!" Taí: olho morto, cara de menina do além. É ela, Marcus, minha irmã, aos quatro anos, caidaça de sarampo. Maria Sampaio, eis ela aí. Personagem Principal e Renata: vejam só, que coitadinha! Mônica (as duas), acudam a menina! Bernardo, conheça ela!
Foi por tudo isso, contado e ocorrido, que, mais tarde, a fidalgazinha se embelezou e ganhou todos os concursos: "Rainha do Milho", "Broto Estudantil", Miss cidade, etc, etc, etc... Não é por acaso, pois, que a digníssima - que não é mais essa menina - aprovou a publicação de seu retrato.

Ah, o de sempre...

Acordo, me sento diante do computador, e pergunto para meus dedos: escrever o quê? Tudo já foi escrito. Há um ano que mantenho este diariozinho: já contei todos os causos, todos os dramas, todas as comédias. Já falei de pai, de mãe, de minha irmã. Da parentada toda. Já falei até coisa que não devia, coisa íntima demais. Já mostrei poemas inéditos, loucos para irem parar num livro. Já comi carne de cristão - como dizemos na minha terra ao retalhar a vida alheia. Já falei de tudo. E agora? O que vou escrever? Se o sol vai alto e setembro se instala? Se ontem rebentei meu nariz de tanto lavar roupa (não sei por que meu nariz arde quando lavo roupa!)... Se, se, se dou munição para o anônimo meu amigo me chamar de Choronauta? Não, não vou me lamentar hoje, é setembro - de Beto Guedes e de todas as lembranças dos dezenove anos. Agosto desgostoso já se foi, e a existência se prolonga em mais um dia que chega com fundo musical de eleição... É como se a existência se mostrasse irônica com essa musiquinha ridícula ao fundo. A vida é uma narrativa de Gógol: ri de todos nós, seres que têm a cara parecida com a de um rato, com a de um bode... Ou feita a facão mesmo...*

*Sobre isso acrescenta o narrador de "Almas mortas": "É de conhecimento geral que no mundo existem muitas faces, na feitura das quais a natureza não quis dar-se muito trabalho, não usou nenhum dos instrumentos finos, tais como lixas, brocas e quejandos, mas simplesmente desceu a machadinha com toda a força: uma machadada, e saiu o nariz, outra, e resultaram os lábios; com dois movimentos de verruma grossa, fez os olhos, e soltou o resultado, sem lixá-lo, para o mundo, dizendo: "Vive!"

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Coragem bernardiana

Engraçado, tem certas coisas que a gente tem vergonha de dizer. É nessas horas que eu gostaria de ser o Meursault camusiano e/ou Bernardo Guimarães. Ambos dizem tudo que não gostam, sem maiores problemas. Bernardo diz hoje no seu blogue (www.xeudizer.blogspot.com), em alto e bom tom: "vá ao teatro (mas não me chame)". Adorei. Nunca fui fã de teatro. As poucas vezes que disse isso para algumas pessoas, quase me lincharam. E agora dizendo novamente tenho medo de ser linchada. Mas tomei coragem depois que li Bernardo. Pois é. Nunca gostei. Sempre achei um saco. Deve ser trauma infantil mesmo: aquele negócio de me vestirem de Tiradentes na escola... Depois teve a peça de Branca de Neve na qual me chamaram para ser a rainha madrasta, dando gargalhadas diante do espelho... "Por que não Branca de Neve?" Pena que não tive coragem de perguntar isso. Mas pelo menos disse "não" a tal proposta horrorosa.
Deixando traumas de lado, retomo o assunto. De todas as artes, o teatro é a que não me diz muita coisa (só se salva para mim a leitura de Shakespeare). Ou seja: teatro é a arte que me entendia, me cansa, me deixa de mau-humor. O pior de tudo são essas tais peças experimentalistas baianas... Todo mundo sai elogiando sem entender nada. É: porque a coisa não é para entender mesmo, é só para espectador tirado a cult elogiar e mostrar que entendeu.
Há uns meses atrás fui assistir a uma peça comentadíssima, lá no Pelourinho. Um ator cabeludão, gritava e esperneava no palco, emendando e emendando versos de Caê, no maior desespero do mundo. Puxava os cabelos, num chilique louco. Na mesma hora em que estava em pé no palco, sorrindo: "Você é linda...", já aparecia na janela, chorando: "(snif...) alguma coisa acontece no meu coração (snif)", e no portão, berrando: "porque sou um homem comum!!", "vaca de divinas tetas!!", etc. Um horror. Coitado de Caetano, coitada de mim. Nunca mais eu, como diz mãe.