quarta-feira, 29 de abril de 2009

O que sei de mim


O pior de tudo é que a gente não consegue se ver vivendo. Antes de ler Pirandello, em mim já habitava essa angústia; a angústia de não ter a totalidade de mim mesma, de não conseguir me ver por inteiro, nem no espelho: pois se olho para meu braço direito refletido nele, só vejo meu braço direito, e o resto do corpo se mira em olhar periférico. Não consigo saber como mexe minha boca quando faço um esgar; como brilham meus olhos quando sorrio; como ficam minhas sobrancelhas quando divago. Oh, quão estranho é não se conhecer, sequer externamente! O que sei de mim é o que me contam as pessoas e o que mostram as fotografias: ambas quase sempre falaciosas. Como, então, saber de mim?, se o olhar do amor me deforma e o da indiferença me anula? Se andando pé ante pé, na sala escura, acordam monstros de maior estatura e me degolam?



Imagem:http://talk-girl.blogspot.com

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Proteção


Numa tarde dessas, ao dobrar uma esquina, ganhei de presente dos céus o rosto, os cabelos e os olhos de um e-amigo, assim, completamente ao vivo, e não mais no papel. Ele me olhou e seguiu. Não me reconheceu. Tive um arrebatamento de felicidade. Ele existia de verdade, como desconfiava. Ele era bonito, como imaginei. Nos seus olhos que me olharam e que não me viram me senti completamente protegida. De mim, do mundo, de existir.


Imagem: 'Onírico' por 10064 dias.
(www.flickr.com)

quarta-feira, 22 de abril de 2009

perfil de mãe


Mãe é nonsense. Sempre foi. Um jeito de atropelar o assunto no meio e falar, olhando pra nossa orelha: que argolinha linda! De dizer sobre a saudade terrível que sentirá da avenida sete quando minha irmã se mudar do garcia. De conversar, sempre interpelando, quando me vê corrigindo provas ou lendo. De insistentemente repetir, depois de um sonho contado por mim, que sonho é ilusão. De afirmar que o torto está direito, que o feio está bonito, que tudo está perfeito, enquanto o mundo inteiro acha o contrário. De comprar livros de receitas e de simpatias. Da teimosia em não tomar o remédio de pressão e continuar comendo gordura, rebatendo depois com chá de chuchu. De olhar para o oriente em todas as fotos, em todos os grandes momentos. De ter uma maneira sui generis de não estar nesse mundo, com a cabeça sobrevoando tudo e o olhar distante. De, quando deseja fazer chantagem, repetir mil vezes aquela história de que deveria ter morrido quando ficou doente no Valha-me Deus. De chegar aqui em casa e ir direto para a pia lavar pratos, mudando de assunto ao sabor do próprio pensamento... Ah, mãe é o mesmo cabelo curto, sempre lustrando de preto. Um jeito, um sestro, as unhas dos pés pintadas de vermelho. Uma mania irresistível por brincos e remédios. Mãe é isso.


Imagem: "Self portrait", por Karina Seino.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Decreto


Que Deus preste atenção nessa minha vontade de dormir. Com apenas alguns intervalos de leitura. Nada, nada de obrigação pra fazer. Corrigir provas? Para quê? Quero a solidão. Desliguem meu telefone, meu interfone, todos os fones que existem. Para que tanto fone? Para que tanta comunicação? Se por baixo da mais impura superfície Deus corta todos os fios de conexão? Há um vazio, só Deus e poucos sabem, um grande vazio, que os sorrisos mais gratos não percebem. Há gratidão no mundo, e disso os anjos riem; dão imensas gargalhadas. Tudo lá é empolado, eles satirizam, e fazem versos, a la Gregório de Matos. Tudo é mesmo uma grande palhaçada, sinto vontade de falar mal dos dois mundos, e panfletar que o melhor mesmo é dormir. Corrigir provas? Que elas me esqueçam, fujam de mim. Lavar pratos? Que eles se quebrem todos, um por um. Ah, vestida como a louca dos tempos, subverto a ordem do universo com os olhos fechados, e decreto o mais infinito dos feriados.


