sábado, 28 de julho de 2007

"... eu mesmo sou meu perigo"

Há dias não passo por aqui. Há dias que a casa está cheia. Gente para lá e para cá, livros amontoados nas cadeiras, nos sofás. Livros até nas panelas. Essa gente que aqui está é portuguesa, voz de Camões pela sala, de férias na minha casa. Antonio Nobre, Sá de Miranda, Florbela... Fernando Pessoa, e seu grande drama de ser, me acordando cedo, ora sendo Caeiro, ora Reis, ora o mais agoniado: Álvaro...
Ah, Camões, que lindo ouvir-te, novamente, dizer essa redondilha:

"Tenho-me persuadido
Por razão conveniente
que não posso ser contente
pois que pude ser nascido.
Anda sempre tão unido
o meu tormento comigo
que eu mesmo sou meu perigo."

Eu digo o mesmo, Camões, faço estribilho contigo...

segunda-feira, 23 de julho de 2007

As "roubadinhas"

Cruz e Souza terminou a vida sendo funcionário da Estrada de Ferro Central do Brasil, na condição de arquivista. É sabido que o mesmo foi denunciado à diretoria de tal Empresa em virtude de ter sido encontrado "um poema de sua lavra" em local de trabalho. Lê-se no final do texto denunciador: "Pede-se providências".

Ah, o serviço público e a literatura... Drummond e o Amanuense Belmiro, dois conhecedores do universo burocrático: o primeiro, poeta e funcionário público (declarou muitas vezes que escrevia no expediente); o segundo, personagem aspirante a escritor e funcionário público num romance magistral, hoje esquecido, de Cyro dos Anjos ["O Amanuense Belmiro" (1937)]. Ambos - o poeta e Belmiro - conheciam bem esse mundinho cinzento da burocracia, tanto que o amanuense registra, o tempo todo no seu diário, poemas de Drummond, como a revelar um feliz diálogo entre profundos conhecedores do que há de mais inóspito no destino de um homem.

... E pensar que eu, aos vinte e dois anos, entrei para o serviço público... Enquanto o que mais queria mesmo era ler e escrever versos. Mas eu tinha minhas artimanhas. Levava o livro escondido na bolsa, colocava-o dentro da gaveta de minha mesa e quando o escrivão (trabalhava num cartório) vacilava, eu abria a gaveta e o livro - dando, assim, as minhas roubadinhas. A mesma coisa com a máquina ("facit") de escrever. Às vezes fingia que estava batendo um mandado... que nada!, estava era escrevinhando poesia, versos ingênuos, literatice... Era a maneira que eu tinha de agüentar o linguajar desumano dos processos.

... no ar

"As pessoas insistem em saber para quem são os poemas de amor... Não são para ninguém: a gente ama no ar..." (Mario Quintana)

A gente ama no ar! Repito o poeta, só que de maneira exclamativa. Ah, a gente ama no ar... Agora repito de maneira compassiva, talvez como Quintana quis entoar: as reticências, quem sabe, são vestígios dessa compaixão. Como se dissesse: não há, na realidade, destinário possível que consiga receber nosso amor: este é sempre feito de sonho, de um material evanescente - que escapa, que se dilui, que não é desse mundo...

sábado, 21 de julho de 2007

A solidão e sua porta

"(...)
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha),

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha"

"A solidão e sua porta", eis o nome do soneto, aqui em suas duas estrofes iniciais. Quem escreveu: Carlos Pena Filho. Quem reza esse poema: eu.
Eu rezo esse poema sempre. E se soubesse, aqui nessa máquina terrestre, como sublinhar em negrito, eu sublinharia o seguinte verso: "...e até Deus em silêncio se afastar". É o verso mais forte. É o que dói mais. É a maior medida da solidão: sentir Deus, em silêncio, se afastando, fechando a porta, indo embora.

terça-feira, 17 de julho de 2007

A fotografia que não tiramos

Lembro do dia em que ele completou 39 anos. A casa cheia de gente, um lampião a querosene clareando a sala e aquela imensa geladeira branca, a gás, compondo, com felicidade, a fotografia que não tiramos. Minha memória, mesmo com as imagens em lusco-fusco, registrou tudo. A radiola tocava uma música da época, e até o mudo da cidade dançava. Eu trazia os dedos cheios de anéis e, numa dança, um dos anéis grudou na calça de um rapaz que foi me levando na dança dele... Todos riam muito, até mãe, que nunca gostou de bagunça na casa dela. Todos estavam felizes, fratelli na mesa para as crianças e as moças, e cerveja para os rapazes...

