quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Meu pé de carambola...

O quintal de lá de casa é uma lembrança forte. Era enorme, tinha um pé de carambola baixinho, pendurado de carambolas, um portão e uma escada de cimento que dava para o rio. A gente acordava e nosso primeiro contato com o mundo era o quintal: descíamos os degraus correndo, com a escova e o creme dental na mão, e íamos escovar os dentes no rio...
Voltando da escola, à tarde, era sob o pé de carambola que fazíamos nossas brincadeiras. As folhas eram dinheiro vivo para mim, para que eu pudesse fazer compras para minhas bonecas. Minha irmã não, gostava do pé de carambola para subir até o mais alto dos galhos e ficar de lá de cima proclamando sua audácia. Eu não subia, tinha medo de cair, mas catava todas as folhas possíveis para não deixar que minha casa de brinquedo passasse necessidades.
À noite, mãe abria as janelas que dava para o quintal. E era o vento que vinha do balançar do pé de carambola que trazia fresca lá para a casa. O calor era danado, e o vento vindo do quintal era o nosso mais delicioso ventilador.
Tínhamos sim, eu e minha irmã, uma relação forte com o pé de carambola, que se acentuou quando nós duas líamos e chorávamos, líamos e chorávamos o "Meu pé de laranja lima". Nós talvez pressentíssemos que aquilo tudo um dia ia acabar: quintal, pé de carambola, portão, escada, rio para escovar dente, etc.
Num final de tarde da década de oitenta, chegando do ginásio, encontramos um futuro sombrio: o quintal tinha desaparecido e plantaram uma casa nele. Não teríamos mais acesso ao rio, desapareceram portão e escada. Desapareceu o pé de carambola. Eu e minha irmã choramos, choramos, choramos, tal qual Zezinho, eu e ela, repetindo e repetindo o livro de José Mauro de Vasconcelos.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Só nós dois

Não há nada a dizer. Apenas que os dias continuam passando e eu fora de mim. Eu longe de mim. Andando num país que não existe, por ruas invisíveis, cultuando cantigas que só eu e o vento ouvimos. Só eu e o vento - andando por aí, roubando alguns sonhos de quem se deixa levar por nós. Poucos se deixam. Muitos estão ocupados em existir, existir, existir... Há uma busca insistente pela vida, enquanto que eu e o vento pouco buscamos: sabemos apenas balançar árvores, folhas secas, papéis que andam soltos pelo mundo, sentindo texturas de peles que se deixam tocar. Apenas isso. Nada mais do que isso.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Eu não queria sentir dor

Minha mãe é um riso com os olhos apertados. As unhas cheirando a alho e a cebola. O cabelo anelado, cortado curtinho, sempre pintado de preto. Cheinha de manias: brinco é uma delas. Tem uma coleção, de todas as cores, mas todos em formato pequeno.
Minha mãe sempre foi criança. Até quando batia em mim para que eu comesse. Dizia assim: "Ô sujeitinha, você não quer comer não?", e me dava um beliscão no braço. Hoje acho graça disso, mas na hora do beliscão eu a odiava. Porém, logo depois me esquecia e estava rindo para ela. Minha irmã me chamava de besta por causa disso, pois eu apanhava e na mesma hora me esquecia...
Ah, minha infância é sempre o mesmo retrato: eu e minha mãe. Onde estava ela, lá estava eu. Na adolescência o retrato mudou: ela era minha perseguição. Agora, na idade adulta, ela é a minha memória: gosto de perguntar coisas a ela de "quando eu era pequena". Ela diz que tem saudades desse tempo, e os olhos se enchem de água. Nessas águas consigo voltar, lembro de nossos banhos em família no Córrego do Padre, ela banhando-se de vestido, pai com uma sunga azul, eu com um biquíni verde, minha irmã com um biquíni vermelho. Ainda nessas águas que saem dos olhos dela vejo eu correndo pela larga praça de minha cidade, fugindo de uma maldita injeção que me esperava na farmácia. E ela gritando para todos os moradores ouvirem: "pega, pega essa menina aí, pelo amor de Deus!" E de todos os cantos da praça aparecendo pessoas para pegarem essa menina que era eu, na maldita armadilha de uma injeção que eu não queria, que eu não queria. É isso: minha mãe também representava o que eu não queria... Ora, para que tomar injeção e sentir dor? Não, eu não queria sentir dor...

domingo, 16 de setembro de 2007

Um reino jamais perdido

Sempre fui uma pessoa esquiva: gente sempre me deu medo. Mas no fundo, eu sei, adoro gente. Descobri isso dando aulas. Amo apaixonadamente meus alunos. Gosto de olhar para cada rosto e adivinhar seus mistérios. A fidelidade às carteiras onde se sentam, por exemplo, é um mistério saboroso. Por que será que eles se sentam constantemente nos mesmos lugares? Outros mistérios? Ah, são muitos. Até quando desatam a conversar e eu chamo a atenção para a "feira de maxixe". Eles riem e voltam a prestar atenção à aula. São todos adultos, e se comportam como crianças: isso é o que mais me encanta, e ao mesmo tempo o que me deixa, às vezes, nervosa. Aluno, por mais que goste da aula que assiste, fica sempre doido para ir embora. Sei disso e tento, a cada dia, trazer algo novo, como quem quer roubar mesmo a atenção de uma criança...