Imagem: "Me encanta oirte dormir", por Paco Martos.
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domingo, 19 de abril de 2009

Ontem


Ontem aeronauta saiu da toca. E foi para a Bienal. Na verdade ela foi assistir à amiga Renata Belmonte, no Arena Jovem, discutir, com mais dois escritores, sobre blogues. Lá, aeronauta se sentiu um peixe fora d'água, como era de se esperar. Na toca em que aeronauta mora é tudo em penumbra, enquanto lá naquele lugar tudo era claro como um dia perpétuo. Muitos escritores estavam presentes, inclusive Kátia Borges, para quem a aeronauta acenou com a mais desconcertante timidez. Se algum outro e-amigo estivesse lá, fatalmente iria lhe reconhecer. Era aquela que estava sentada num canto do auditório, com medo das máquinas fotográficas. Assustada, se encolhia, se encolhia, até desaparecer.


Imagem: "A lua de ontem".
(www.flickr.com)

sábado, 18 de abril de 2009

Aos redemoinhos


Serei sempre fiel à minha infância. Por isso os vestidos curtos, os pés descalços,
e a reincidente maneira de olhar o mundo com medo. Assustada, atravesso dias e dias pulando as poças d'água, e caindo em todas elas. Ainda é cedo, a menina tem o cabelo nos mundos: não tem pente que endireite, que coloque em ordem esse rebelde cabelo crespo. Como levá-la ao baile desse jeito? Não, livremos essa coitada das tranças imensas que a aprisionavam na torre, como se Rapunzel fosse. Deixemos esse cabelo ao comando dos ventos, entregando-o ao doce deleite dos redemoinhos mais brandos.


Imagem: "Folha no redemoinho", por Francisco Donadio.
(www.flickr.com)

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Sob a proteção da palavra


Ainda estou sob o efeito que o texto "no divã" causou em mim. Encenei. Vivi. O que importa o tanto de ficção que há nele, ou o tanto de biográfico? De fato foi uma encenação pincelada de inverdades, de verdades. De mentiras. Tudo misturado. Diria mais, foi uma encenação que não me deixou impune. Saí com a sensação de que lá dentro daquela sala kafkiana deixei minha alma. A escrita diz o que a palavra proferida a viva voz não consegue. E eu nunca sei falar nada. Desde pequena escrevo pra não precisar falar. Sinto que é uma forma de tentar seduzir o outro, já que não sei mesmo falar. Por isso não queiram me conhecer: sou muda. As palavras que saem de minha boca são sempre intrusas, desordenadas, soltas, guturais. Vivo com a cara pra cima, ninguém dá dois mil réis por mim. Sou tímida de doer. Por isso rejeitei o convite de ir ler meus poemas no café literário e na praça da poesia da Bienal. Se eu fosse o que iria fazer com minhas mãos? Onde as colocaria? Meus poemas sairiam de minha boca de uma maneira torpe, infame. Melhor então que me leiam apenas por aqui, que me vejam por aqui, que me sintam por aqui. Aqui existo, a palavra me concede isso.


Imagem: p/ Morrocoy.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 13 de abril de 2009

no divã


A hora mais feliz da minha vida é esta. O pior é que nunca sei como aproveitar. Fico doida pra estar aqui e quando estou parece que viro uma besta, não consigo aproveitar nada. Espero uma semana inteirinha pra chegar segunda, e quando chega não aproveito. Depois só aproveito as lembranças, todas liquefeitas, transformadas por mim, que nisso sou mestra: em deformar a realidade. E agora estou aqui, na sua frente, lhe olhando, e de repente lhe acho feio. O que importa? Quando chegar em casa, e me lembrar de você, seus olhos ganharão uma nebulosidade mais lírica, suas mãos serão gigantescas para as carícias mais ternas, e sua mudez remédio doce para minha mais mórbida eloquência. É, é feio mesmo. De uma feiúra dolorosa e comovente. Ah, se eu pudesse ouvir você, e não o contrário. Se eu pudesse lhe amparar, lhe colocar no colo. Vejo suas dores todas na sombra que suas costas desenham na parede. Você parece, coitado, Gregor Samsa transformado em inseto. Seus olhos têm pestanas enormes e desesperadas. Oh, meu querido, lhe tratarei melhor de que todo mundo. O leite que lhe darei à noite será morno, e nunca, prometo, nunca terei nojo de você. Você é o meu irmão, é o meu pai, o meu marido, o meu amante, o meu filho. Saia dessa cadeira besta, e vamos andar por aí. Que transferência que nada, que Freud que nada! Vamos matar Freud! Ah, seria tão bom aquele sorvete ao ar livre, você contando tudo sobre as frutas roubadas na infância. Você rindo! Você rindo! Eu ouvindo você, eu ouvindo você! Ah, Gregor Samsa, não ligo nem um pouco para suas pestanas enormes, acho-as lindas. Só queria que você parasse de me olhar; seus olhos são fundos, antigos; parece que vou entrando num abismo. Por isso não consigo aproveitar esse momento. Pronto, você olha para o relógio. Não tem como você colocar esse maldito relógio num lugar onde eu não veja tamanha indelicadeza? Oh, suas pestanas tão longas, tão desamparadas. Kafka, do outro lado da porta, murmura algo. É, tempo esgotado. Resta-me a próxima segunda, a próxima segunda, e a próxima, numa espiral interminável...