Ah, pai, como eu gostaria de comemorar hoje os seus 70 anos. Nessa comemoração, como aquela dos seus 39, mãe estaria feliz, mesmo com a casa cheia de gente; minha irmã,então,estaria rindo à toa, grudada no seu braço, sem deixar eu chegar perto... E eu, eu estaria dançando pela sala, com os dedos cheios de anéis...

segunda-feira, 16 de julho de 2007

"... bebendo o ar fino"

Bandeira era tísico, todos sabem. E fez de sua admirável doença motivo para poesia. Não, não é nada de auto-ajuda, graças a Deus, é mais coisa para fazer rir. É, Bandeira fez de sua doença e de sua poesia motivos para rir da "contrariedade" que é a vida, na sua rabugice estrábica, antimelódica. Foi assim que, mesmo em " A Cinza das Horas"(1917), seu primeiro livro, marcado por um simbolismo pungente, lemos no poema que fez a Antonio Nobre (outro poeta tísico, português): o seguinte trecho:

"Com que magoado olhar, magoado espanto
Revejo em teu destino o meu destino!
Essa dor de tossir bebendo o ar fino
A esmorecer e desejando tanto..."

Esse trecho nos dá a deliciosa marca de Bandeira: a marca da ironia, ao invés da seriedade, da graça ao invés do pedantismo, do riso ao invés da choradeira tão somente. Diante da cumplidade de tísicos, Bandeira diz a Antonio Nobre a peculiaridade da vida e morte que os une: a "dor de tossir bebendo o ar fino", dor que os faz esmorecer diante do imperativo dos desejos, mas, ao mesmo tempo, dor que proporciona rir do que não tem remédio: a própria vida, em sua fragilidade cômica.

domingo, 15 de julho de 2007

Domingo não é um bom dia

Tem dias que não são bons para acordar. Tem dias que são bons para dormir, para sempre. Tem dias que não quero acordar, domingo por exemplo. Não quero acordar aos domingos, não quero. Domingo não é um bom dia para existir. Se eu pudesse eu pularia direto do sábado para a segunda. Domingo é um dia estragado, vazio, casas fechadas, ruas desertas, céu brilhando com uma ironia de fazer chorar. Seria melhor se chovesse, mas não, o sol tem que zombar da gente... De mim, principalmente, que gostaria de estar dormindo, para só acordar amanhã. Domingo não é um bom dia para viver. Que me perdoem os alegrinhos, os que gostam de praia, os que gostam de uma cerveja gelada.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

História de amor

Não sei quando se deu o primeiro momento, o primeiro toque, o alumbramento inicial. Não sei precisar a idade. Talvez aos seis anos mesmo. Talvez aos sete. Lembro da biblioteca. Pequena. Do Grupo Escolar. Da hora do recreio. Graças a Deus nunca tive aptidão para jogar baleado. E nunca tive aptidão para fazer amigos. Aliás, nunca tive aptidão para o mundo, graças a Deus. E ali, naquele espaço pequeno, tinha lugar para mim. Um lugar que ganhava dimensões, ficava enorme, à medida que eu abria os livros de Câmara Cascudo. Tinha uma tal história da Moura Torta...

Essas são as cenas do início. Minha irmã estudava num outro Grupo Escolar e assim podíamos trocar os livros que trazíamos emprestado da escola. Minha irmã gostava de ler, mas também gostava de jogar baleado, e de fazer amigos. Enfim, gostava do mundo. Por isso nossa troca não ia além de comentar as histórias lidas, e não compartilhávamos, sei, a medida do mesmo alumbramento.

Essa medida se inscrevia no amor ao livro enquanto objeto, não apenas enquanto história. Quando pai percebeu que gostávamos de ler e começou a comprar para nós os primeiros livros, minha irmã não cuidava deles, profanava-os. Eu comecei a não querer que ela lesse os meus, escondia-os. Ela acordava bem cedo, e ia ler, de pirraça, os meus livros, escondido. Quando eu acordava via os dedos gordurosos dela na página... O mundo desabava.