Inúmeras vezes notei essa repetição: no primeiro dia de aula, na hora da sondagem, eles têm orgulho de dizer que detestam poesia. Nesse instante volto a sentir a dimensão do desafio... É preciso, a partir daqui, em todos os momentos da aula, olhar para cada rosto, cada olhar, cada gesto, para tentar descobrir o caminho. É ainda preciso não ter medo de amar cada rosto, cada alma e, também, cada desprezo que eles possam lhe dar durante esse percurso. E, mais, é intensamente necessário amar estar ali com eles. E chegar perto. E falar dentro da alma de cada um, mesmo daquele que faz desdém, ri do que você diz. Ah, é tarefa maravilhosa essa. Poesia e alma andam juntas, por isso o resultado sempre é bom, muito bom. Num certo dia você percebe que o interesse deles já começa a mudar, eles já vêem diferente o poema, sem bocejos, pois enxergam suas vidas ali. Depois começam a brincar com as palavras, e no final dizem: "puxa, professora, já estou começando a gostar de poesia!" Ou: "Eu não achava, professora, que poesia era assim..." E aí acontece a comunhão. É maravilhoso. Será que a sensação que sinto nesse momento é a mesma que um padre sente após uma conversão?

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

No confessionário

Eu tinha sete anos e vestidos curtos. Sempre bem curtos. Viam a calçola. Cor de rosa. Enorme. Eu adorava mostrar essa calçola cor de rosa para a família de dona Clotildes, na hora do jantar da casa dela, principalmente para Eugênio, um meninão de seus quatorze anos, tímido como não sei nem o quê. Eu sabia que ele era tímido e queria que ele ficasse vermelho que nem um pimentão. E toda noite ia para tal casa promover o espetáculo. Na sala do jantar, a família toda reunida, uma mesa redonda, Eugênio perto da parede, eu dizia assim: "olhe, Eugênio, minha calcinha nova!" O povo todo gargalhava e ele, coitado, querendo desaparecer... Isso se repetia todas as noites. Não sei por que aquelas pessoas achavam graça naquele espetáculo repetitivo: eu sempre dizendo as mesmas palavras e a família presente rindo o mesmo riso... só o que era diferente era a calçola de cada noite, nem sempre cor de rosa, claro.

domingo, 9 de setembro de 2007

O encanto das perguntas

XLIII

Quem era aquela que te amou
no sonho, quando dormias?

Onde vão as coisas do sonho?
Vão para o sonho dos outros?

E o pai que vive nos sonhos
volta a morrer quando despertas?

Florescem as plantas do sonho
e maduram seus graves frutos?

Esses dísticos perguntadores e maravilhosos são de Pablo Neruda, do seu imperdível "Livro das perguntas". Gosto do livro todo, mas esse poema me visita desde ontem. Talvez porque fale dos sonhos. Talvez porque pergunte de um pai "que vive nos sonhos" e que "volta a morrer quando despertas"... E é uma pergunta, não uma afirmação: por isso o encanto. A pergunta se insere no reino do que poderia ser, do sonho. Todo sonho é uma grande pergunta, não sei se Freud disse isso, mas deve ter sugerido.
Não quero propor aqui uma interpretação do poema - assim como faço com meus alunos, e sempre acontece, por conseguinte, o encanto: o encanto de encontrar muitas respostas e continuar perguntando... A poesia é assim: tem tantas portas, janelas, varandas... E constantemente uma estrada não-vista a ser revelada.
Não, agora não quero propor nada. Apenas deitar e sonhar: perguntar ao mundo, enquanto durmo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Casamento feliz