Imagem: www.google.com.br

sábado, 11 de abril de 2009

Miniconto: Dos piores castigos


É, ele disse com a voz mais simples do mundo que agora ia viver para o espírito. Ou seja, que a minha carne se danasse. Que a minha carne fosse chorar em outra freguesia. Que o que ele queria agora era planar nas alvuras celestiais dos que tem juízo, dos que tem respeito, dos que tem moral, dos que vivem plenamente entre os santos. Fiquei espantada ao ouvir isso dele. Logo ele, o maior canalha que já conheci, o homem mais homem que minha mão já tocou, logo ele me deixando de lado. Pois então que se dane, vá viver para o espírito, pois minha carne ainda não morreu. Que se enterre vivo, entre as funduras do umbral, barro e lama, seu estrupício. E mereça depois toda a nudez e vileza dos céus.


Imagem: "sombra", por alu rubio.
(www.flickr.com)

Isso não é um diário


Nunca pensem ser tudo o que escrevo uma tentativa de autobiografia. Há muita mentira no que conto. Minto, sim, descaradamente, para que minha vida não seja tão cinza. Quero que vocês fiquem sabendo disso para que eu possa me sentir mais à vontade com as várias personas, com as várias narradoras, com os diversos eu líricos, com as mais insuspeitadas mentiras que tenho vontade de contar. Assim, poderei fazer disso aqui, finalmente, um confessionário às avessas; dizendo muitas verdades no despistamento da mentira.
Sei que muita gente que me lê nesse blogue não me conhece pessoalmente. Isso não faz diferença: tenho vergonha, uma vergonha contínua. Sou uma mulher, já sem tranças no cabelo há muito tempo. E estou exposta. Claro, por vontade própria, mas exposta. Por isso preciso da cumplicidade literária: para me livrar do peso da confissão. Acreditem: nem tudo que eu conto aconteceu de fato. Uso um adorno, uma virgulazinha a mais, uma metáfora mais límpida ou mais cruel, ao meu gosto, que isso aqui nunca vai ser o diário da Lulu.
Minha vida é sem graça, essa é que é a grande verdade. Não acontece nada de interessante, a não ser um ou dois livros que leio durante o dia, entre um tédio e uma amargura. Sei que vocês não gostam de ler coisas tristes, principalmente num blogue, algo feito para distrair e amenizar. De vez em quando, prometo, trarei um ou dois casos da parentalha e vocês rebolarão no chão de tanto rir. Mas só de vez em quando. Porque não posso mentir sempre. Não posso. Mas minto. Olhem só que paradoxo. É isso, sou um paradoxo, palavra bonita e besta demais, talvez ela me salve.
Porém, saibam, guardo a sete chaves o maior dos meus segredos, é bom que eu diga. Nunca o contarei aqui. Não, não é nada relacionado a minha cara, coisa que, assumo, tenho medo de mostrar aos que não me conhecem. Não é nada disso. É mais profundo. É mais arriscado. Se eu contar posso perdê-los, enquanto leitores, para sempre. Por isso, como um palhacinho de circo, faço gracinhas à toa, para agradar: invento tolices, poeminhas em prosa, diários da luluzinha. Mas minto, minto, minto. Minha irmã sabe e pode comprovar: desde os sete anos sou uma exímia mentirosa. Por essa razão me mandaram para o catecismo - para purificarem a mentira que já tinha penetrado para sempre em meu espírito.
Portanto não acreditem em qualquer segredo; é mentira, não tenho segredo; crio apenas, nesse momento, um enredo, um engodo, para distrair minha vida do mais completo desespero.