Eu ainda era uma criança, mas cuidava de meus livros como se cuidasse de uma pessoa. Forrava com um plástico, e lia com cuidado, com o zelo de um amor que até hoje não conheci em suas outras formas. Escrevia o meu nome na folha de rosto, e a data. Até hoje tenho esse hábito, adquirido na infância. Ato de proprietária, mãe, dona. Dona de um mundo - mais esquisito do que este, confesso, e onde a felicidade é possível da maneira mais negativa.

Por gostar tanto do objeto-livro, não consegui esquecer uma cena que vi, faz pouco tempo, numa novela de televisão. A cena é composta na biblioteca desorganizada de uma escola pública do Rio de Janeiro. A nova diretora entrou com sonhos de organizar toda aquela bagunça - não só a biblioteca, mas a própria escola. Só que um professor dá um beijo nela, e aí começa a trama de amor dos dois. Ela, uma diretora, tão politicamente correta, decide ir conversar com o professor; e escolhe a biblioteca como cenário para a conversa. Chegando lá, começam a discutir feio, e não é que a dita cuja tem o desplante de jogar os livros na cara do professor? Ele sai correndo e ela vai jogando nele todos os livros que vê pela frente. Que coisa horrorosa, que desrespeito! Aquela cena me deixou péssima, e me fez lembrar de minha irmã - que na infância lia os livros comendo carne frita. Delito pequeno, hoje vejo, diante desse.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Conversas com Clarice

Foi Clarice Lispector quem distinguiu as duas idades: a da matéria e a da alma. Eis em "Aniversário" (In: "Para não esquecer"): "... eu acho que se devia contar os anos pela alma. A gente dizia: aquele cara morreu com vinte anos de alma. E o cara tinha morrido com setenta anos de corpo."

Ontem eu fiz dez anos de alma, Clarice. Dez anos, tão pouco, para quem tem trinta e nove... O que eu fiz nos vinte e nove anos anteriores, sem alma? Fiz muitas coisas; por exemplo, li você pela primeira vez aos quinze. Mas, mesmo assim, minha alma ainda não tinha nascido. Lendo você, minha alma, imersa, palpitava, eu não entendia direito o que seu texto dizia, mas eu sentia todas aquelas coisas enigmáticas, todas aqueles sortilégios que me tiravam do mundo, me levavam para o ar, e que estavam nas entrelinhas do famoso não-dito que você tanto perseguiu...

Mesmo com tudo isso, até os vinte e nove anos eu só tinha nascido na matéria. Na alma, nem um pouco. Apesar de sofrer todos os arrebatamentos que só a alma consegue sofrer, apesar de desde os doze escrever poesia, apesar de...

... Só aos vinte e nove minha alma nasceu. Eu já era uma pré-balzaquiana, e com a alma por nascer... Enfim, ela nasceu. No dia 10 de julho de 1997, exatamente às 18 horas. Nesse dia eu toquei o invisível.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Castelos de nuvem

"De que matéria essencialmente divina são os castelos que não são de areia?"
A pergunta é de Fernando Pessoa (in O livro do desassossego), e eu ouso repetir, como um eco sem fundo. E me pergunto por que me faço esta pergunta, a esta hora da noite, quando, na televisão, passa jogo do Brasil. Por que será que ando assiduamente no outro mundo? Num poema Quintana disse estar sempre pensando em outra coisa - e assim se encontrava ao receber a extremunção: pensando nos seus sapatos antigos. Terno e brincalhão, nosso querido Quintana.
Enquanto lembro Quintana, ganho tempo para tentar responder à pergunta de Pessoa. Os castelos que não são de areia são, de fato, de uma matéria divina. Mas de que é feita tal matéria? Será por acaso de nuvem?
Os poetas, acredito, achariam provável. As nuvens têm algo de bíblico, de divino. Assim, os castelos que não são de areia têm, na sua matéria, a fluidez inefável das nuvens... composição de sonho, transitoriedade e transcendência.
Os castelos de areia se desmancham, enquanto que os castelos de nuvem se alteram, se mobilizam, se transformam...