Desde cedo descobri que o meu grande amor, para a vida toda, seria mesmo a literatura. Nas férias, deitada no sofá de lá de casa - um sofá antigo, desses que não existem mais - eu passava o dia lendo, ninguém me importunava. Pai passava quando vinha da rua, mãe quando varria a sala, minha irmã quando vinha da casa das amigas, e eu lá, no mesmo lugar, lendo, sendo feliz. Ninguém me tirava daquele mundo... Minha família sempre entendeu isso muito bem. Acho que sentiam orgulho. Pai, que sempre foi leitor fervoroso de Jorge Amado, e lia jornal todas as noites, sentia-se orgulhoso por ver que tinha filhas que gostavam de ler, e uma que chegava a lhe preocupar, pois lia demais da conta: eu. Ele perguntava a mãe, "e essa menina não sai não, não brinca com suas amigas, não passeia"? Mãe não entendia muito bem aquele negócio meu com os livros, mas achava melhor assim: melhor dentro de casa que aprontando na rua. E dessa maneira iam passando os dias. Descobri que, mesmo morando numa cidade sem biblioteca nem livraria, poderia ler. As famílias vizinhas, e pai também, compravam coleções de grandes autores através dos vendedores de livros que apareciam na cidade de tempos em tempos. Eram coleções encadernadas, bonitas. Lembro que as que pai comprou foram as de Jorge Amado, Aluísio Azevedo e Machado de Assis. E uma vizinha comprou José Mauro de Vasconcelos e José Lins do Rego. Li as coleções de casa e depois fui às coleções da casa vizinha: não podia perder tempo... Como chorei e como reli Meu pé de Laranja Lima... A fala terna e dolorosa do personagem principal: "...e eu, Godóia?" até hoje soa no meu coração, doendo...
Sei que a minha compreensão do mundo, o meu sentimento do mundo, como diria Drummond, vieram de lá: dos primeiros livros lidos. E também da bela compreensão de minha família por essa união que a infância selou para toda a vida: meu casamento, com total comunhão de bens, com a literatura.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Conversando no divã

Para que diabos procuramos nos tratar numa sala de terapia? É essa a pergunta que me faço, eu que sou adepta de uma dessas salas. Para que diabos se procura um psicólogo? Para que diabos temos depressão? Os palavrões todos são formas de desabafo, como se agora eu estivesse numa dessas salas, o psicólogo à minha frente, eu em frente ao psicólogo, com todas as minhas dores. O que diabo ele irá fazer com a minha dor? Passar remédio ele não vai, pois quem passa é o psiquiatra. O psiquiatra trata da depressão em sua forma cerebral, diria assim, remédios para a famosa serotonina, etc.; enquanto que o psicólogo trata da depressão com perguntas mais auspiciosas, profundamente existencialistas, filosóficas, coisas que possam encontrar a alma do paciente, sua gênese familiar, a criança que está lá entalada querendo brincar de qualquer jeito... Os psicólogos estudam muito, lêem Freud, Lacan, Jung, têm até autoridade para negar as posições de cada um desses famosos e ter a sua própria posição. Aliás, eles tem tudo nas mãos: um ser. O que fazer com um ser? Ouvir o seu choro convulsivo? Arrumar-lhe um lencinho branco de papel? Dizer-lhe palavras auspiciosas? Meu Deus, o que fazer... Pronto, já sei: o bom psicólogo encontra a alma de seu cliente, sabe sua história, lhe diz o que deve fazer, o que não deve, sugere caminhos... Há no seu olhar algo humano, percebe-se. Em alguns casos ele simpatiza com sua história, tem uma devida compaixão. Mas ele não pode fazer mais nada. Não pode lhe dar um abraço. Não pode lhe transmitir afeto. Às vezes o afeto se dissemina no olhar, mas ele retrai. Porque não pode. Porque isso conseqüentemente se transformará em contra-transferência. Porque o que acontece ali é uma relação profissional: há um doente e há um médico. Só que o doente é doente da alma e o médico também é da alma. Eis a encruzilhada. A alma exige não-profissionalismo, a alma implora afeto, abraço, cumplicidade com seu destino. Por isso me pergunto, de novo, e me perguntarei a vida inteira: para que diabos procuro um psicólogo?

domingo, 2 de setembro de 2007

A Pasárgada de meu sobrinho

Estava doente, e meu sobrinho, que acabou de fazer dez anos, sabia que eu estava doente. Ele sabia que eu precisava melhorar. E a estratégia dele foi boa, inteligente, sensível.
Primeiro passo: ele me acordou. Ao meio-dia eu estava dormindo, e ele me telefonou.
Segundo passo: ele me disse assim:

"Titia, escute isso:

'... E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada' "

E no finalzinho do verso, no "vou-me embora pra Pasárgada", ele quis imitar a risada de Juca de Oliveira recitando o poema no cd que ouvimos juntos, há um mês atrás. Não agüentei: morri de rir. Aí ele disse que naquele momento estava lendo o poema no seu livro da escola, e que adorava encontrar poemas - que ele já conhecia - em outros lugares. E disse mais: que adorou essa parte de deitar na beira do rio e chamar a mãe-d'água... E imitando Juca de Oliveira, desligou com uma gargalhada: "Vou-me embora pra Pasárgada!"