Imagem: "Diário". In: www.google.com.br

sexta-feira, 10 de abril de 2009

valsinha


já me aprontei diversas vezes para o baile; já comprei um vestido fino, leve, da cor do vento, repleto de delicadezas; já me arrumei de véspera, contente à espera; já me arrumei inteira: esmalte nas unhas, cabeleira domada, perfume de alfazema; ensaiei as melhores cenas, beijei o mais lírico beijo, toquei fundo na mais fria alma; fiquei serena, fiquei brava, fiquei calma; arrumei completamente a casa, até coloquei uma rosa no vaso sobre a mesa; como a valsa, dos quinze anos, que nunca dancei, já me aprontei diversas vezes para o baile.



Imagem: "valsinha", por fabiana veloso.
(www.flickr.com)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

bolinhos de bacalhau

Que Jesus Cristo me perdoe se isso for pecado, mas amanhã, sexta-feira santa, irei comer miojo. Não que eu goste, na verdade detesto; mas, como diz mãe, o "comércio" amanhã deve estar fechado, eu não sei cozinhar e não é de uma hora para outra que vou aprender a fazer bolinho de bacalhau como mãe fazia nas semanas santas lá de casa. Eu esperava o ano inteiro para comer bolinho de bacalhau. Reuníamo-nos à mesa, pai com a cara compungida por saber a importância da data, e mãe dizendo que eu poderia, sim, comer frango, e só não poderia comer carne. Sempre adorei comer frango, hoje é que enjoei; pai era contra: sexta-feira da paixão comer frango era um sacrilégio. (Mas mãe estava constantemente na minha defesa, mesmo quando num dia qualquer sem importância mentiu pra mim dizendo que um carneiro pálido era frango, só para eu não deixar de almoçar.) À noite era um tal de cine sempre-viva, onde íamos assistir, pela milésima vez, a Paixão de Cristo. Mãe chorava de soluçar. Eu ficava horrorizada com tanto sofrimento se repetindo a cada ano. Nunca haveria um fim? O cine sempre-viva era cheio de morcegos. Durante o filme eles voavam nas nossas cabeças. As cadeiras pareciam carteiras de escola, coladas umas nas outras, e o ar abafado de mofo nos fazia espirrar. Na verdade a semana santa era sempre uma semana triste, menos triste por causa dos bolinhos de bacalhau - que infelizmente acabavam logo. A cidade ganhava um coro de ave ave ave maria, com um rapaz na procissão carregando uma cruz e as costelas e o peito pintados de tinta vermelha. Todo mundo com a cara pesada ia atrás repetindo ave ave ave maria, sem nenhuma banda de música, que ninguém era doido de afrontar Jesus Cristo dessa maneira. Lá em casa era proibido ouvir música na sexta-feira santa. Assim igualmente quando morria gente na cidade: nada de música, nada de alegria, nada de afrontar a tristeza alheia com a radiola ligada. Era proibido qualquer tipo de alegria, menos a de comer bolinho de bacalhau. Ah que delícia aqueles bolinhos! Todos bem redondinhos, que mãe sempre foi tirada a perfeccionista. E nós quatro, sentados naquela mesa de madeira velha, que foi do tempo do casamento de pai e mãe, nós sentados cada um no seu canto; ah, lembrei, mãe quase nunca se sentava à mesa, era costume do lugar as mães não se sentarem à mesa, principalmente quando tinha visita. Mãe gostava de se sentar pra almoçar era numa escadinha de cimento que tinha perto da sala e da cozinha. E tome-lhe bolinho de bacalhau pra dentro! Nada de fruta depois do almoço, não fui criada com frutas, nem com sucos, mas com doce. Doce de leite. Cocada. Depois pai ia tirar sua dormidinha na rede e mãe ia para o rio lavar uma baciona de prato sujo. Eu e minha irmã íamos jogar baralho ensebado com as amigas, eu roubando sempre com a cumplicidade das cartas velhas que se colavam uma sobre as outras. Não sei como pai não proibia o baralho, pois jogo não é coisa de Deus, cresci ouvindo isso. Minha irmã sonhou com o trem ruim lhe perseguindo só porque certa feita jogou giribita o dia todo. Logo giribita, um jogo inofensivo, com cinco pedrinhas pulando para cima e para baixo. Mas pai não proibia o baralho na sexta-feira santa não. Porém sempre dizia sobre o respeito que se deve ter com a morte de Jesus Cristo, nada de comer carne, nada de comer carne. O que ele diria me vendo comer miojo amanhã? Miojo é comida endemoniada? Mesmo não sendo carne, acho que sim, porque não estabelece vínculos como os bolinhos de bacalhau e por isso não faz a sexta-feira santa ficar menos triste.