sábado, 7 de julho de 2007

Para quem vive no ar

(Puxa, meu dedo bateu numa tecla errada e editei a mensagem sem concluir. Vamos continuar a prosa já começada.)
Pois bem. Fui em busca do aero-amigo: Murilo Mendes. O "aero-amigo" claro, é dele, que assim batizou Mozart, num de seus mais belos poemas. Murilo transcende tudo que vê, por isso acreditou piamente no que sempre viu, e proferiu essa visão como quase sentença: "Quase que só há estrelas". Além de profetizar às "Quatro horas da tarde": "Não vejo ninguém nesta cidade enorme:/Daqui a cinqüenta anos estarão todos no cemitério". Duro, mesmo transcendente. E transcendente ao ponto de sonhar uma mulher densa no "Idéia fortíssima":
"Uma idéia fortíssima entre todas menos uma
Habita meu cérebro noite e dia,
A idéia de uma mulher, mais densa que uma forma.
(...)
Uma idéia que verruma todos os poros do meu corpo
E só não se torna o grande cáustico
Porque é um alívio diante da idéia muito mais forte e violenta de Deus."

Tudo que eu disser agora, após esse último verso é sobra. Por isso me calo. E volto com o Murilo transcendentemente fanático:"(...)Porque eu amo tudo o que vem de ti./Amo-te na tua miséria e na tua glória/ e te amaria mais ainda se sofresses muito mais".
Surpreendente, sempre... De novo, me calo. E termino com duas preciosidades. A primeira: quatro versos do "Poema lírico":
"(...)
Amiga, amiga! Teu rosto é semelhante à lua moça,
Há nas tuas roupas um cheiro bom de mato virgem.
Tua fala saiu da caixinha de música dos meus sete anos,
E te empinas no azul com a graça dos papagaios que eu soltava.(...)"

A segunda preciosidade: duas estrofes do "Murilograma a Cecília Meireles":
"(...)
O século é violento demais para teus dedos
Dúcteis afeiçoados ao toque dos duendes:

O século, ácido demais para uma pastora
De nuvens, aponta o revólver aos mansos"

É, o século, o mundo, a vida - duros demais para quem vive no ar.

"Aero-amigo"

Cecília Meireles é a poeta "das alturas, das nuvens"; Murilo Mendes é o poeta da transcendência.
Hoje é uma bela tarde para ler Murilo Mendes. Chove. A chuva nos dá a sensação de não estar. De não ser. A matéria fica leve. Por isso a vontade instintiva de dormir e ler poesia.
Nessa tarde chuvosa de hoje fiz a segunda opção: ler poesia. E fui à estante em busca de Murilo Mendes: o "aero-amigo" das tardes que chovem.

Dirigindo máquinas terrestres

Ah, a minha dificuldade em dirigir máquinas. Acreditem, minha ausência nesse blog, mal iniciei, foi por causa de minha dificuldade em continuar. Simplesmente não sabia como voltar e escrever novos textos. O pior é que ninguém está sabendo dessa ousadia minha na internet, por isso não pude pedir ajuda a outras pessoas. Esse blog é um segredo. Como é bom criar segredos.

O pior de tudo é que gostaria de poder editar imagens, colocar um fundo no meu texto, sei lá, dar uma atmosfera, mas eu não sei. No primeiro dia, ao arriscar, o texto que havia escrito simplesmente sumiu. Deu um desespero, apertei um botão aí, ele voltou, só que voltou completamente desconfigurado. Eis a razão da falta de estética no primeiro post. O poema de Cecília está todo desarranjado, um horror - para alguém perfeccionista como eu, isso é a morte.

Sei que tudo seria mais fácil com a antiga máquina de escrever: esta também era terrestre, claro, porém mais domável...

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Além da terra

"Agora podeis tratar-me

como quiserdes:

não sou feliz nem triste,

humilde nem orgulhoso,

- não sou terrestre".



"Eu caminhava nas nuvens,

além da terra."



(Cecília Meireles. In: O Aeronauta)



Agora é tarde: me rendi às tentações do mundo cibernético. Disse que nunca teria um blog, e aqui estou pagando a língua. Não queria, mas descobri que escrevendo sob os auspícios (palavra zombeteira) da internet eu posso continuar sendo o que sempre fui: aeronauta. Vi que posso continuar sendo do ar. Aliás, depois que cedi à tentação, sinto que aqui estarei mais no ar... E lá vou eu, buscando caminhar nas nuvens, além da terra, tal qual Cecília.