cem mil


Ler um livro até o último parágrafo, sem conseguir parar, é um feito da alma, do espírito. E este sempre sai fortalecido, mesmo esmagado, diante de leituras definitivas, fortes, imprescindíveis. É o que meu espírito sente agora.

... E eu que continuamente me vi vária e disforme, e adotei o nome aeronauta em razão disso, transcrevo desse livro:

(...) Um nome não é mais do que isso: um epitáfio. Convém aos mortos, aos que concluíram. Eu estou vivo e sem conclusão. A vida não tem conclusão - nem consta que saiba de nomes. Esta árvore, respiro trêmulo de folhas novas. Sou esta árvore. Árvore, nuvem. Amanhã, livro ou vento: o livro que leio, o vento que bebo. Tudo fora, errante. (p.207)

Transcrevo o que diz seu autor, Pirandello, na sobrecapa:

"(...) Não sou um autor de farsas, mas um autor de tragédias. E a vida não é uma farsa, é uma tragédia. O aspecto trágico da vida está precisamente nessa lei a que o homem é forçado a obedecer, a lei que o obriga a ser um. Cada qual pode ser um, nenhum, cem mil, mas a escolha é uma imperativo necessário."


Imagem: capa do livro em questão, escaneada leigamente por mim.
PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

pirata enraivado


Fui escrever um comentário no blogue de Maria e me lembrei desse pirata aí. Claro, é meu sobrinho Vinícius, com um ano e seis meses. Dessa idade até os três anos ele não ia com a minha cara. Nessa época eu estava fazendo mestrado em Recife, ficávamos distantes, e quando nos encontrávamos ele não ligava pra mim, me mordia, chorava, pintava o diacho.
Na véspera de seu aniversário de dois anos, ao chegar de viagem e tocar a campainha de sua casa ouvi: Quem é? É titia? Se for titia pode ir embola! Noutra feita fui amarrar o seu sapato e como não conseguia alinhar seu pé e o cordão, ele disparou: Titia burralda, estuda tanto e não sabe amarrar meu sapato!

Oração


Ah, tenho uma preguiça de viver. E é uma preguiça tão grande, e é uma preguiça tão longa, e é uma preguiça tão triste. Ah Quintana, bata as asas na minha porta e me acode nesse desaparecimento, nessa história sobrenatural. Me leve contigo onde tu agora existes, nos convescotes de antanho; conversando com Machado, com Cecília, com Carlos Drummond de Andrade. Ah, é muita preguiça, Quintana. Dessa tu nunca tiveste. Me cante um verso para que eu me deite e só desperte aí, bem perto de ti. Sentirei a leveza da aterrissagem, um ventinho tocando meu braço, e vozes, vozes vindas dos convescotes, de teus/nossos amigos nos esperando. Cecília com aquele sorriso largo, Bandeira de braço dado com Machado, e Carlos Drummond de Andrade sólido, de ferro, de aço, mais triste do que eu.



Imagem: Mario Quintana, por André Roca.
(www.flickr.com)

terça-feira, 7 de abril de 2009

"A Dama do Velho Chico"



"Daura imaginou um vapor na curva do rio. A proa escura, a cabine alva do piloto no alto, as luzes a pontilhar o contorno do barco, a chaminé suja brotando lentamente por detrás do pontal da ilha do Barreiro. Uma estranha invasão férrea a perturbar a paragem. (...)
Molhou os braços e o rosto com a água barrenta do rio. Tornou a espiar na direção da ilha. Nada, mesmo. Só a lâmina luminosa da água produzindo faíscas douradas." (p.11)

Ah, Carlos, quem sou eu pra escrever sobre A Dama do Velho Chico? Apenas aqui consigo ser uma mera e anônima leitora, que vê sua vida surgir das águas do rio, das águas das páginas, como Daura esperando o vapor encantado. Que um dia virá, sempre virá...
... Sim, e veio agora com a publicação do romance pelo MEC, em edição especial. Isso merece ser dito para que todos ouçam, saibam, aplaudam, leiam esse belíssimo livro; merecidamente premiado. Tão nosso, tão próximo, pois que traz o Rio São Francisco e a nossa alma simbioticamente conjugados:

"Quando o rio faz a curva
ataca feroz o barranco
revolve o leito, a água turva
altera o canal, no arranco
o tempo geme, se recurva
perde o equilíbrio, sente o tranco.
Vem de longe, assim". (Intróito do romance)

Não, não quero ser uma resenhadora professoral de seu livro. Por isso páro por aqui. E comemoro com você.

*Acima, as duas imagens do livro. A primeira, edição especial para o PNBE 2009, do MEC.
BARBOSA, Carlos. A Dama do Velho Chico. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2002.
Blogue de Carlos Barbosa: http://contosempre.zip.net

segunda-feira, 6 de abril de 2009

anônima


O que nos leva a batizar-nos de 'escritores'? Só o fato de escrever? Não quero essa legenda. Escrevo, mas não sou escritora. Por isso não participo mais de convescotes. Saraus? Deus me livre! Entrevistas e recitais em Bienal? Estou fora. Pra que ter vida literária? Pra quê? Pra estar em voga? Vocês juram que se eu resolver participar do Café Literário alguém publica meu livro? Nem assim eu vou. Por que, meu Deus, irei ler meus poemas no Centro de Convenções? Quero ser anônima, anônima, anônima. Completa e absolutamente anônima. Como sempre fui.



Imagem:www.flickr.com

sexta-feira, 3 de abril de 2009

na amplidão


Há quase um ano a casa esvaziou-se. Ele foi embora. O que restou dele mandei para a portaria de seu novo apartamento. Diria, de maneira piegas, que o coloquei dentro de um carro de mudança e o despachei para outra vida. Uma vida melhor. Não sou boa companhia. Na maior parte do dia vivo no outro mundo, e ele nunca entendeu isso. Tentou várias vezes - com ternos apelos - me tirar de uma nuvem bem alta, logo pela manhã. Saía para resolver as coisas na rua e quando voltava eu continuava lá. Tentava o dia inteiro, em vão. À noite dormia sozinho, enquanto que eu, na amplidão de uma nuvem vazia, fazia minha cama. Não, não sou boa companhia. Oh, ele tentou de tudo pra me trazer de volta a esse mundo: não conseguiu. Fez o que é mais difícil: me amou sem limites. Eu gritei e devolvi esse amor. Não tenho salvação. Solta no espaço, só um outro braço sem esperanças pode me alcançar.



Imagem: http://sonhos.thais.zip.net/imagens/cama_desfeita.jpg

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Suave


Há uma cor prateada nessa foto, que talvez venha de sua aura. Um jeito suave, de quem acabou de acarinhar a cabeça de um filho. Mão descansando sobre a mesa, como quem descansasse um pouco de ser o que é, e dissesse.
Desde que vi essa foto senti vontades de escrever. Adiei várias vezes; talvez com medo de dizer a verdade: uma mulher dizendo a um homem o quanto ele é bonito, o quanto sua alma pode atravessar o mundo invisível, e sentar-se bem perto. Medo de parecer paquera. Mas que mal há em paquerar alguém nesse mundo cibernético? Nunca, nunca nos encontraremos; Emília pode dormir tranqüila.
Porém a ousadia de quem mora nas alturas foi maior que a cautela. E não me poupou de fazer-me agora pousar nessa esfera, a fim de tentar desenhar, em pobres palavras, um rosto, uma alma. Uma quimera.


*Foto roubada do blogue de Bernardo: www.xeudizer.blogspot.com